Os rumos do impresso no país dos não leitores

Editorial extraído da edição de fevereiro de 2025 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


Em um cenário saturado pelo digital, onde o scroll infinito domina as interações e o tempo livre, mudando a percepção de foco e derretendo nossa concentração, a alternativa do impresso justifica sua existência de formas cada vez mais lógicas. Na competição diária pela atenção e na macarronada de algoritmos moldando nossos interesses, o impresso oferece uma pausa intencional e menos fragmentada, algo que a experiência digital – cada vez mais como uma roda de hamster a serviço de anúncios – dificilmente consegue (ou tem interesse de) replicar.

A recente pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro, trouxe à tona a grave realidade do desinteresse pela leitura no país. Mais da metade da população (53%) não leu sequer parte de um livro nos três meses anteriores à pesquisa, independentemente do suporte. Esse dado é comovente não só por demonstrar a desconexão com o hábito da leitura como um todo, mas também por revelar um sintoma mais profundo: uma sociedade em que não ler caminha para a norma, ao contrário do uso de tecnologias cada vez mais balbuciantes. (Convenhamos, não que antes da internet o Brasil fosse o Olimpo da intelectualidade…)

Outro dado merece atenção. A predominância do celular – 75% dos entrevistados afirmam passar mais tempo no dispositivo do que com um livro impresso –, quase uma platitude, traz uma ponderação acerca do impacto das telas em outros aspectos da vida. A hiperconectividade digital não afeta só os hábitos de leitura, uma vez que transforma o modo como nos relacionamos com o tempo e com o mundo físico. Atividades que dependem de presença, como caminhar, visitar amigos, ou até mesmo o estabelecimento de vínculos íntimos como… sexo, estão em declínio, substituídas por interações mediadas por telas.

Claro que estamos falando de uma generalização a partir de dados – e que temos, sim, zonas de respiro também nas gerações nascidas já com a internet em domínio. E não esqueçamos novamente da pesquisa: apenas 17% dos adultos acima de 40 anos têm o hábito da leitura. É uma geração pré-internet. O problema é muito mais antigo. Entendemos que o impresso, nesse cenário, pode se tornar, paradoxalmente, um ato de renovação, já que o formato não se limita somente à transmissão de informação; é um retorno à experiência tátil, visual e emocional. Livros, revistas e jornais oferecem um tipo de interação imersiva e não linear, permitindo ao leitor pausar, reler e contemplar, em oposição à efemeridade do conteúdo digital. Impresso não tem pop-up. Para além da nostalgia, o impresso encontra novas justificativas para sua existência: é um meio que incentiva o foco, a introspecção e o distanciamento saudável da saturação informacional.

Assim, o desafio não é resistir ao digital, tampouco introjetar leitura em dançarino do TikTok, mas construir uma cultura em que o consumo de conteúdo impresso seja mais presente. Chamamos isso de letramento analógico. Em um país onde a quantidade de não leitores supera a de leitores, fomentar o hábito de leitura é um passo vital para formar indivíduos menos… derretidos. Não que o RelevO, especificamente, vá salvar o Brasil de seu buraco quente (não o sanduíche), mas as redes dos bilionários malucos da ideologia californiana do Vale do Silício certamente não estão aqui para nos conduzir à evolução.

No dia a dia do Jornal, conversamos muito sobre o letramento para impresso. O que isso significa? É a nossa tentativa miúda de colocar mais leitores em contato com a nossa “plataforma”. Nosso plano logístico de distribuição, que dá acesso [grátis] ao periódico em mais de 400 pontos culturais do Brasil, tem como mote o contato com o impresso. O plano é todo financiado por nossos assinantes. Também pensamos no acesso do Jornal aos escritores. Janeiro, por exemplo, é o mês em que fazemos as devolutivas dos autores e autoras que mandaram materiais no último semestre. Acredite: muitos escritores nunca folhearam uma edição do RelevO (ok) ou sequer de outro impresso (aí complica). Mesmo entre aqueles que escrevem, as trocas de mensagens são estarrecedoras. “Olá, obrigada pelo retorno, mesmo que vocês não utilizem meu material. Quem sabe na próxima! O que é periódico? Gostaria de entender melhor” ou “Estava mais interessado na publicação do que na leitura do Jornal, não precisa mandar a edição de cortesia não”. “Mas como chega o jornal? Por email?”. Todos exemplos reais, ipsis litteris.

Em outra ponta, enquanto o Brasil vê regredir sua curva de leitura rumo ao grunhido, até mesmo gigantes do setor digital tomam ações na direção do impresso. A recente decisão da ByteDance, dona do TikTok, de expandir sua editora 8th Note Press para o mercado de livros físicos, é emblemática. A gigante chinesa aposta no crescimento da comunidade BookTok para lançar livros impressos voltados às gerações Millennial e Z. Paralelamente, revistas como Vox, Vice e Saveur retornam às bancas, ao passo que o mercado americano celebra o lançamento de mais de 70 novas publicações impressas apenas no último ano. Por aqui, temos o retorno ao impresso da folclórica Capricho.

Claro: em tempos de incertezas, a nostalgia desempenha um papel importante. Objetos físicos, como livros, vinis e câmeras analógicas, carregam uma carga emocional que os torna refúgios em meio ao barulho. Revistas impressas, muitas vezes transformadas em peças de decoração ou colecionáveis, ganham espaço pela experiência sensorial de folhear suas páginas e pelo valor estético de seus projetos editoriais minimalistas. Em muitos casos, isso não deixa de ser apenas um fenômeno de boutique.

De fato, o prazer do toque, da textura e do cheiro das páginas não pode ser replicado pelo digital. Não há interrupções irritantes, anúncios invasivos ou notificações que desviam a atenção. A leitura flui em um ritmo próprio, permitindo uma experiência limpa e imersiva. Além disso, o impresso resgata a noção de permanência. Enquanto plataformas digitais adicionam e removem conteúdos sem aviso, o que mantemos fisicamente em nossas mãos reflete nossa identidade e gera memória. Livros e revistas tornam-se extensões de quem somos, objetos que não só representam nossas preferências, mas também estreitam laços e promovem a troca de ideias. Impresso não pode ser editado a posteriori.

O milésimo renascimento do impresso não significa uma rejeição ao digital, mas sim uma convivência harmoniosa entre os dois formatos. Ambos têm seus méritos: o digital para a instantaneidade e o alcance global, e o físico para a profundidade e a conexão emocional. É nessa coexistência que leitores, criadores e editores encontram novas possibilidades: estamos falando de reimaginar o século 21 antes que ele se torne o ferro-velho completo dos bots.