Dos manuais e guias

Editorial extraído da edição de março de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


“O excesso é o mal da escrita americana. Somos uma sociedade sufocada por palavras desnecessárias, construções circulares, afetações pomposas e jargões sem nenhum sentido. Quem consegue entender o linguajar cifrado usado pelo comércio americano no dia a dia, ou seja, um memorando, um relatório empresarial, uma carta de negócios, um comunicado de banco que explique o seu mais recente e “simplificado” balanço? Qual usuário de um seguro ou de um plano de saúde consegue decifrar o livreto que explica todos os seus custos e benefícios? Que pai ou mãe consegue montar um brinquedo para uma criança com base nas instruções que vêm junto com a embalagem? Nossa tendência é inflar tudo e, assim, tentar parecer importante. O piloto de avião que anuncia que em alguns minutos atravessaremos uma área de turbulência por causa das nuvens carregadas e possíveis precipitações nem sequer pensa em dizer simplesmente que poderá chover. Se a frase é simples demais, deve haver alguma coisa errada nela…” William Zinser em Como escrever bem.

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letas.

e.e.cummings em tradução de Haroldo de Campos.

Jarros de polvo!

Efêmero um sonho.

Luar de verão.

Bashô em tradução de Fabiano Sei.

“Entusiasmo. Prazer. Raramente ouvimos essas palavras! Raramente vemos pessoas vivendo e, no nosso caso, criando com base nelas! Ainda assim, se me perguntarem sobre os itens mais importantes no figurino de um escritor, as coisas que moldam o seu material e o impelem em direção ao caminho que ele deseja percorrer, eu apenas o aconselharia a olhar para o seu entusiasmo, para o seu prazer”, Ray Bradbury em Zen e a Arte da Escrita.

Uma boa leitura a todos.

Baú: Charles Portis

Extraído da edição 122 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.


Depois do jantar entrei no saguão às escuras. Ainda era o “happy hour” e o lugar estava apinhado de moradores locais. Não vi socialite alguma. Tive dificuldade pra conseguir um dos banquinhos sem encosto no bar porque toda vez que algum deles vagava eu esperava um ou dois minutos deixando-o esfriar, pra que o carlo do corpo se dissipasse da almofada de plástico, mas aí outra pessoa se sentava. A multidão escasseou quando os preços ficaram mais caros e aí eu meio que tive o bar inteiro só pra mim. Vi um homem de pé na ponta do balcão escrevendo uma carta com um lápis. Ele estava rindo do seu próprio trabalho, um bandido solitário escrevendo insultos cruéis pro chefe da polícia.

Pedi uma caneca de cerveja e dispus minhas moedas sobre o balcão, em colunas divididas de acordo com o valor. Quando a cerveja chegou, mergulhei o dedo nela e umedeci cada uma das pontas do guardanapo de papel pra ancorá-lo, de modo que não subisse junto com a caneca toda vez e eu parecesse um pateta. Bebi do lado da caneca que uma pessoa canhota usaria, na crença de que menos bocas tinham estado desse lado. Essa também é a minha política com xícaras, qualquer recipiente com alça, mas geralmente é de se esperar que as xícaras sejam lavadas com mais esmero do que canecas de bar. Uma rápida chapinhada na água aqui e ali e essas belezinhas estão de volta na prateleira!

À minha frente do outro lado do balcão havia um espelho escuro e acima dele uma cabeça de veado com um cigarro na boca. Na área das mesas uma mulher tocava um órgão elétrico. Ninguém estava berrando pedidos pra ela. Eu era a única pessoa do lugar que aplaudia sua música — uma bravata de viajante. E depois de algum tempo eu também parei de aplaudir. Eu não tinha a menor personalidade. Se os outros fregueses de repente decidissem atacar a pobre mulher com garrafadas, com aquelas garrafas quadradas de gim, creio que eu teria me juntado a eles. Isso era uma coisa nova. Todos nós sabemos do aristocrata que entra em derrocada, mas ali estava algo que Jefferson não havia antevisto: um serviçal decadente.

Charles Portis, O Cão do Sul, 1979 (ed. Alfaguara, 2015, trad. Renato Marques).

Zeh Gustavo: Crise: o que faremos depois da escrotidão?

Coluna de ombudsman extraída da edição de fevereiro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


A culpa não foi, tanto, minha: as cartas de janeiro é que deram a deixa. Valeu, Catarina Lara Resende (será ela parente do Otto, amigo do Nelsão, a quem este atribui a frase “O mineiro só é solidário no câncer”?) e suas Doses de escrotidão! Teve ainda o relato do apogeu e queda do Clube de Literatura Café no Cocô, por Cândido Magnus, um nome acima de qualquer suspeita. Houve as saliências de Natan Schäfer, citando José Paulo Paes: é sempre por essas que escrotos como nós geramos algo como “[…] a carne possuiu a carne” ou “nossa cabana tem furos no telhado”, em que se acusa a Lua de ser uma tremenda voyeuse. Então pediram, ah se pediram!

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O Conselho Editorial deixou passar mais esta: a terapia não está, nunca estará em dia — falta-me, além de fé na viabilidade de uma adimplência psicológica (!), o quinhentão mensal para minha autoelevação espiritual diante do mundo da classe média analisada. Mas, ao contrário da Matilde Campilho (aquieta, coração!), eu choro fácil. Isso equilibra um pouco as coisas?

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Já me apresentei, seção passada, mas faltou dizer que eu sou um cara meio escroto (e precisava?), daqueles apaixonados pelos boleros lúdicos e torpes de Aldir Blanc, pela cafajestice lírica dos filmes do Hugo Carvana, pela rouquidão gostosa da Zezé Motta e pelos palavrões da Dercy Gonçalves. Arte-xarope eu tento sequer nem comentar, quanto mais doar-lhe um roçar qualquer de meus sete sentidos.

À questão: não bastasse o sequestro de ao menos certos simulacros de escrotidão pela direita mais imbecil — a fascistada que devia estar em cana! —, noto haver ainda uma outra crise, fruto de um surto de (pseudo)moralidade nos discursos, sobretudo os virtuais. E onde falta escrotidão também há de faltar amor & arte: não há literatura sem flores de escatologia e cretinice, ou seja, escrotidão tirada a método e a quente; tampouco amor sem uma sacanagem de leve, essencial à construção de afetos, digamos, mais carnosos. A assepsia da vida, tudo controladinho como num aeroporto, é o maior dos precipícios.

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— Fiu! Já sei! Fazendo caras de intelectual fingindo que tem vida interior intensa, né, ô babaca?!

—Poupa meu saco, Passarinho, poupa meu saco! (…)

—Já sei! Fazendo caras de intelectual da geração perdida, fingindo que é agressivo e vingador, né, ô Hemingway de merda?

Carvana e Antonio Pedro riem de soslaio em certo momento dessa passagem antológica de Bar Esperança: o último que fecha, com Denise Bandeira nuíssima, Marília Pêra impecável de descolada, Pereio de Pereio e uma penca de gente-personagem em rota fácil de ser cancelada no mundo pós-escrotidão. Como a boa sem-vergonhice, acha-se grátis o clássico no YouTube.

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Bolívar vai à academia. Olho assustado, adio o quanto der a missão, mormente após trocarem o velho malhar por treinar, o que nos remete à antiga Melô do Romário: “Treinar pra quê, se eu já sei o que fazer?!”

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Erlândia taca o porrete em almas amesquinhadas pela busca do encontro flácido: somos, cada qual, um microacidente “[…] que é milagre / e desastre / na mesma medida”.

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Escrutinadores da Akadimia pululam na redessoci e amam um Jorge Aragão feito com caipirinha de 51, com um toque de análises sociológicas do novo BBB. Às vezes, misturam Belo a discurso massa-empoderadx e Bacardi Maçã. Denúncia: é no dia seguinte disso que boa parte dos artigos e papers são produzidos.

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Lembremos do que nos dizem os verdadeiros pulhas: crise é oportunidade!

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Baby, pode soar a cantada barata, mas é importante para o futuro da nossa relação: você já ouviu falar de caralhinhos voadores?

Dos búlgaros ao Brasil Poeira

Editorial extraído da edição de fevereiro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Abrimos oficialmente a temporada de rimar amor com dor, de perguntas como “com ou sem caracteres?” e das leituras de novos materiais para as próximas edições do nosso impresso, quase 14 anos circum-navegando de forma ininterrupta. Neste período (que engloba 176 edições), publicamos mais de 2 mil autores e autoras, 90% destes pela primeira vez em um veículo impresso. Alguns que por aqui passaram, inclusive, ultrapassaram a barreira da nossa inexpressividade e hoje são colunistas de jornalões e agitadores sazonais do Twitter-X, o que, muitas vezes, significa a mesma coisa (ao menos com remuneração bem melhor que o RelevO, que não volta cashback).

Não fazíamos um chamado público desde março de 2020, primeiros dias da pandemia. Recebemos, à época, aproximadamente 3 mil colaborações, o que resultou em um caos logístico e editorial. O que mudou de lá pra cá? Além de organizarmos melhor nosso fluxo de avaliações —acredite: estamos em dia com as leituras de janeiro de 2024 para trás —, também estamos muito mais esclarecidos com o que buscamos em nossas páginas. Basicamente, três fatores se desdobram em outras camadas:

  1. Textos bem escritos, ou seja, que respeitam as normas básicas da nossa língua ou as subvertem conscientemente, criando efeitos estéticos ou sinestésicos interessantes [geram beleza].
  2. Textos criativos, inesperados, imprevisíveis, que fogem das soluções mais comuns do nosso tempo. Textos que explicam menos e não duvidam da capacidade de compreensão do leitor.
  3. Textos simplesmente divertidos e criativos.

Naturalmente, somos surpreendidos com textos que não se encaixam nesses eixos. Conforme a nossa linha editorial, “não temos nenhuma restrição quanto ao tema, embora, a bem da verdade, estejamos um pouco cansados de literatura com a linha ‘escritor triste fumando em um bar’, ‘escritor triste escrevendo sobre escrever’, ‘poema sobre o valor da poesia’ e ‘meu amor não correspondido acaba de sair pela porta’. Isso não significa que materiais dessa natureza serão automaticamente piores e/ou recusados”.

Junto do chamado para publicação, também fizemos a devolutiva de mais de 700 textos recusados. Trata-se de um processo desgastante em níveis diversos: responder negativas (quem gosta de trazer más notícias?); tomar decisões injustas (e se desmotivarmos um talento genuíno?); e, naturalmente, ler – talvez o melhor verbo seja “enfrentar” – centenas de textos realmente indefensáveis. Também sabemos que um autor não selecionado tende a guardar algum rancor do veículo. Não acontece com todos, mas acontece. Resumindo: perdemos potenciais assinantes (capital financeiro), perdemos seguidores e entusiastas (capital simbólico).

Sempre reforçamos ao autor que fique à vontade para submeter outros materiais quando quiser. Esclarecer isso não impede que recebamos algumas tréplicas na linha “Tudo bem, o texto x é um sucesso de público, talvez o problema não seja comigo…” ou “Sou jornalista há mais de 20 anos, tendo ganhado alguns prêmios de literatura com crônicas, contos e poesias. Escrevo diariamente crônicas esportivas para um portal parceiro da rede x, gostaria de saber mais detalhes do por que minhas obras não seriam publicadas, já que contém potencial literário”. É do jogo, é do jogo.

Escolhas editoriais, mesmo que guiadas por um farol bem estabelecido, nunca deixarão de ser subjetivas, ratificando a nossa posição de meros leitores de uma certa e vasta produção que chega até nós, de traduções de escritoras eslavas a textos que falam das ”Estradas de chão, violas, bandeiras / Terra de Tom, Tonico e Tião”.

Uma boa leitura a todos.

Baú: Alleta Sullivan

Extraído da edição 121 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.


Contexto: “Em novembro de 1942, durante a batalha de Guadalcanal, que se estendeu por três dias nas ilhas Salomão, o USS Juneau foi atingido por dois torpedos japoneses e afundou. Morreram 687 homens, entre eles os cinco irmãos Sullivan, que se alistaram dez meses antes, todos ao mesmo tempo, acreditando que, juntos, serviriam melhor ao país. Dois meses depois de seu falecimento, tendo ouvido rumores preocupantes sobre eles, sua mãe, Alleta Sullivan, enviou ao Departamento Pessoal da Marinha uma carta comovente, solicitando informação. Logo recebeu resposta, mas não do Departamento, e sim do presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt. A tragédia dos Sullivan levou à criação da Política do Sobrevivente Único, segundo a qual as Forças Armadas americanas dispensam do serviço os irmãos de um soldado morto em combate”.

Prezados senhores:

Escrevo-lhes porque parece que meus cinco filhos morreram em combate no mês de novembro. Uma conhecida minha recebeu uma carta do filho, contando que ele ouviu dizer que meus cinco filhos tinham morrido.

A notícia se espalhou pela cidade, e estou preocupada. Meus cinco filhos se alistaram juntos um ano atrás, em 3 de janeiro de 1942. Estão no cruzador USS Juneau. A última vez que eu soube deles foi em 8 de novembro. Quer dizer, a carta era datada de 8 de novembro, Marinha americana.

Eles se chamam George T., Francis Henry, Joseph E., Madison A. e Albert L. Por favor, digam-me a verdade. No dia 12 de fevereiro, devo batizar o USS Tawasa, em Portland, Oregon. Mesmo que tenha acontecido alguma coisa com meus cinco filhos, vou batizar o navio, porque essa é a vontade deles. Sinto muito incomodá-los, mas estou muito preocupada e preciso saber a verdade. Por favor, digam-me. Foi duro dar cinco filhos para a Marinha de uma só vez, mas estou orgulhosa de meus meninos por eles poderem servir e ajudar a proteger o país. George e Francis serviram durante quatro anos no USS Hovey, que tive o prazer de visitar em 1937.

Estou muito feliz, porque a Marinha me concedeu a honra de batizar o USS Tawasa. Meu marido e minha filha vão a Portland comigo.

Atenciosamente,

De Alleta Sullivan para a Marinha Americana, 1943 (Cartas Extraordinárias. Org.: Shaun Usher. Trad.: Hildegard Fest, Companhias das Letras, 2013).

Zeh Gustavo: Cuidado: há um sambista na porta lateral!

Coluna de ombudsman extraída da edição de janeiro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Jards, o Macalé, já cantarolou: há um morcego, há um abismo na porta principal. Pega o fio: aos 15 anos nasci, sob o céu alaranjado da Gothan City literária, já desguiando para a música, para a roda de samba. E assim a margeei — por exemplo, publicando livros sem torná-los de fato públicos, essas especialidades do ramo! —, com a dignidade de um penetra convicto ao se dirigir sorrateiro à cozinha da festa de bacana atrás de um gole de conhaque. Ora me apresento, entortando Macala: há um sambista na porta lateral da literatura! E dela para a p. 5 deste RelevO — mandato curto, passa já!

Mó responsa: quem há de superar a verve bem urdida e humorada que faz da prosa da Amanda Vital, ombudswoman que sucedo, poema-crônica deste tempo tão certinho das ideias como o Simão Bacamarte do Machadão? Prometo tentar não ser mala, atributo honorável para todo escriba, mas vamolá: quantos textos literários citam um samba, um sambista sequer? De orelhada, recordo o João Antônio com seu Guardador dedicado a Cartola, livremente inspirado no episódio em que Stanislaw Ponte Preta encontra o vate de Mangueira a lavar carros na lindona Ipanema das bo$$as.

*

Ao inaugurar este ombudsdito, na música me apoio para me acercar de palavras que dizem das de outrem, ante o diverso corpus textual de cada edição. E assim vumos diretos pra delegacia (bença, João da Baiana!) tratar da de dezembro e da parte que me cabe, neste literafúndio (ui!): a ilustra de Gilberto Marques nos fita, olhos cerrados, a se perfilar entre a arte cega que seria a expressão máxima do desenho posta a dialogar com a rasura da memória, como sustentou Derrida. Bolívar Escobar dá rasante sobre a história do pensamento pegando de mote… uns memes clássicos! E eu achei bonito, viu? Também jogo no time da não metafísica.

O relato de Gumbrecht, em tradução de Bellin, sobre seu almoço com Foucault evoca a (des)graça dos encontros que morrem no quase da expectativa com que se forjaram. O que se teria sucedido de nossas vidinhas se eles vingassem, os danados? Não sei você, leitor(a) — eu fujo das desinências neutras, sobram-lhes bons intentos, falta-lhes musicalidade e a mim, ainda, a crença de que tornam melhor o mundo do deus Algoritmo e do sushi como área de interesse no Tinder —, mas vi tristeza, ainda, nas sugestões niilisterárias de Lucio Carvalho (juro caçava um delirium tremens se lesse um livro ilustrado por selfies!); e no Waltel milionário do ritmo de Felippe Aníbal. Ou seria amargura, termo em desuso? Aliás, amor e paixão, sei lá também, viu, Giovana Erthal, vale entrar na fila? Lacrar, na rede, cagando regra de relacionamento tem dado mais like, mormente se o relacionamento for do eu para com ele mesmo, o que a literatura médica anterior à pós-contemporaneidade sempre considerou como esquizofrenia. Vale também ouvir e cantar pagonejos em seitas comandadas por DJs. Ah, misturo tudo mesmo e, como reza o anúncio-manifesto da cZara: Foda-se o frete, camarada! Aqui é pirataria, embora eu ainda compre e (pouco) abandone livro pela meiuca, Enclave! O espaço vai curto: teve ainda poema (bem) ornado por Maria Joanna; Mylena Queiroz em tom ensaístico a discorrer dos recadeiros da terra Nego Bispo e Conselheiro; e Mistral fechando no duro do poético uma edição que flertou bastante com a aridez.

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Música — sentido-algo a que o velho Schopa se apegou a fim de nomear o mistério maior das coisas. Meu amor é bifurcado como o título do último Jards: poesia & música — se bem amalgamadinhas, hum… Sigamos a errar o (com)passo, próxima edição, Carnaval a vir?

2024: ficção de que começa alguma coisa

Editorial extraído da edição de janeiro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Um periódico impresso e de literatura: não precisamos nos alongar muito sobre o pressuposto de esta ser uma forma duvidosa de lidar com a presença e a contemporaneidade. Um jeito arredio que esconde, quem sabe, uma forma de preservar as memórias e de fugir da cultura do registro-pelo-registro. Pode não ser nada disso, e estamos apenas a empilhar textos ou justificar uma continuidade tal qual um colecionador de coçadores de costas, DVDs ou cadeiras em miniatura.

A síntese é: temos uma relação sincronizada com o tempo. Entre os dias 20 e 24 de cada mês, selecionamos os textos da próxima edição. Todo dia 25, nos mantemos nos preparativos técnicos, aquilo que chamamos de fechamento editorial. Dia 26… Temos que estar com a gráfica em dia. Entre 27 e 29, o Jornal tem de ir para a impressão. No primeiro dia útil do mês, Correios. Em 2023, apenas duas edições não respeitaram essa dinâmica: março e novembro (a última, por conta do feriado). As edições não são enviadas depois do dia 4 há mais de três anos.

Para que a nossa linha fina de atividades funcione, não podemos passar um dia útil sem arrecadar com assinantes e anunciantes. Mais do que um relógio, precisamos ser uma pequena caixa registradora literária. Para seguir a esteira que corremos regularmente, especializamo-nos em aprimorar etapas e nos tornamos obcecados por procedimentos. Em termos psicológicos, talvez sejamos um Jornal em mania. E 2023 foi um desafio tremendo-tremendo para a nossa forma de articular o caos natural do mundo.

Tivemos prejuízo em sete dos 12 meses do ano. Em números mais diretos, o RelevO caiu de 1.020 assinantes em dezembro de 2022 para 920 em janeiro de 2024. Especulamos diversas justificativas ao longo do ano passado e acreditamos que não seja propriamente uma punição editorial. Temos produtos gratuitos, como a Enclave e a Latitudes, com shares muito bons, ao passo que os retornos de quem nos escreve ou segue nos assinando nos mobiliza para seguir fazendo o Jornal com os conteúdos de que gostamos.

Muitos dos assinantes que não renovaram conosco seguem consumindo nossas newsletters e até compartilhando esses materiais, o que nos leva a uma reflexão constante sobre o nosso modelo de negócio. Se fazemos conteúdos que interessam ao nosso público digital da base do Substack (aproximadamente 7 mil), mas não conseguimos assinaturas para o impresso — que paga nossas contas e os produtos editoriais que produzimos —, o que faremos se perdermos mais 100 assinantes em 2024?

Lógico que reconhecemos o RelevO como um periódico cabeça-dura: não arrecadamos dinheiro público; não vendemos espaço editorial; recusamos três propostas recentes do mercado de apostas on-line; temos um senso de humor estranho; não casamos assinatura com publicação de autor (aqui no gênero certo mesmo, pois 100% dos casos são homens)… Ainda assim, seguimos e conseguimos isso graças a uma base sólida de assinantes e anunciantes. Essa base segue nos apoiando, investindo, distribuindo e fazendo o Jornal atingir sua natureza essencial: chegar em leitores de literatura.

Em 2024, estaremos mais presentes em feiras e festivais. Ampliaremos a cobertura da Latitudes, que também trará notícias deste circuito de feiras e festivais. Produziremos mais conteúdo especial para o site. Abriremos a nossa lojinha, com produtos como camisetas, canecas e bolsas personalizadas. Tudo isso precisa muito do assinante do impresso, o nosso carro-chefe logístico, responsável por garantir a continuidade de nossas atividades. Estamos otimistas.

Uma boa leitura a todos.

Amanda Vital: Ombudswoman 12: é hora de dar tchau :(

Coluna de ombudsman extraída da edição de dezembro de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Car_s leitor_s, uma hora tinha que acabar, né? Quer dizer, ficar um ano aqui abancada no mesmo espaço, a bunda começa a doer, a perna prende a circulação, as costas começam a travar, essas coisas de velho.

Chega ao fim minha temporada enquanto ombudswoman do RelevO (e fiquei até um pouco mais do que o plano inicial, pela alegria minha — e espero que vossa também). Que os textos aqui publicados nesse período tenham divertido um pouco mais a rotina de vocês, querido leitor, querida leitora. Que me perdoem pelos textos ácidos a mais ou bonzinhos a mais (ou a menos, em ambos). Que me perdoem pelos textos mais fraquinhos, que sei que fiz. Que tenham sido úteis as pequenas anotações, os comentários, as resenhas, as opiniões. Obrigada pelos retornos, pelas mensagens enviadas inbox, pelas críticas & elogios & reclamações publicadas no correio dos leitores.

Não sei escrever despedidas, não. Hoje, por fim, não vai ter textão.

Eu só agradeço muito mesmo a oportunidade.

Ao Nuno Rau [ombudsman anterior], ao editor Daniel Zanella, à equipe toda do RelevO e sobretudo a vocês.

Obrigada pela estadia leve e muito querida.

Da redação: A partir da edição de janeiro, o espaço de ombudsman será preenchido pelo escritor, compositor, cantor e ativista cultural Zeh Gustavo. Também é mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, 2020) e licenciado em Letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF, 2000).

Inesperadamente, leitores

Editorial extraído da edição de dezembro de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Novembro foi um mês movimentado — e nem compramos um Playstation na Black Friday. Comparecemos à Flip com uma edição especial do RelevO, em parceria com a Casa Queer. Fomos — editor e editor-assistente — na noite da quarta-feira (22), incomodados por Fluminense e São Paulo na rádio. Entre a visão comprometida pela neblina e jatos de água proporcionados por caminhões, chegamos em Paraty na quinta de manhã, após nove horas praticamente ininterruptas de deslo(u)camento, um tanto anestesiados pela breve passagem por um Graal Route Café NYC Market, na Rodovia Presidente Dutra.

Logo ao entrar no Rio de Janeiro, amaldiçoamos Paraty com a energia soturna do RelevO, fazendo a luz da cidade (inteira) acabar na nossa primeira noite. Tentamos, em um ato de ligeiro desespero, ir para outra cidade em busca de suprimentos e de um pouco de energia elétrica (difícil ler jornal em uma noite sem luz…), porém apenas estendemos nosso contato com a chuva. Na sexta-feira, circulamos, distribuímos exemplares (mais de 5 mil) e experimentamos o café com whey gratuito na Casa Folha. E cachaça. Voltamos para casa projetando uma circulação mais pujante para uma edição 2024 na FLIP.

Para o futuro próximo, precisamos/queremos participar mais das feiras e festivais de literatura. Além da distribuição direcionada a bibliotecas, pontos culturais e espaços de promoção da leitura – hoje enviamos para cerca de 200 pontos de forma gratuita e financiada pelos nossos assinantes –, entendemos que o público-alvo de tais eventos pode alçar o RelevO a um novo patamar de envolvimento com seus leitores. [Quem é o nosso leitor ideal? Aquele que entra em um texto sem pré-julgamentos, potencialmente curioso, sobretudo, gosta de ler e se divertir.] Também acreditamos que a distribuição direcionada pode ser de alta valia para os nossos anunciantes, que demonstraram engajamento financeiro a ponto de pensarmos em novas edições temáticas, para desolação dos designers e diagramadores do periódico.

Feiras e eventos, em geral, são bastante benéficos ao RelevO (e a qualquer pequeno comerciante que descobre seu nicho). Afinal, a probabilidade é muito maior de encontrarmos interessados na assinatura em qualquer aglomeração de leitores, escritores e editores do que batendo de porta em porta (física ou digital). Para tanto, naturalmente, precisamos de orçamento, de ações regulares de captação de recursos e do posterior custeio da logística. Ao menos, temos uma certeza: o RelevO sabe ser regular (regular!) e certamente podemos interessar àqueles que queiram seus projetos, livros, textos, editoras circulando no público que está atrás de algo para dizer “fui”, entre uma estranha bebida láctea gratuita e uma queda de energia. Também não desconsideramos o Jornal como substituto (ineficaz) do guarda-chuva.

Uma boa leitura a todos.

Baú: Carlo M. Cipolla

Extraído da edição 120 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.


Não é surpresa que as pessoas vulneráveis […] não reconheçam o quanto pessoas estúpidas são perigosas. Essa falha é apenas uma expressão de sua vulnerabilidade. O fato realmente impressionante, entretanto, é que pessoas inteligentes e bandidos também costumam não reconhecer o poder de causar danos inerente à estupidez. É extremamente difícil explicar por que isso acontece, e é possível apenas observar que, quando confrontados com indivíduos estúpidos, pessoas inteligentes, assim como bandidos, costumam cometer o erro de se permitirem ter sentimentos de complacência e desdém, em vez de secretar quantidades adequadas de adrenalina e erguer defesas imediatamente.

Fica-se tentado a acreditar que um homem estúpido só vai causar mal a si mesmo, mas isso é confundir estupidez com vulnerabilidade. De vez em quando, alguém pode cair na tentação de se associar a um indivíduo estúpido para utilizá-lo em seus próprios esquemas. Tal manobra só pode ter efeitos desastrosos, porque a) ela se baseia em uma incompreensão absoluta da natureza essencial da estupidez e b) dá à pessoa estúpida um escopo aumentado para o exercício de seus dons. É possível ter esperanças de tirar proveito do estúpido, e, até certo ponto, é realmente possível fazer isso. Mas devido ao comportamento instável do estúpido, não se pode prever todas as suas ações e reações, e em pouco tempo a pessoa vai ser pulverizada pelos movimentos imprevisíveis do parceiro e estúpido.

Isso fica claramente resumido na Quarta Lei Fundamental, que afirma que:

“Pessoas não estúpidas sempre subestimam o poder de causar danos dos indivíduos estúpidos. Em particular, pessoas não estúpidas se esquecem constantemente de que em todo momento e lugar, e sob qualquer circunstância, lidar e/ou se associar com pessoas estúpidas resulta infalivelmente em um erro altamente custoso”.

Ao longo dos séculos e milênios, tanto na vida pública quanto na vida privada, inúmeros indivíduos deixaram de levar em conta a Quarta Lei Fundamental, e essa falha acarretou perdas incalculáveis para a humanidade.

Carlo M. Cipolla, As Leis Fundamentais da Estupidez Humana, 1976 (Ed. Planeta, 2020).