Queremos ser a Bladnoch (antes da venda ou depois também)

Editorial extraído da edição de novembro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


A Bladnoch, da região de Lowland, na Escócia, é uma pequena destilaria localizada perto de uma aldeia (e rio) de mesmo nome nos arredores de Wigtown, cidade a umas três horas de Edimburgo, famosa pelas suas livrarias, que olham de frente para a Irlanda do Norte. É a destilaria mais ao sul da Escócia. A população estimada de Wigtown é de 1.000 pessoas, um pouco menos que o número de assinantes do RelevO.

A destilaria surgiu em 1817. Ficou nas mãos da família que a fundou até 1938, indo parar, então, numa prateleira baixa da United Distillers, atual Diageo, conglomerado de marcas que engloba a Johnnie Walker (e o Red Label…), a vodca Smirnoff, o gin Tanqueray e a cachaça brasileira Ypióca. A Bladnoch foi fechada em 1993. A partir daí, houve um interessante ponto de virada.

Em 1994, o topógrafo e desenvolvedor de propriedades Raymond Armstrong, nascido na Irlanda da Norte, comprou a propriedade com vaca, carneiro, destilaria desativada e tudo. Originalmente, ele buscava apenas uma casa de férias. Pois faremos uma coloração narrativa e presumiremos que os deuses do uísque tocaram o coração de Armstrong, que não tinha relações com a indústria de destilados até então.

Assim como Truman Capote intuiu os pensamentos do assassino de A Sangue Frio, entendemos que Armstrong passou a compreender o que a destilaria significava para a comunidade local, reconsiderou seus planos originais e passou a trabalhar na reforma do espaço para reativar a marca. Essa atitude – pois veja – incomodou a Diageo, que havia enterrado quase 200 anos de história pelo fato de a destilaria não ser lucrativa para o grupo.

Após divergências entre a antiga firma e o novo proprietário, estabeleceu-se que a destilaria poderia retornar com um teto baixo de produção, o que, para a estrutura histórica, não foi exatamente um problema. E assim a destilaria retornou ao mercado, pequena e aparentemente desimportante para a história do mundo, mas certamente não para o povoado de Bladnoch. Trata-se de um uísque especialmente agradável, recomendado até para beber com sobremesa.

Mas não paramos por aí. Um desentendimento entre Armstrong e seu irmão sobre a venda da destilaria acabou levando-a à liquidação em março de 2014. Em agosto de 2015, o empresário australiano David Prior comprou a destilaria, os armazéns e o charmoso centro de visitantes, bem como os estoques produzidos entre 2000 e 2009 por uma quantia não revelada, criando uma nova empresa, a Bladnoch Distillery Ltd., que mantém o mesmo espírito da destilaria. Ela se orgulha de ser a “menor” destilaria da Escócia, título que a Edradour também disputa. A empresa continua tecnicamente pequena, mas agora conta com uma rede de distribuição maior e um portfólio mais amplo de produtos.

O que a Bladnoch teria a dizer sobre a “indústria” de jornais impressos de literatura a partir de sua tumultuada história de vendas e aquisições? E qual seria o benefício de disputar para ser reconhecido como o menor em tempos de aquisições, holdings, fusões, filiais e franquias? A Bladnoch talvez nos sugerisse que, para manter algo genuíno e de valor, é preciso resistir às lógicas de mercado que achatam a cultura em favor da padronização e da rentabilidade. O uísque artesanal, envelhecido e restaurado por um certo amor à tradição e ao saber local, torna-se uma imagem para a sobrevivência da literatura independente e do Jornalismo cultural. Porém, não sabemos ao certo se resistir ao mercado é exatamente o que queremos enquanto RelevO. Talvez almejemos existir neste mercado.

Cada um desses universos lida com a pressão de se expandir, diversificar, aumentar produção e seguidores, contudo, no fim, o que realmente os torna únicos não é o tamanho da operação, e sim a profundidade da experiência que oferecem – e aqui também ficamos na dúvida se utilizamos o termo “experiência”, tão gasto pelas majors na atualidade.

Tal como Armstrong, que, ao perceber a importância da destilaria para o vilarejo, decidiu investir no projeto com mais dedicação que qualquer acionista distante poderia ter, o RelevO reconhece seu papel na comunidade de leitores que alimenta. E o RelevO também bebe. Ainda que pequeno, por escolha e necessidade, a decisão de ser “menor” é, em grande parte, uma resposta às engrenagens de um sistema que nem sempre reconhece o valor do peculiar e do pessoal, transformando tudo em opacidade linear.

Não há garantias, é claro; os altos e baixos, as vendas e recomeços são parte do processo. Mas a missão de preservar a identidade, mesmo quando isso não se traduz em expansão, é um propósito difícil de defender e explicar quando nos deparamos com os números frios. Com seu produto, a Bladnoch oferece sua interpretação de Lowland; nós, no RelevO, almejamos oferecer um lugar que não sabemos bem qual é, em edições limitadas e longe das grandes prateleiras. Sobretudo distante do Red Label.

Uma boa leitura a todos.