Amanda Vital: Ombudswoman 6: estou farta do lirismo dos metidos

Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Estou farto do lirismo comedido

Do lirismo bem comportado

Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente

protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor.

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o

cunho vernáculo de um vocábulo.

Abaixo os puristas

Car_s leitor_s, vocês não estão exaust_s da vida burguesa que tem aparecido nos romances, nos poemas, nos contos? É tão estranho pegar num livro e se deparar com um jantar com comida flambada e espumante, a combinação de uma viagem pra Paris na mesma semana com umas amigas (como se não tivesse todo o rolê de ter que combinar com todo mundo, ver que dia fulana pode, marcar folga, fazer uma pesquisa de preço mais barato e marcar pra dali a uns 6 ou 7 meses, ou algo assim), uma corrida na orla da praia logo de manhã sem um sustinho— nem falo de assalto, poderia ser uma topada numa pedra, sabe? —, um galã chamado Pierre Albuquerque ou Brad Alcântara, do nada, no Brasil… Já é tão comum que chega a ser estranho. Porque é tudo falado com uma naturalidade, imagina! É normalíssimo a dona Cindy Bittencourt dar de presente uns bombons de licor de cereja da Indonésia oxidada e conservada a frio com chocolate suíço 70% cacau orgânico biológico e hidropônico para a sua mãe, “que ela gosta tanto, são seus favoritos”! Romance de vida de herdeiro (infelizmente — e sobretudo — de herdeirA), sem boleto pra pagar, sem mercado pra fazer, que não chora pela alta do preço dos tomates, que freta um jatinho em 5 minutos. Que não é fudido. O máximo que pode acontecer nessas histórias é talvez não ter pão integral para comer no lanche. Descobrir que um gostosão rico que a protagonista conheceu numa balada (de rico, novamente), cujo mapa astral suuuuper bate com o dela — inclusive, ela fez ali mesmo, no meio da boate, e o rapaz nem fugiu, vê só! —, tem uma ex que ele não supera. São uns problemas ridículos apresentados como se fossem problemões. Eu só consigo imaginar que quem escreve isso não precisa sair para trabalhar, mesmo. O romance de herdeiro não fica só no romance, é literalmente escrito por quem não precisa acordar às 5h40 pra pegar condução. Pede almoço e jantar pelo aplicativo. Paga “mocinho” para ir ao correio por si. Tem um gato bengal. Não dá bom dia para a faxineira do prédio. Engraçado é que a gente consegue “ler” isso nos personagens que a pessoa cria, porque também é tudo um bando de gente chata e entojada, com diálogo medíocre, que acha que a vida gira em torno do próprio umbigo. Não sei se cheguei a mencionar por aqui a classe do rico que paga pessoas (literalmente paga) para estar no meio literário, oferece jantares em restaurantes chiques, elabora eventos inteiros com um nome bem pseudocult para uma galera que ninguém conhece, faz seu networking safado para caber bem grandão na rodinha, suuuuper aclamado e respeitado em seu terninho feito sob medida, enquanto escreve, sei lá, num estilo meio Cesário Verde meets escritório do papai para o rapazinho no ócio leite com pera e iogurte dietético.

Acho que quase todos os textos do RelevO da edição anterior se ligam por essa linha mágica que é a vida real, a vida acontecendo. E isso não é necessariamente chato, vamos parar com essa teoriazinha, também, né? “Ah, não quero ler nada que me lembre a minha vida, que já é tão enfadonha”, poxa… O problema não é da literatura ser “do cotidiano”, é seu. Tem gente tão, mas tão chata que não aguenta ler um “asfalto”, um “cocô” num poema, costumam ser os mesmos que criticam poesia descritiva/narrativa porque “não é poesia, é prosa poética”; bando de gente que não superou que as caretices são minoria agora, a trupe dos agarradinhos ao mundo mágico do lirismo pretensioso dos que nunca lavaram um copo na vida porque a esposa faz tudo em casa. Nem tudo o que é distante da nossa vida cotidiana é legal; na verdade, acontece muito o contrário (e isso também pode ser lido por “nem toda literatura fantástica é legal”, muita não é, só imita o Tolkien e vem de uma galera que passa os dias no WattPad lendo adolescentes tristes e iludidos para pegar inspiração), a coisa ser tão desconexa da realidade que chega a ser um saco. E nem todos os cotidianos são os nossos. Porque também não é todo dia que a gente tromba, pessoalmente, com a poetinha arrogante de bairro que escreve uns poemas ridículos de tão senso comum que são — e com uma sacanagem merecida (olha o guilty pleasure e a sedezinha de vingança aí!) com ela —, com as clientes-sinhás-nossas-senhoras da manicure, com as vizinhas adúlteras de meia-idade se confessando ao padre, com o Alzheimer da dona Linda. Tem que vir alguém contar isso e mandar para o nosso querido jornal. Contar da perspectiva do fudido, mesmo. Nem toda literatura é para fugir, para salvar, para ir longe. Muita é pra geral ficar puto, sair com dor de cabeça, ler como se fosse o desabafo de alguém que tá farto, assim como quem a lê. “Mas até tem rico que sabe escrever”, é verdade. Ainda mais antigamente; eram os que mais publicavam, tinham o dinheiro e os contatos certos, e o talento — boas vezes — também; tinham a escolaridade certa, o tempo de leitura certo, o “modo de ver o(s) mundo(s) que não o seu próprio” também, e isso tem lá a sua graça. Atualmente também tem. Isso não é um manifesto contra os ricos, é contra os bestas, mesmo.

A edição passada foi muito, muito boa, apesar de ter pouca poesia originalmente em português, mais tradução, mas as traduções também estão excelentes. Tivemos o conto “A Poeta”, de João Alexandre (acredito que esse protagonista tenha vingado todos aqueles que gostariam de tentar mostrar alguma farsa por trás dos poemas curtinhos e suas autorias — eu estive em alguns grupos desses poetas dos “curtinhos” na minha adolescência e olha, o plágio, a apropriação de ditados amplamente conhecidos e populares para si, como se fossem de autoria del_s, com assinatura estilizada e tudo; a mania de superioridade d’A Poeta em questão são reais, bem reais, e agem como se estivessem escrevendo o suprassumo da literatura contemporânea, e são só coisas que ouviram na rua —, mas aqui deixo um adendo, porque vi alguns desses poetas crescerem, e apesar do início ter sido meio duvidoso, evoluíram bem em suas respectivas literaturas. Nem tudo é amargura, né?); “Maria do Rosário”, de Iara Sydenstricker (muito bom, fez um cruzamento bem legal entre denúncia e beleza, e teve um ótimo fechamento); Audre Lorde, traduzida por Rafael de Arruda Sobral (que traduz bem até a forma, ele é um ótimo tradutor; há trabalhos dele em revistas como Mallarmargens e Escamandro, pra quem quiser ler mais); “A beata”, de João Paulo de Barros (aquela dose genial de exposição da hipocrisia das beatas católicas, sempre bem vinda, e uma escrita boa, gostosa demais de ler); Friedrich Holderlin, esse querido atemporal que meu-deus-do-céu como o homem escrevia bem, traduzido por João Paulo Andrade; uma seleção de poemas de Ivan Junqueira por Lucas Silos (muito boa curadoria); e o conto (ou crônica, pode-se considerar, também) “Helena, sharmuta”, por Jennifer Cabral. Também contamos com o projeto gráfico muito bom do André, com ilustrações de um puta bom gosto.

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais

Todas as construções sobretudo as sintaxes de excepção

Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador

Político

Raquítico

Sifilítico

De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora

de si mesmo

De resto não é lirismo

Será contabilidade tabela de co-senos secretário

do amante exemplar com cem modelos de cartas

e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos

O lirismo dos bêbados

O lirismo difícil e pungente dos bêbedos

O lirismo dos clowns de Shakespeare

– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Manuel Bandeira

Porque não tem graça nenhuma o lirismo que não seja libertação, tem? Car_s leitor_s, nos vemos no próximo texto. Sejamos livres! Mas se não quiser, não precisa.

Dívidas, juros, dividendos, música

Editorial extraído da edição de junho de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


O Jornal RelevO, em um esforço quase acima de suas capacidades papelísticas, não mencionará, em seu texto-apertura de junho, as causas e os efeitos de nossas dificuldades financeiras. Falaremos de música.

Quando fundamos o Jornal, em agosto de 2010, desejávamos ser um periódico de cultura, sobretudo de literatura, principalmente pela relação (tóxica) do editor com a escrita, mas também queríamos publicar textos sobre música, cinema, teatro, ensaios, aleatoriedades (essa palavra boba…) divertidas para quem estivesse em busca de um texto saboroso.

Criando crônicas, perfis e obituários, o editor ocupava com regularidade um espaço que podia ser destinado a outros escritores e escritoras, usuários melhores da língua portuguesa. Felizmente, o hábito de preencher obrigatoriamente as páginas com o próprio nome foi abandonado com o tempo (ou com a maturidade). Aí já estávamos em 2014 e começamos a abrir espaço para o humor nas páginas centrais, sem precisar destacar quem escreveu, RG, CPF, se estudou na USP. Talvez tenha começado nesta época a nossa aversão a bios e a nossa busca por diversão sem pedigree.

Reparamos também, ao longo desses quase 13 anos, que sempre publicamos muitos textos com relação direta com a música, de relatos de festivais a trechos de canções na contracapa. Nunca assumimos essa faceta como um de nossos norteadores editoriais. Não sabemos dizer bem o porquê, mas sentimos que este é o momento de nos entendermos melhor com o passado e o futuro de nossos desejos, aprofundando nossa relação entre música e literatura.

A música sempre fez parte do Jornal como uma espécie de região sem fronteiras, aberta às experiências, uma ferramenta de conexão. Recentemente, em abril, publicamos um especial de quatro páginas sobre o Skank escrito pela Marceli Mengarda, responsável pela Burocrata Carimbos e projetista gráfica da página impressa da Enclave – que, aliás, trata de música com apuro (não confundir com apuração) e regularidade.

Queremos abrir, portanto, mais espaço em nossas páginas para relatos peculiares, quem sabe em um reencontro entre texto e ritmo. Notamos, ainda, uma notória falta de cobertura musical um pouco menos… como podemos dizer… caça-clique. (Não podemos esquecer o nosso peculiar projeto, o sensacional Brazilliance, descontinuado – por ora – para descanso do alemão.)

Nesta edição, trazemos um relato de quatro páginas sobre a nossa cobertura do C6 Fest, que aconteceu em São Paulo entre 19 e 21 de maio. O evento teve Kraftwerk e Underworld como os líderes da programação. De modo geral, gostamos muito de música, gostamos de música eletrônica e acreditamos que os relatos de quem estava lá podem proporcionar experiências interessantes para os nossos leitores. Esperamos que se divirtam.

Uma boa leitura a todos.

Nuno Rau: Entre texto, contexto e interpretações (ou: Baudelaire, quem diria, acabou no Mercadão de Madureira…)

Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Confessar, preciso confessar que as primeiras vezes que entrei em contato com a poesia de Baudelaire, algo que estava posto sobre os versos — e entre eles — me fazia sentir um certo incômodo, em parte, e um tanto de tédio. Antes disso, na infância e na adolescência, lia os poemas como uma experiência direta e sem filtro de nenhuma natureza, e foi assim que atravessei românticos, parnasianos, modernos, tudo que se abrigava sob o nome de poesia chamada marginal (que só merecia esse rótulo agregador por sua marginalidade em relação ao mercado), o furacão Fernando Pessoa, e alguns inclassificáveis, como Augusto dos Anjos. Revirando aqui esse tempo, percebo que talvez tenha começado cedo a tentar entender o que existia de pensamento para além das margens dos poemas, o que havia de debate sobre a produção d_s poet_s: lendo as revistas dos anos 1970 — Revista Escrita, José, e O Saco, principalmente, além de ter conseguido naquela época as também incríveis Navilouca e Almanaque Biotônico Vitalidade, que não continham entrevistas ou ensaios, mas cujos projetos eram, em si mesmos, projetos-pensamento —, lendo aquelas revistas comecei a conhecer o que gravitava em torno da escrita, algumas das questões específicas da poesia e outras, do campo ampliado da cultura.

Foi ali pelos vinte e bem poucos que cheguei a Baudelaire, e nesse momento já tinha o hábito de buscar apoios no que havia sido escrito sobre _s poet_s que estava lendo, achava — e não estava exatamente errado — que, por esse caminho, iria encostar melhor na pele dess_s poet_s, perceber seus mínimos movimentos, capturar garrafas de náufrago tantos nos versos como nos espaços entre eles, esse contrabando que poetas mais interessantes fazem embarcar no que escrevem e nem sempre (quase nunca?) são realmente decifrados. Pois aqui, nessa articulação, caí numa armadilha: o que havia me chegado às mãos sobre Baudelaire não passava de uma recepção conservadora – e, por isso mesmo, equivocada – de sua poesia. A leitura pela chave da arte pela arte (o poeta como artista puro e reacionário em política), a ênfase absoluta nos procedimentos técnicos, ótica pela qual ele não diferiria estruturalmente dos parnasianos, a fixação de sua imagem como um dândi, um burguês excêntrico, tudo me levava àquela sensação incômoda de tédio, que nada mais era do que uma recusa do que os comentários sobre a obra faziam aderir a ela, no contexto da minha experiência pessoal de poeta muito jovem e sem grana num subúrbio afastado de uma das periferias do capitalismo.

Essa sensação só começou a se dissipar quando conheci o que Walter Benjamin escreveu sobre a poesia de Flores do Mal, e se afastou de vez quando li os livros de Dolf Oehler sobre o mesmo assunto. Foi por tais leituras que soube que a reação de Brecht a Baudelaire foi semelhante à minha, e mesmo, de um modo geral, a crítica de esquerda até um dado momento — Lukács, Sartre etc. Sob essa chave de interpretação, a leitura caía refém de uma série de esquematismos, mal-entendidos e condenações acríticas, porque, na realidade, Baudelaire cifrou em seus poemas uma crítica profunda a respeito do pensamento burguês e seu modus operandi. Seria uma contradição minha essa recusa ao poeta da arte pela arte, o poeta mestre da técnica, já que considero a técnica (ao lado do conhecimento da tradição) um eixo essencial da poesia? Não, porque a técnica e o conhecimento da história da poesia não são conflitantes com seus aspectos políticos, sociais, além de seu punch existencial. Essa é uma falsa oposição, que, por razões óbvias de espaço, não será possível aprofundar, além de não ser esse o objetivo: o que gostaria de ter exposto era a modificação de meu olhar sobre a poesia baudelairiana, e, com ele, toda a minha compreensão.

Essa longa confissão se deu por conta das artes do Acaso, esse deus quase sempre avaro, mas que tem sido pródigo na minha relação com o RelevO: quase sempre tenho alguns insights prévios sobre esta coluna e, quando recebo o jornal, nele encontro fragmentos que apontam para esses insights. No excelente texto de Greicy P. Bellin sobre os contos de Joyce em Dublinenses , eis que me deparo com uma menção a Baudelaire por conta de sua relação com as transformações de Paris em sua época. De algum modo, também, o poema de Ana Vilalta, por celebrar em sua fatura – e com precisão – uma relação técnica entre poesia e prosa, mostrando como os limites andam mesmo borrados, e também que dessa investigação se pode produzir excelente poesia. Até as traduções de João Moura Fernandes — gostei especialmente das soluções adotadas na versão do poema de Frost — remetem ao Baudelaire tradutor de Poe, assim como as tensões que o poema de Rafael Iotti explora também remete, de algum modo, a ele. Dos textos em prosa, há um pisar no chão do real que me trouxe o trecho de Cerco animal, de Vanessa Lodoño, bem como o humor ácido que se infiltra na dicção do personagem do conto de Marlon Grando, na escolha das palavras que caracterizam uma pessoa de outra geração.

Hoje, penso, não passa despercebido a ninguém que escritor_s, poet_s, folósof_s, crític_s, artistas, todos foram, até há não muito tempo — regra quase geral —, filhos da burguesia, das classes médias, de parcelas bem privilegiadas dessas classes médias. Uma das marcas distintivas da boa literatura, da boa poesia, é o senso de contradição e de oposição com a classe de origem, se essa classe for privilegiada. Baudelaire é apresentado por Oehler, em Terrenos vulcânicos, como um traidor de classe, e Drummond, por Vagner Camilo no excelente livro Da rosa do povo à rosa das trevas, como um deslocado na família, na classe social e na vida pública, um gauche. A saudável diversidade (de classe, de gênero, de orientação sexual) que incidiu sobre o perfil de escritor_s e poet_s mudou a dinâmica como estava estabelecida até o penúltimo quarto do século passado.

A tristeza, a dor e alguma revolta podem nos levar a uma aproximação com o riso — de si mesmo e dos outros — e foi dentro dessa perspectiva que, olhando para a cena da poesia, imaginei a divisão de quem escreve poesia em duas categorias básicas: Poetas da Varanda Gourmet e Poetas Palha de Aço, estes últimos podendo ser chamados de Poetas do Mercadão de Madureira (vocês conhecem o Rio de Janeiro? Caso não, podem trocar por Poetas do Ver o Peso, o antigo, no caso de Belém do Pará. Dica: pesquisem o bairro no contexto do Rio). O mundo literário apresenta a mesma estrutura da sociedade em geral, a mesma divisão de classes, e por vezes de modo nada agradável, para dizer o mínimo, porque inverte os vetores da atribuição de valor, e, em alguns casos, poéticas insípidas são supervalorizadas, e mesmo justificadas teoricamente — o que não as faz menos ruins. Baudelaire seria, aqui, o poeta que desceu da varanda gourmet e veio comer pastel e beber cerveja no Mercadão de Madureira, onde veio se tornar flaneur.

Essa brincadeira pessoal não funciona como esquematização desse pertencimento a mundos diferentes, como se ele possibilitasse ou impedisse a produção de boa ou excelente poesia. Não é tão simples. Uma visão elitista diria que só privilegiad_s são capazes de produzir uma boa escrita, enquanto uma visão populista advogaria que só as classes espoliadas, justamente por essa espoliação, são capazes de produzir poesia de qualidade, posto que crítica. A visão mais realista talvez afirme que só artistas conscientes de suas próprias contradições, estejam onde estiverem, é que podem realizar obras realmente válidas, caso as encarem de frente.

O Baudelaire que habita em mim só se incomodou, na edição de maio, com a menção a Ayn Rand e seu livro A nascente, que defende um individualismo radical bem adequado ao ataque neoliberal de que somos reféns, o que parece ser a tônica da série Mad Men, objeto do artigo da seção Enclave. Por fim, daqui fiquei pensando que o Mateus Ribeirete deve descansar seu corpo massacrado pela Gop Tun 2022 no Relev’Otel Fazenda (vou procurar todas as indicações de som que ele fez, confesso que música eletrônica nunca foi bem a minha praia). Por fim, gostei da viagem em torno do samba de Bide e Marçal, esses bambas cariocas das décadas heroicas da malandragem. Persistente leitor, esteja você no Mercadão de Madureira ou na Varanda Gourmet, pense no junkspace que é o presente em que vamos enfiados até pelo menos o pescoço, e invente as suas formas de rebelião, de não conformismo, como fez Baudelaire pelas ruas de Paris e pelas páginas dos livros — de servidão voluntária já andamos cheios demais.

Sensos e generosidades

Editorial extraído da edição de junho de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos editoriais, clique aqui.


O RelevO sempre se diferenciou de uma organização com fins lucrativos – não só pela desorganização de seus primeiros anos e pela incapacidade de lucrar, contínua – e se assemelhou a uma instituição, operacionalmente. Não entendemos, de forma alguma, que o nosso impresso mensal de literatura desenvolva atividades como as de hospitais, universidades e igrejas (sequer temos crenças). Todavia, acreditamos que temos alguma relevância (com o perdão do trocadilho) tanto em quesitos editoriais como de acessibilidade ao nosso trabalho, que busca apresentar novos autores e descentralizar perspectivas do meio literário (o que também não sabemos se conseguimos, dada a nossa limitação logística). De fato, muito do que fazemos é pelo senso livre e particular de gostar do que fazemos – e de primar absolutamente por continuidade.

Nesses quase 12 anos de existência, apostamos muito em nosso senso de comunidade, promovendo a autocrítica constante, criando o cargo de ombudsman, abrindo ao leitorado as cartas mais negativas possíveis e divulgando o nosso balanço financeiro mensalmente. Não temos vergonha de nossos índices e práticas, que até poderiam ser chamadas de modelo de negócio caso tivéssemos certeza que chegamos até aqui com um plano.

A transparência é um pilar do nosso projeto editorial e não negamos que utilizamos desse expediente para a publicidade de nossas ações. Pagamos os autores e autoras e divulgamos isso. Confiamos em nosso corpo de assinantes para superar crises. Esforçamo-nos para entregar, todo mês, o melhor periódico que conseguimos.

Se não apelamos diretamente para o slogan “Não deixe o RelevO morrer”, não deixamos de reconhecer que sempre expomos nossas fragilidades e dificuldades em busca de compreensão e de suporte financeiro. Também por isso, entendemos como necessário agradecer a cada um que ouve nossos chamados nas circulares mensais direcionadas aos assinantes, que nos escrevem depois de nos encontrar numa biblioteca do interior, gente que manifesta generosidade genuína e se compadece da nossa situação de busca simples por continuidade,. E é apenas isso que buscamos: continuar.

Obrigado. Boa leitura a todos.

Osny Tavares: Cômico é?

Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2021 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Em seu décimo primeiro ano de circulação, o RelevO parece sentir a deriva do tempo. “Sentir a deriva”, note-se, é diferente de “sentir-se à deriva”. É mais uma sensação de meio de viagem, de mar aberto. Ou seja, uma pessoa de trinta e poucos anos de idade. É independente com algum grau de institucionalização. É alternativa com contatinhos no centro. É jovem com alguns fios brancos. 

Será destino de todo aspirante a escritor começar parnaso e terminar cínico? Em um discurso célebre, Leminski afirmou que o verdadeiro poeta era reconhecido na idade. Fazer poesia aos 20 anos era fácil, mas ele queria ver aos 30, 40… Poesia aos 50 anos? Humpf!

Uma porção cada vez maior da identidade do jornal vem sendo moldada pelas páginas de humor. Fixas, produzidas internamente ou por colaboradores regulares, são o que o velho editor da finada imprensa escrita chamava de “respiro”. O produto é ótimo. Criativo, bem desenhado, cheio de referências. Zombar do mundo da cultura e do meio literário (muitas aspas nesses termos todos) é, além de um talento, um privilégio. Mas, tal como as pessoas, os veículos também precisam estar atentos para não transformar o riso em disfarce. 

O RelevO anterior veio com uma sobrecapa cômica. Penso que o editor se permitiu a brincadeira por imaginar que, estando fechados os espaços culturais em que costumava ser distribuído, o jornal tem encontrado poucos leitores incidentais. Dessa forma, não precisava apresentar-se de imediato.

No entanto, a decisão automaticamente rebaixou a capa à página 3. Isso foi uma pena, pois trata-se de uma das ilustrações recentes mais bonitas. Claro, eu poderia simplesmente destacar essa lâmina, que não faz parte da ordem numérica das páginas, e escondê-la no miolo. Porém, me parece bom senso que uma edição é, essencialmente, uma sugestão de condução de leitura. Não havendo qualquer motivo para aquela seção não estar no miolo desde o espelho (essa também é de editor velho!), essa escolha editorial somente se justifica pelo desejo de que este conteúdo seja primordial ao leitor.

O espírito pode, inclusive, estar se espalhando entre os leitores. Em edição também recente, diverti-me largamente com uma resenha sobre um romance chamado Ulisses 2051, que se propunha atualizar Joyce. O autor do texto, que se apresentava como pai do romancista, satirizava as pretensões estéticas e a dependência financeira do resenhado.

Infelizmente, não pude descobrir se o livro, tampouco seu autor e/ou pai resenhista, existem de fato. Nada há em toda a página — entre texto e recursos visuais fixos ou específicos — que distinga a resenha das seções mensais de humor do Jornal. Há, sim, um rodapé informativo com informações técnicas que acompanham toda apresentação real de livros do jornal, mas não me dispus a pesquisar na internet se aqueles títulos estavam, de fato, disponíveis. Afinal, citando a redação, em resposta ao ombudsman na edição passada, “não entendo como fundamental as informações pessoais”. 

PS: Em última e remota hipótese, apenas meu jornal veio encadernado dessa maneira. Se verdadeira, para meu maior constrangimento, todos os problemas editoriais, estéticos e existenciais anteriormente apontados ficariam automaticamente invalidados pela extinção do condicionante. 

Isso, sim, seria bem engraçado.

Morgana Rech: Elaborando o fim

Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2020 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Cinco coisas que pude elaborar durante esse período de ombudsman no RelevO:

 

  1. Tudo pode ser virtualizado. Em cada frase que dirigimos a alguém, um espaço vazio permanece entre como uma caixinha de potencialidades imaginativas. Minha relação com o jornal não tem absolutamente nada de concreta. É virtual na minha liberdade imaginativa; assim como na nuvem de onde falei durante esses cinco meses; assim como nos contatos com quem comigo divide essas páginas, neste oásis mundano que é a arte.
  2. Ser analista de jornal é por pouco tempo. Primeiro, porque ele sabe mais do que eu. Segundo, porque cinco meses é mais do que suficiente para instalar uma relação suficientemente boa entre o jornal e suas estranhezas. Freud atendia seus pacientes-pessoas por pouco mais do que isso, às vezes menos. Não foi analista de jornal, mas de grandes obras de arte, trabalhos que lhe construíram como fundador de alguma coisa.
  3. Existem várias formas de matar um leão por dia, seja transformando-o num tigre preguiçoso, ou deixando-o no silêncio, ou ainda reduzindo a sua presença à significância de uma joaninha.
  4. Continuo sem entender por que é mesmo que eu deveria criticar o jornal. Ninguém entende isso mesmo.
  5. Jornais: especialistas em resistir ao tratamento com as suas múltiplas capacidades de se deslocar e se condensar em imagens, como as de Magritte, que só servem para desviar a atenção do analista.

 

Dizem que, depois da última sessão, o paciente sonha com tudo o que aconteceu durante o percurso. Sua capacidade de sonhar já não será a mesma, dali em diante. São ferramentas e fios novos para tecer, dia e noite e do dia para a noite. Como o RelevO já faz um tecidão pelo Brasil com seu impresso há todos esses anos, só me resta esperar que ele siga contaminando todo mundo, por onde quer que passe, com a sua arte de renovar as nossas esperanças. 

Tempo esgotado.

Cezar Tridapalli: Despedida

Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2019 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Acho curiosa a ênfase que o RelevO dá a suas entradas e saídas financeiras, como se fosse um órgão público financiado com dinheiro público. Esse rigor assíduo das lamentações me faz suspeitar que o jornal quer manter e ampliar a base de assinantes despertando piedades, convocando o altruísmo de quem fala “nossa, coitados, não recebem nada pra fazer isso”. Gostemos ou não, o jornal está dentro da mais lisa e límpida lógica capitalista: vai ter assinante enquanto tiver gente disposta a pagar uns dinheiros para receber uma experiência de leitura impressa. Se, somando e subtraindo as contas mensais de cada um, a experiência valer esses dinheiros, o jornal terá assinantes.

Pode ser nobre abrir as contas e mostrar pudor ao dizer que a equipe cogita receber pelo trabalho. Na prática, não há qualquer necessidade disso. O assinante paga pelo conteúdo do jornal, o anunciante paga para aparecer com um destaque que julgue compatível com o investimento. O que o jornal faz com o dinheiro de assinatura e anúncio não deveria ter nenhum interesse, tal informação no máximo alimenta a fofoca e o imaginário. Qualquer gasto do eventual lucro somente diz respeito a quem o gasta, não a quem paga, pois quem paga, paga pelo jornal e não para saber se a equipe vive mal ou bem. Quer um conteúdo significativo, quer que sua marca apareça decentemente. Ninguém pode chegar falando “ôrra, galera tá ficando rica às minhas custas”, “dia desses vi o editor tomando cerveja artesanal de 14 real”. Resumindo: leitor assinante paga para receber e ler, anunciante paga para aparecer. Equipe do RelevO: faz um jornal que cause desejo e demanda, e envia corretamente. O que liga leitor, anunciante e editor é o jornal, o papel em sua forma e conteúdo. Não de onde assinantes e anunciantes tiram seu dinheiro e nem para onde esse dinheiro vai quando entra na conta da equipe. Não precisa gastar editoriais inteiros para angariar compaixão.

Pode ser cinismo meu, uma coisa muito “gestão empresarial e pragmática” para um jornal que é, veja bem, de literatura, que lida com subjetividades, mas desde o início imaginei que uma das minhas funções fosse estabelecer contrapontos. Exercício de ombudsman lida o tempo todo com a questão do duplo, a gente se desdobra para construir outras lógicas e trazer à tona um olhar novo que, como tal, pretende colocar na cabeça de leitores e editores sempre um “é mesmo!”. Muitas vezes falhamos miseravelmente (que clichê gostoso), mas a gente tenta, é nossa linha do horizonte, a utopia que faz o ombudsman caminhar: provocar um “é mesmo!”. Ou pelo menos testar convicções.

 

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Quando fui convidado pelo editor-chefe deste RelevO, foi-me proposto trabalhar de três a nove edições. Encerro minha participação na quinta. Pode parecer pouco, mas achei sufi ciente. Além de questões pessoais (sempre importante ser ombudsman de si mesmo), percebi que deixei o meu recado, fiz a minha avaliação dos pontos que julguei mais importantes. O periódico tem esse formato de compilação de textos e isso não vai mudar. É diferente de um veículo diário de imprensa com seus vários cadernos e notícias aos montes, que a todo o momento está sujeito a escorregar numa tomada de posição, subestimar alguma pauta fundamental, ser francamente tendencioso em relação a temas que mereceriam ter dois ou mais lados contemplados. Nesses casos, cabe perfeitamente a figura de um ombudsman que fique um ou dois anos. No caso do RelevO, desde que achem mesmo importante manter essa figura – que não seja mero fetiche jornalístico –, temporadas curtas são a meu ver o melhor caminho. Depois de entender o mecanismo de funcionamento do jornal, de apontar pontos fortes e fracos, de perceber que alguns padrões não vão mudar, o que resta?

Tirar o time de campo e dar a vez a outros olhares.

A curta experiência não deixou de ser intrigante para perceber o quanto esse verbo, “perceber”, entra na rede de representações que as pessoas têm dentro de si, recombina o que está lá dentro e gera reações muito diferentes. Leitores me acharam cruel, outros me criticaram por ter puxado o freio nas edições seguintes. Ombudsman não é – ao menos não necessariamente – a figura que chega “para falar mal”. É alguém que compõe o conjunto de olhares sobre uma publicação e que, como qualquer leitor, pode escrever elogiando ou descendo a lenha. A vantagem é que a gente ganha um espaço maior e tem certeza de que será publicado.

Enfim, agradeço o convite e o espaço que ganhei durante cinco meses. Aprendi mais do que ensinei, em que pese a retórica meio demagógica dessa afirmação.

Gisele Barão

Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2018 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Somente em Ponta Grossa (PR), onde moro e trabalho como jornalista e professora de Comunicação, há ao menos quatro clubes de leitura. Todo mês, essas pessoas leem um novo livro, reúnem-se e conversam sobre ele. Para uma cidade com aproximadamente 340 mil habitantes, sempre achei um bom número. Mas ao receber o convite para assumir a função de ombudsman do RelevO, de repente me pareceu pouco. Por que não há clubes de leitura de jornais literários? 

Imagine um grupo que promova reuniões para ler o RelevO ou outro impresso da área e dar pitaco sobre a qualidade da produção. Digo isso também por interesse próprio. É que qualquer leitura fica melhor quando compartilhada com alguém. A vantagem do ombudsman é ter acesso às cartas que os leitores enviam ao jornal; eles são o nosso clube. Melhoram nossa leitura das coisas quando revelam outro ponto de vista, mesmo que não conversem entre si. 

Dependendo das suas condições e características como autor, talvez ninguém se importe mesmo com a sua produção literária. Talvez as cartas dos leitores sejam negativas sobre ela. Mas você não para de escrever, não é? Porque, em certa medida, existe sim um clube, e é isso que vale. Há quem aguarde uma publicação apenas para não gostar dos textos ou simplesmente para não se importar. E tá tudo bem. A gente gosta mesmo é de ter uma pré-seleção, uma indicação sobre o que deve ser lido. Com tanta gente escrevendo neste mundo, para onde podemos olhar com mais atenção?

Escrevo resenhas de livros há três anos para outro impresso, e confesso que poucas vezes busquei conhecer um autor estreante. Talvez os leitores tenham medo de arriscar. Há tantas obras clássicas na fila que nos falta tempo (ou uma gestão mais inteligente do tempo). Mas uma dúvida me provoca: em que ponto da vida a gente deixa de querer conhecer novos escritores? E por quê? Estou animada para percorrer esse breve caminho ao encontro de autores que, em grande parte, não conheço. E orgulhosa por ter o RelevO como guia.