Nuno Rau: Ombudsman na pista pra negócio [ou: o fim pode não ser o fim]

Coluna de ombudsman extraída da edição de dezembro de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


A realidade é dura, car_s leitor_s, e eis que me encontrarei, depois do fechamento da presente edição, demitido de minha tão amada função de ombudsman do RelevO. E não me adianta vociferar contra os editores, brandir com virulência frases de efeito sobre as cruéis leis de mercado, a insensibilidade do capitalismo neoliberal: nada disso seria verdade. Eis que me encontro demitido porque essa é a beleza da função de ombudsman no RelevO: ela é rotativa, e no mês que vem outra cabeça virá dialogar com as páginas do jornal, suas qualidades, eventuais fragilidades, idiossincrasias, bem como com a voz de leitor_s que, pela natureza da mensagem, reclamam (e merecem) diálogo. As linhas acima, com certo quê dramático, são apenas pra ressaltar o gosto com que desempenhei essa função, aderindo ao projeto editorial com amor, e tendo percebido mais ainda, de dentro, a sua inteireza, seu compromisso, sua ética.

No entanto, a função de ombudsman também implicou no diálogo com o presente: o texto da edição de novembro foi escrito sob uma atmosfera carregada de angústia, às vésperas do segundo turno das eleições mais dramaticamente decisivas desde a redemocratização, todos nós atravessados por certo desespero diante do claro avanço do fascismo sobre nossas instituições, com apoio do mercado e das classes médias, essas em que vamos imersos. Provisoriamente vencemos, uma vitória por menos votos do que se esperava, até porque, pelo que soube no contato direto com diversos pontos de meu Rio de Janeiro — que continua lindo e selvagem —, o voto de cabresto foi ostensivamente remixado ao arrepio dos tribunais eleitorais, e de modo tão competente, capilarizado, fragmentado, que nos faz entender o motivo da decepção do candidato fascista e dos milicianos mais próximos a ele: as estratégias espúrias por pouco não deram certo, e eles esperavam realmente ganhar. Não fosse o Nordeste, teriam logrado êxito.

Emergimos do outro lado do túnel nutrindo grandes esperanças, e eis que escrevo esta última coluna sob o céu de Paraty, pedaço de território em que agora se movem escritor_s, poetas, editor_s, leitor_s e outr_s louc_s de plantão em meio a muitos exemplares das classes médias que vêm espargir seu brilho fátuo e fake, edulcorado pelo que capturam por osmose ao discurso da propaganda, enquanto provavelmente sentem um frisson percorrendo a espinha toda vez que os telejornais ou outros veículos mencionam a palavra “mercado”, posto que seus prazeres são profundamente integrados a ele, chegando a emular suas leis mesmo quando não haveria motivo razoável para que isso ocorresse. O pior: esse quadro inclui as parcelas há bem pouco tempo despauperizadas. As classes médias são um fenômeno complexo. Sempre que penso nelas me lembro, entre o riso e a tristeza, de uma reunião entre o centro acadêmico e a direção do IFCS — Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, onde puxei algumas disciplinas, por interesse pessoal (meu curso era Arquitetura), no começo dos anos 1980. No embate político que se dava, a imagem que um amigo empregou para representar os corpos discente e docente do IFCS foi simplesmente genial, pelo poder de síntese de sua metáfora, pelo aspecto inusitado e escatológico, alcançando grande impacto por força do choque (estamos falando de um momento em que a ditadura civil-militar ainda vigia, por mais que estertorasse), e para mim sempre representou também uma imagem fiel das classes médias, onde quer que elas vivam. Nas palavras dele, que tento escavar na memória, “nós somos como aquela parte da merda que, quando bate na água do fundo, espirra e se gruda pelo meio do vaso, e aí ficamos contentes de não estarmos no fundo, mas quando derem a descarga, nosso destino é o mesmo”. Este é o sentimento que guia as classes médias, e faz com que sejam aderentes aos fascismos de toda cepa, e é dessa parcela da sociedade que saem os intelectuais que, em percentual não desprezível — utilizando aqui a terminologia de Gramsci —, agem como prepostos do grupo dominante, comprometidos que estão em garantir que a visão de mundo e as práticas sociais do povo estivessem afinadas com o desenvolvimento da estrutura econômica daquele grupo. Foram intelectuais dessa espécie que emitiram, quase em uníssono, a frase “o mercado reagiu negativamente” quando Lula reafirmou seu maior compromisso de campanha que acabar com a fome é mais importante que respeitar o teto de gastos (que deveria ser entendido como teto de investimentos no bem-estar social). Para combater esse estado de coisas, temos outros intelectuais, dos quais Chico Science fez outra brilhante síntese: “E com o bucho mais cheio comecei a pensar/ Que eu me organizando posso desorganizar/ Que eu desorganizando posso me organizar”. Desorganizar a visão de mundo dominante, desorganizar as bases do capitalismo, que, em sua forma mais estrita, recende a fascismo.

A última edição é toda dedicada à Copa, ao futebol, à literatura dos países que estão na competição, e já vamos quase pela metade do texto sem nada falar sobre a relação entre a pelota e a pena. Pois aqui vamos, então, auxiliados por Pasolini, que, em texto descoberto por meio do livro Veneno remédio: o futebol e o Brasil, de José Miguel Wisnik, fala do futebol como algo que oscila entre a poesia e a prosa. Pasolini acabara de ver o mundial de 1970, e estabeleceu uma relação entre o futebol-prosa da seleção italiana (alheio ao drible por preferir a “prosa coletiva” da construção da jogada ensaiada, o gol nasceria como a conclusão de um raciocínio tornado visível pela organização coletiva), e o futebol-poesia do escrete brasileiro (o drible, o toque de efeito, a alegria gratuita). Na verdade, levei o equivalente a duas odisseias (em tempo, sem dúvida, e parcialmente em atribulações) até começar a ver o futebol sem preconceito. Não estou muito mal acompanhado, tenho a meu lado Lima Barreto, “que viu na adoção do esporte inglês no Brasil a degradação da cultura intelectual, a afirmação de um poder tiranizador e truculento, e uma sobre carga racista que a abolição havia atenuado”, como nos relata Wisnik. Se o velho Lima não estava completamente equivocado, também não acertou em cheio, porque não supôs o que nossa permanente vocação antropófaga faria com o esporte bretão nos campinhos de várzea, de onde surgiram deuses como Didi “Folha Seca”, Garrincha, Tostão, Pelé e talvez o jovem Richarlison, de quem sei pouco mais do que ter vindo do Espírito Santo, e demonstrar uma ética bastante precisa sobre questões sociais. Na contracorrente da visão do futebol que levei anos pra construir, como uma realidade mais complexa e não redutível ao bordão “esporte-alienação”, a percepção de que o mercado (sempre o mercado) atua como um vírus se combinando com as entranhas do esporte, catapultando meninos despreparados ao patamar de milionários em geral deslumbrados que não têm nada a oferecer como modelos para meninos do futuro além da habilidade de seus corpos em campo — não falo aqui do futebol das mulheres porque segue, ainda, outras lógicas, espelho que é das estruturas da sociedade: mulheres executam as mesmas funções ganhando menos, e com menos visibilidade, mesmo apresentando, não raro, maior profissionalismo, desempenho, dedicação, talento.

Como nada é simples, o futebol é também um campo privilegiado de observação do social, reproduz suas grandezas, suas mazelas, as paixões, exclusões, e na literatura, assim como na canção popular, no cinema, nas telenovelas, e em todas as demais manifestações da arte e da indústria cultural, funciona como motor de obras fundamentais — o painel traçado por RelevO é um testemunho disso. Entre os 32 textos selecionados para a edição de novembro, alguns são a representação da complexidade que se move sobre o idioma de cada povo, e a espessura com que certos poemas e trechos de prosa capturam esses movimentos complexos sob os códigos da linguagem nos atinge como um dardo. Os poemas de Elke Erb, Ghazi Al-Gosaibi, Kim Chun-Soo, Akiko Yosano, Irit Amiel, sem falar no poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, sua permanente investigação sobre o mar e a alma humana, e nos versos de Dylan Thomas, sobre seu/nosso ofício ou arte amarga, essa que nos traz aqui para indagar nos versos de tantos lugares do mundo a forma de nosso rosto.

Ao longo desses 12 meses penso não ter feito outra coisa senão perscrutar o que de nosso rosto fragmentário estava posto em cada página do RelevO, o quanto de nossa seiva comum percorria as fibras de celulose das páginas do jornal, imantadas pela tinta negra. O desenho desse rosto será cada vez mais importante como guia para fora do labirinto para onde nos vimos conduzidos, um pouco anestesiados que estávamos, talvez inebriados com as conquistas do campo progressista, parcas ainda, mas conquistas, relativas, mas conquistas, incompletas, mas conquistas distensionando relações, redimensionando estruturas, reelaborando percursos. Houve um lado positivo nesse habitar o labirinto: ao longo da dolorida estadia pudemos contemplar, ao menos parcialmente, a profundidade do abismo que existe quase em todo o entorno, como um fosso, e mesmo que ainda dentro dele conseguimos agora entrever a estreita passagem de volta, como um nada fácil contorno que teremos que cumprir até retomar o empuxo anterior, agora com certeza — sim, esperemos isso — com um sólido princípio de realidade. Queria deixar nessas palavras finais uma provocação aos editores do RelevO, e também a editor_s de todas os veículos de literatura, a escritor_s, poetas, leitor_s: que ações concretas podemos fazer, com ou sem apoio do Estado, para nos afastarmos cada vez mais do labirinto e do abismo que é seu entorno imediato? De que modos podemos sair em campo, mais ainda que antes, com mais força, mais assertividade, mais atenção e fúria, para fazer da literatura um instrumento ainda mais concreto e efetivo de transformação social, sulcando mais fundo a realidade desse presente conturbado?

Por fim, meu muito obrigado aos editores do Jornal pela parceria incondicional, a tod_s _s leitor_s pela interação possível, e que esta edição, que vocês têm em mãos agora, seja um sinal do novo tempo que devemos fazer com nossos corações, nossas mentes, nossas mãos, nossos corpos.

Nuno Rau: Quando o assunto é poesia & literatura não siga nenhuma regra. nem esta [bonus track: saudade dos aviões da panair?]

Coluna de ombudsman extraída da edição de outubro de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


[…] e no entanto, o poema é um objeto que se afirma pela sua precisão, e tal precisão pressupõe regras. A rebeldia inerente a toda criação por certo se sente instada a contestar isso que soa como cárcere, limitação, bloqueio à livre expressão. Percebo agora que as linhas acima merecem uma explicação do que as teria motivado: a mensagem do escritor Igor Castanheira dos Santos, que, motivado pelo desejo de ajudar o jornal, oferece uma série de sugestões que, a despeito de não explicitarem sua motivação, imagino terem por objetivo melhorarem o periódico (o que implica, por óbvio – o que a leitura das sugestões confirma –, a percepção de fragilidades na proposta editorial do RelevO. A intenção é inegavelmente meritória, e o escritor, para que não pensemos que tirou da cartola como uma ninhada de coelhos tal conjunto de providências necessárias, elenca sua formação acadêmica, Ciências Econômicas e Marketing, o que, de saída, suscitaria outro debate, sobre a propriedade de tais formações em relação a uma política e uma prática editoriais no campo da literatura. Antes que se pense que este ombudsman advertiria o bem-intencionado escritor sobre a necessidade de formação específica em literatura ou edição para justificar seu direito a sugestões, esclareço que não, rigorosamente não. A literatura e sua edição se alimentam da diversidade de perspectivas, e qualquer “reserva de mercado” aqui seria um dano, uma limitação perigosa. As ciências da literatura, que nas universidades produzem dissertações e teses mais do que necessárias, ampliam o debate, aprofundam questões, dissecam seu objeto e expõem aspectos antes não observados, alimentam a crítica com novas possíveis abordagens, não precisam provar sua condição de existência; no entanto, se afirmasse que o exercício da criação (e considero aqui também a edição como um exercício de criação) tem como seu caminho incontornável o método científico e o trânsito pela produção acadêmica, essa afirmação seria um distanciamento da realidade. Se assim fosse, verificaríamos que a melhor produção literária viria, incontornavelmente, do mesmo lugar que teses e dissertações, o que está longe de ser uma realidade. Esclarecido este pequeno ponto, preciso, antes de prosseguir, confessar minha má vontade com o que chamam de “marketing”. A má vontade começa com a palavra em si, uma importação provavelmente desnecessária, como approach, asset, budget, coach, lead, trend e toda uma parafernália de palavras em inglês que só comprovam nossa rendição a um (não tão) novo colonizador (alguém atento poderá dizer: mas você aceitou a função de ombudsman, meu caro, veja bem: ombudsman…. É verdade, não tenho resposta para essa objeção, tenho e aceito minhas contradições). Não sei se vocês também sentem vontade de rir quando, numa reunião, alguém abre a boca e, quase sempre com um indisfarçável ar empolado, emite uma frase como “meu budget não prevê essas despesas”. Sempre me ocorrem pensamentos em torno da indigência cultural e da aceitação acrítica do que quer que venha, desnecessariamente, na língua do colonizador. O outro lado dessa má vontade tem a ver com a utilização majoritária do que chamam de marketing: ele tem por objetivo convencer as pessoas a adquirirem, quase sempre, o que não precisam com um dinheiro que não possuem. Seu intuito é fazer com que o Deus Mercado mantenha suas patas sobre a sociedade, e assim sigam existindo exploradores e explorados, os que possuem muito e os que nada possuem. Não, ninguém precisa me dizer que não vamos conseguir fazer a revolução. A contrarrevolução, na realidade, é a tendência mais forte, e a tal ponto que colonizou as consciências até no uso das palavras. É uma longa discussão que não caberia na cota máxima de cerca de 1500 palavras que me cabe no Jornal, e nem pretenderia esgotar.

Feitas as confissões necessárias, volto para o terreno da literatura e da edição, e da necessidade ou não de regras. O título deste mês envolve, na realidade, uma certa provocação, na medida em que o desdigo na primeira frase. A realidade é que falta um termo na equação que o título afirma: quando o assunto é poesia & literatura não siga nenhuma regra, se essa regra representar um consenso socialmente estabelecido. Não se faz arte com base em consensos socialmente estabelecidos. Um exemplo: quando os livros de Rubem Fonseca passaram a ser amplamente reconhecidos como potentes exemplares de uma certa literatura de matriz urbana, passaram a emergir centenas de emuladores e emuladoras da sua escrita, e, o que é pior ainda, a emulação se dava pela superfície, pela aparência, e nenhuma dessas pessoas seguiu o processo de depuração e crítica que o autor de A coleira do cão percorreu até chegar a uma estética precisa. Minha má vontade, nessas horas, também se manifesta, e a tal ponto que passei anos sem conseguir reler Rubem Fonseca, porque sempre me vinham à memória lembranças de seus imitadores. O mesmo com Leminski, um poeta cuja forma é replicada quase ao infinito. Pior destino tem Charles Bukowski, que tem sub-réplicas não só de sua escrita, mas também do drama que encenou em vida envolvendo álcool, sexo e literatura, só que extraído, precisamente, o drama: são apenas garotos de classe média, entediados com suas vidas limitantes e sem imaginação para desenvolver algo próprio (sem falar da misoginia geralmente associada a essa emulação).

Munido das melhores intenções – disso não tenho a menor dúvida –, Igor apresenta suas propostas que, a rigor, não são boas ou ruins em si mesmas, porque dependem de contexto, mas teve, a meu ver, a má sorte de começar com “invistam em textos mais curtos”. Preciso confessar outra má vontade: a apropriação de termos do campo dos negócios para conversas que nada têm a ver com isso me incomoda demais. Quando leio algo como “invistam em textos curtos”, fico pensando nos editores despejando expressivas quantias na aquisição de ações do tipo “textos curtos”, sem saber que a saturação dos mercados, no campo da literatura (e da arte em geral) pode provocar sua queda irreversível, cuja recuperação às vezes dura o tempo de uma geração. Fico imaginando alguém como João Ubaldo Ribeiro lendo uma frase assim, tendo ao fundo, em sua estante, Viva o povo brasileiro. Ou Jorge de Lima, redivivo, escutando que o poema curto é o grande lance, que ninguém lê mais do que 140 caracteres (e aqui nesse texto já vamos pela casa dos 6.300). Quantos caracteres tem Invenção de Orfeu? Pensando bem, talvez haja uma semelhança entre o mercado de ações e a literatura: quando uma grande quantidade de pessoas está indo numa direção, é sempre saudável mensurar a possibilidade de mudar de rumo, porque manadas não raro marcham sem uma percepção dos riscos, justamente porque seus membros acreditam que a maioria sempre está certa, além de ser mais confortável e menos trabalhoso seguir receitas. Enquanto ainda há quem pense que ninguém mais lê além de 140 caracteres, às vezes tudo que quero é ler um romance como Doutor Fausto, ou reler a Divina Comédia (ou Invenção de Orfeu, para não esquecer de Jorge). Quando uma parcela da produção em prosa “investe” em frases curtas, tudo que desejo é me perder na sintaxe de Saramago, em suas labirínticas sentenças que não encontram ponto final. Quando uma massa nada desprezível de textos apontam a experiência urbana na literatura e na poesia, há em mim uma sede de reencontrar Grande sertão: veredas, ou algum(a) novo(a) autor(a) que se debruce sobre a realidade e a linguagem dos rincões desse país continental. Rosa não era isento de regras, muito ao contrário, sua escrita seguia regras rígidas: mas eram suas regras, sua visada crítica sobre o real. Assim também Graciliano, e Clarice, e Hilda, e Rubem, e toda pessoa que quiser fazer arte, que quiser fazer com que as palavras dancem sob a aparente fixidez da tinta sobre o papel (ou dos pixels nas telas).

Na verdade, tudo faz crer que há sempre um mundo estranho lá fora, e esse mundo reclama representação e diálogo. Penso nisso ao ler as propostas de Bolívar Escobar, as exumações textuais de Gloria Evangelina Anzaldúa (que potência!), a síntese e a elisão em Ana Clara Viana, a apropriação dos lugares comuns da fala em contraste com o absurdo da realidade em Zeh Gustavo, a densíssima atmosfera rarefeita dos poemas de Verônica Ramalho (sim, só um oxímoro poderia sintetizar o impacto dessa pequena série). Penso também que os poemas de Natasha Sardzoska, a despeito do mérito da tradução, me trazem a ideia de que saber várias línguas não é garantia de produzir bons poemas e bons livros, porque, como impressão geral, achei os poemas banais, crivados de lugares comuns, à exceção de Testamento. Penso também em como é bom poder estar equivocado em meus juízos provisórios, e em como, não raras vezes, essa provisoriedade vai se instaurando em permanência. Penso em gostar da edição de setembro equilibrar poemas e prosa, e humor, e cultura (as colunas Enclave e Brazilliance mantendo o brilho). Penso, enfim, que os editores tateiam buscando seus caminhos, assim como escritores, e ombusdmans, acertam, erram, mas a beleza está na procura e na não aceitação de regras socialmente impostas.

Bonus track: não posso negar que me divirto de algum modo com a querela literária encenada nas cartas. O tom antigo na elaboração dessa pendenga literária encena um não sei quê de crítica ao próprio argumento da peça, e isso é o que mais me agrada, e diverte. A despeito disso, tenho emoções contraditórias a esse respeito: ao mesmo tempo que sinto um certo fastio em face de qualquer querela no campo literário, em geral produzidas por egos ululantes e bem maiores do que o espaço que os contém, sinto falta das querelas reais, de contendas estéticas em que o problema de nosso presente seja posto em xeque. O oposto da querela é a passada de pano, a ação em grupo de pressão embebida em farisaísmo, e aí o fastio se reveste de náusea. A querela ora em questão, a despeito das diatribes hilárias, não foi exatamente a um ponto, e talvez seja esse meu maior incômodo.

Som incidental: Jonathan Swift comparece na última página do RelevO como o mais jovem e ácido escritor do momento.

Nuno Rau: Notas marginais ao texto de jack london, (ou Pasolini mais moderno que todos nós, procurando irmãos que não existem.)

Coluna de ombudsman extraída da edição de setembro de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


A verdade é que ainda estou em dúvida, e mais que isso: são, agora, mais de duas semanas em estado de suspensão. Perguntar aos editores sobre a verdade estragaria o tribunal íntimo a que me entreguei, não sem um certo prazer. A beleza está muitas vezes no caminho, na deriva, a chegada tem um quê de previsível, a concretude dos fatos pode ser aborrecida e os contornos diluídos abrem possibilidades de sentido – podem também retirar o chão. O fato: não tenho certeza se a seção de cartas está sendo utilizada como espaço de ficção. Não totalmente, porque isso seria sonegar a correspondência real, exercendo uma escrita ora crítica, ora onírica, ora autoelogiosa, algumas vezes vazada de humor, e não é essa a proposta do RelevO na seção “Cartas”. Talvez a dúvida tenha me bloqueado porque a estratégia me interessa muito como forma de questionar o estatuto do real, desabilitar certezas, inserir níveis de indeterminação no sistema – mas há indícios que apontam para a constatação de que aquelas cartas são verdadeiras: (i) o editorial, onde se busca explicar o óbvio (que justamente por ser óbvio nem sempre é percebido), (ii) a afirmação (ficcional) de que “é tudo real” na parte 4 da seção “Enfezadinhos”, e, por fim, (iii) a coexistência com cartas que são reais, foram de fato enviadas. Existe, claro, uma outra hipótese, que é de poetas/escritor_s usarem a seção de correspondência para exercitar um tipo de laboratório, criando tipos, propondo debates por meio dessas cartas-garrafas de náufrago.

De que cartas estou falando? Das cartas-não cartas, as que foram supostamente enviadas por potenciais colaboradores que tiveram seus textos recusados pelo jornal: Renata (ou Renato?) Duque, Feliciano Moreira, Ramiro Gregorin, Ronald Cabello, Alves Viana e Vanderley Gonçalves, reais, imaginários ou reais-imaginários, destilam sua amargura por não conseguirem (ainda, existe sempre um ainda nessa etapa) aceder ao status de autores publicados. Pondo de lado que meus planos consistiam em seguir conversando sobre alguns aspectos da poesia e da prosa contemporâneas, e falar disso a partir das ideias de Pasolini, o desvio que a dúvida causou pode ser útil para alguns aspectos da relação com a escrita. De saída, na hipótese de serem reais as manifestações, o texto de Jack London traduzido por Eder Capobianco tem tudo que aponta para o quão fora de foco elas estão, e de modo tão intenso que essas linhas poderiam ser apenas notas à margem de “Sobre a filosofia de vida do escritor” (p. 6 e 7 da edição de agosto). É curioso como London afirma a escrita como trabalho humano, propõe uma relação com a tradição que não imobilize ou esvazie seus resultados – como é o caso dos chatoboys neoparnasianos e seus sonetos insossos, inermes, inanimados –, e vincula, na medida exata, texto e experiência vital, sendo esta filtrada pelo pensamento. Ele é explícito: “Ao nascer eles [os que London considera talentosos, originais, os que possuem uma filosofia de trabalho] devem ter sido muito semelhantes a todos os bebês, mas de alguma forma, do mundo e de suas tradições eles adquiriram algo que seus companheiros não adquiriram. E isso não era nem mais nem menos do que algo a dizer. Agora você, jovem escritor, tem algo a dizer, ou apenas pensa que tem algo a dizer? Se você tem, não há nada que impeça que você o diga.” Essa última afirmação me faz lembrar de Antônio Abujamra quando disparava a seguinte fala para seus entrevistados no programa “Provocações” “Agora use sua liberdade, a que talvez você nunca tenha tido e que gostaria de ter por um momento, e fale para aquela câmera tudo que você gostaria de dizer”. O efeito da pergunta era, quase invariavelmente, curioso: as pessoas ou travavam ou diziam banalidades – a liberdade de dizer assusta, e na escrita não é muito diferente.

O que London afirma, no entanto, leva a pensar sobre o porquê da escrita. Em certa medida – e acho que já falei sobre isso em alguma edição –, é um ato solitário, mas apesar de existir a outra dimensão, coletiva, social, e apesar de que o ato de publicar seja de fato importante, imprescindível – porque tornar público um texto cria o potencial do diálogo e da crítica –, se quem escreve tem uma relação de dependência quase sôfrega com a publicização do que produz, algo está no lugar errado. Minha premissa é a seguinte: todos devemos escrever indiferentes à recepção, seja de editoras, de revistas, jornais, leitor_s etc. Não se deve buscar alimento nessas relações, elas são o depois da escrita, e podem vir ou não, inclusive de modo desvinculado da qualidade e significado da produção (claro que aqui tangenciamos um terreno complexo, pantanoso e impossível de esgotar no espaço de uma coluna – a definição do que seja qualidade num poema, conto, romance). Há casos bastante emblemáticos e conhecidos em que elas não vieram, ou não vieram com a proporção merecida (Emily Dickinson e Fernando Pessoa, por exemplo), porque ao fim e ao cabo é tudo muito aleatório: premissas de editores, comissões editoriais, júris de concursos, todos que viabilizam a publicação e veiculação do que quer que seja escrito. São tramas complexas, e, nesse campo, ancorar nosso trabalho a expectativas é desviar o foco do mais importante: escrever apesar de, apesar de, apesar de.

Não raras vezes alguém atravessou esse assunto num poema; é o caso de Pasolini, que afirma a potência da escrita em “Eu sou uma força do Passado”, escrito em 1964, aqui em tradução de Régis Bonvicino: “Eu sou uma força do Passado/ Somente na tradição está o meu amor/ Venho das ruínas, das igrejas/ dos retábulos, das aldeias/ abandonadas dos Apeninos ou Pré-Alpes/ onde habitavam os irmãos/ Vago pela Tuscolana como um louco,/ pela Ápia como um cão sem dono./ Vejo os crepúsculos, as manhãs/ de Roma, da Ciociaria, do mundo,/ como os primeiros atos da Pós-História,/ que testemunho, por conta da idade,/ da borda extrema de qualquer época/ sepulta. As vísceras de uma mulher morta/ pariram um ser Monstruoso./ E eu, feto adulto, vagueio/ mais moderno que todos os demais/ a procurar irmãos, que não existem mais”. O poema é carregado de significados complexos, ancorados na História, além de ser composto por muitas camadas. Ser uma força do passado, por exemplo, significa para ele “perceber a parte mais vital de nossa memória, morada de nossas memórias e conflitos”. E compreender o passado é essencial, porque não tê-lo entendido implica em revivê-lo como farsa: “viver o passado em forma de pedra significa remover a parte vital”, segundo o próprio Pier Paolo.

O principal aqui, penso, é perceber que o poema é um modo de estar no mundo, de esgrimir com a História, de enfrentar as contradições, inclusive as nossas – e sob essa ótica o chororô de ser ou não publicado parece vir de quem foi criado a leite com pera e ovomaltine na bandeja. Existe algo mais afastado da poesia, da literatura, da arte? Claro que há: os fascismos, por exemplo. No entanto, deixar de sentir-se o centro do mundo e aproveitar o tempo em trabalhos não contraproducentes como indignar-se por ser recusado me parece mais sintonizado com o que Jack London prescreve. Não custa lembrar também que a longo prazo estaremos todos mortos. Colocar a morte em perspectiva costuma ser um bom exercício para diluir essas veleidades. Outra coisa produtiva é a raiva, bem dirigida, contida em margens de ferro e transmutada em esforço de produção, escrever é trabalho humano que sempre permite ser aprimorado, ajustado. Resumindo ao máximo: é preciso parar de lero-lero e ir à luta.

Mas ainda não falei quase nada sobre o RelevO de agosto… Invertendo o pêndulo de edições anteriores, apenas dois textos em prosa estão presentes: um trecho de “Metamorfoses do Sr. Ovídio”, de Julia Raiz, e “mas que inferno”, de Mariana Soeiro. Contos curtos e pedaços de romances ou novelas não deixam entrever, exatamente, o potencial de um autor, uma autora, trazem sinais desse potencial, e o maior deles é nossa curiosidade por ler mais – o que os dois textos provocaram em mim. A poesia ocupou, também proporcionalmente, mais espaço. As traduções de Piotr Kilanowski para poemas de Halyna Petrosaniak, Vasyl Stus e Serhij Zhadan se ocupam do problema da guerra e suas consequências nos indivíduos, e as boas surpresas que foram os poemas “9 tempos para entrar no mar”, de Raquel Zepka, e “Monocultura”, de Fernanda Lira, panorama que é completado pela tradução feita por Laura Assis do poema “A casa”, da poeta queniana Warsan Shire. Todos os poemas deslocam perspectivas, cada um a seu modo, afirmam um olhar diferente sobre a parte da realidade que trazem à superfície – e este é um traço da poesia que diz ao que veio. No mais, continuo curtindo as colunas Enclave e Brazilliance, sem deixar de lembrar que poesia e ficção são o que fazem de RelevO um jornal sempre esperado por leitor_s (menos pelos recusados indignados).

Pós-escrito: para que todo o acima escrito não ganhe ar de encenação, preciso dizer que antes de escrever os dois últimos parágrafos não aguentei a curiosidade e perguntei ao editor se as cartas eram reais. Não sem algum espanto (porque havia a esperança do contrário) recebi a confirmação: as manifestações indignadas de autores recusados – sim, ao que parece todos do gênero masculino – são absolutamente reais.

Nuno Rau: A aura romântica que paira, impávida, e brilha no céu da pátria em raios fúlgidos, (ou: o conformismo nosso de cada dia.)

Coluna de ombudsman extraída da edição de agosto de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Em Signos em rotação, Octavio Paz começa um ensaio com a seguinte questão: “Começarei por uma confissão – estou certo da existência de alguns poemas escritos nos últimos anos por alguns poetas latino-americanos, mas não o estou da existência da poesia latino-americana.” Sob os efeitos de uma inquietação semelhante, não me soa despropositado dizer que não estou certo da existência de uma poesia brasileira contemporânea, inquietação de fundo – percebo agora depois de alguns meses procurando desempenhar de modo ao menos aceitável a função provisória de ombudsman do jornal RelevO – que atravessa a quase totalidade dos textos elaborados entre março e julho deste ano (e estendo essa quase angústia à prosa de ficção). Tomando o jornal como registro de um dado recorte dessa produção, a questão parece se justificar plenamente; para começar a refletir sobre o problema, confrontemos o conteúdo do editorial de julho com a carta de Ademir Demarchi do mesmo mês. O primeiro nos informa que são recebidos quase 400 textos por mês, o que gera, em razão do espaço disponível (em razão dos custos de impressão, são 24 páginas), uma recusa de 98% do material enviado. Se como termômetro tomarmos também a edição do mês passado, na qual nenhum/a poeta brasileiro/a foi publicado/a, ficamos diante da pergunta: a poesia remetida foi de fato tão inferior à prosa?

Antes de tentar aprofundar a questão, penso que cabe alguma conversa sobre os textos em prosa publicados, ainda diante da exposição pragmática do editorial, com seus 98% de recusas, mas diante, também, da nossa circunstância – e quero dizer com isso: da história, de nossa condição incontornável de animais políticos. Não, não estou estreitando os parâmetros de juízo para privilegiar uma produção que tem por tema explícito as questões especificamente políticas de nosso tempo, que são muitas e candentes; não desejo que todo mundo escreva romances como Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, e Os que bebem como cães, de Francisco de Assis Brasil, ou contos como A morte de D.J. em Paris, de Roberto Drummond, e Você vai voltar pra mim e outros contos, de Bernardo Kucinski. A investigação do aspecto trágico de nossa condição como animais políticos está presente nos contos de Dalton Trevisan, quase sempre debruçados sobre a micropolítica dos afetos, em Nelson Rodrigues e em Cassandra Rios, para não me estender em exemplos. “Primavera ao sol”, de Luis Felipe Mendes dos Santos, não aproveita a concisão necessária ao conto para jogar com possíveis tensões da situação nele desenhada, conformando-se ao pitoresco e ao inusitado; esse lado inusitado é explorado por Fernanda Mellvee n“O amante fantasma”, que também – em meu modo de ver, claro – tem diante de si a oportunidade criada pela trama insólita (ainda que já explorada, por exemplo, em Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado), mas não transita nas possibilidades de exposição mais caricata das fraturas expostas da relação conjugal em sua face micropolítica (impossível não pensar em Madame Bovary, em que Flaubert delineia esse jogo, milimetricamente). A surpresa, para mim, se resumiu ao fragmento do romance Na contramão, Curitiba, de D. K. Montoya, com suas descrições obsessivas, como se tentasse extrair dos detalhes aparentemente insignificantes e banalíssimos a possibilidade de um sentido, numa articulação entre forma e conteúdo que é o cerne da literatura. Não sei se é essa a proposta do romance, mas até para poder comprovar ou não essa intuição, me senti capturado pela vontade de lê-lo. O texto do italiano Alberto Arecchi sobre Opicino de Canistris, apesar de estar entre meus interesses pelo tema (o tempo e o lugar em que a acumulação primitiva do capital foi, talvez, mais interessante – a Itália entre o fim da Idade Média e o Renascimento), não entra nesse argumento por não se tratar de autor brasileiro.

Retornemos, então, à poesia, que na edição passada esteve representada pelas traduções que Piotr Kilanowski trouxe de Jacek Podciadlo, poeta polonês contemporâneo, Irina Ratuchínskaia, porta russa nascida na atual Ucrânia, e Vasyl Symonenko, poeta ucraniano, com três poemas políticos que abordam a impossibilidade de ação diante da experiência totalitária e da guerra (tema candente, no momento em que duas nações imperialistas não vindas do projeto Escamandro, da poeta indiana Tishani Doshi, em que também estão imbricadas questões políticas no campo ampliado. Poesia brasileira contemporânea? territorialistas fazem a Ucrânia de marisco, entre a onda e a pedra); também as traduções, Nada. Aqui chegamos à (des) carta de Ademir Demarchi: “Por falar em poema, esse é um aspecto do jornal que o aproxima do Almanaque do Biotônico, assim como do próprio xarope, com esses textos choramingados e sentimentalóides (‘gotas caem como chuva’, ‘ir garimpar estrumes de vazio’, ‘dói, mas estamos juntos regando plantinhas’, ‘regar as plantas dos pés’, ‘quem é mau, ama com maldade’, ‘o céu é cheio de imortalidades… a língua é sempre doce’, ‘e todas as noites têm lua e todas as noites têm cigarras’), todos textos que o tom marcante de kitsch a esse nano-nanico curitibano chegado a colunas dóricas.” Se tomarmos exclusivamente os trechos apontados, chegaremos à conclusão de que a poesia anda tangenciando a banalidade com roupas de metáfora prêt-à-porter.

Voltemos ao texto de Octavio Paz para investigar suas conclusões. Depois de pôr de lado a poesia brasileira, por sua especificidade em relação à produzida no restante do continente, Paz conclui que a poesia precisa estar conectada a certa continuidade histórica: “Mas história e poesia se cruzam e às vezes coincidem. É indubitável que de Bolívar a Zapata e de Zapata a Fidel Castro – um aristocrata, um camponês e um revolucionário de classe média – há uma certa continuidade, não nas ideias mas nos propósitos profundos e talvez inconscientes. O que alguns chamam de ‘lógica da história’ e outros de ‘destino’. Um poeta latino-americano não pode ser insensível a essa continuidade, encontrar a palavra de origem e fundar uma sociedade não são, no essencial, tarefas contraditórias, mas complementares. Quando a história e a poesia rimam, essa coincidência se chama, por exemplo, Whitman; quando há discórdia entre uma e outra, a dissonância se chama Baudelaire.”

Postos os termos do problema, é importante chamar atenção para a incompreensão de Paz sobre Baudelaire, que também não havia encontrado até então muita compreensão por parte dos críticos de esquerda, amarrados à leitura de seus poemas como expressões da arte pela arte, cuja exceção seria tão somente Walter Benjamin. Mesmo Brecht teria incidido nessa difração da leitura, quando disse: “Baudelaire é a punhalada final nas costas de Blanqui. A derrota de Blanqui é sua vitória de Pirro.” É Dolf Oehler quem demonstra, décadas depois, como o poeta cifra sua escrita como “testemunha de acusação do processo que o proletariado move à classe burguesa”, como apontado por Benjamin, indicando um dos possíveis caminhos que podem ser trilhados com as devidas vênias do presente, suas complexidades e contradições específicas – sem deixar de considerar que, em parte, o século 19 não acabou, o que também se percebe por outra vertente da produção atual, que emula Baudelaire em sua forma (alguns com extenso domínio), sem apropriar sua subversão no jogo dos sentidos, sua maravilhosa traição de classe. Se tais poetas estão em um polo, no outro gravita o grupo de quem aposta na pura expressão, sem qualquer consciência dos debates que atravessam a poesia ao longo das décadas, estabelecendo em sua produção uma posição crítica, como fizeram poetas que marcaram território, como Drummond, Murilo, Cabral, Ana C., Waly, Secchin, Geraldo Carneiro e tant_s outr_s. É de Antonio Carlos Secchin, por sinal, uma das mais precisas observações que já li sobre a relação com a tradição, que não pode significar aprisionamento: “Há muitos modos de aprisionar o transbordamento do mundo, não queiramos que a poesia seja mais um. Ela deve ser a palavra vigorosa, diante de todo arbítrio classificatório, a voz que não se pode perceber senão nas margens. Por isso a poesia representa a fulguração da desordem, o mau caminho do bom senso, o sangramento inestancável do corpo da linguagem, não prometendo nada além de rituais para deus nenhum.”

Novamente este ombudsman recorre a seus estratagemas para se queixar de não haver nenhum poema de poeta brasileir_ contemporâne_ (na edição de junho apareceu um, ao menos), por mais que ache importante haver textos de humor, embora o Mapa baixo astral não siga os passos de edições anteriores, por uma enorme e importante ressalva: o texto escorrega em estereótipos de certo universo masculino que não estão alinhados com um pensamento que se considere crítico. Uma boa referência é a série “Viver do riso”, dirigida por Ingrid Guimarães, que mostra como o humor vem acompanhando as (necessárias) mudanças políticas do mundo (link para um episódio: bityli.com/uNQeoj). Sigo curtindo a nostalgia das colunas Enclave e Brazilliance, mas outra vez chamo aos editores a atenção de que poesia e ficção potentes, distantes da diluição, devem manter espaço nas páginas de RelevO.

Nuno Rau: O fim do fim da história, a morte da morte do autor (ou: o poeta que virou suco.)

Coluna de ombudsman extraída da edição de julho de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


O pós-modernismo surgiu assim como uma espécie de apocalipse incontornável que se abateu sobre o mundo a reboque do neoliberalismo selvagem, e decorado não raras vezes por colunas e frontões escaneados de templos gregos da Antiguidade convertidos ao rés da banalidade absoluta de historicismos desvairados. Numa espécie de ópera-bufa desvairada e formalista, profissionais da arquitetura saíram decalcando esses frontões e colunas dóricas ou jônicas em fachadas de todo tipo de construção – escolas, bancos, estações, residências, shopping-centers etc. Quando todos pensávamos que não havia mais por onde piorar esse desastre, surgiu a fachada padrão das lojas Havan, acrescidas ainda com a cereja do bolo da degeneração estética terceiro-mundista: réplicas da estátua da liberdade em lugar de destaque de sua implantação (do mesmo modo não adiantou Francis Fukuyama preconizar o fim da História, porque as Torres Gêmeas foram ao chão, a Ucrânia segue em guerra por uma disputa entre duas potências imperialistas, e tudo o mais que aconteceu entre esses dois eventos).

Não se se vocês também sentem que quase tudo que vem na esteira do que se convencionou chamar de pós-modernismo soa como uma espécie de vale-tudo, de diluição, repetição insossa; pra mim tem esse gosto, e não importa muito como a gente chame, se de pós-modernidade, tardo-modernidade, hiper-modernidade, ficando tudo pior quando a gente olha em torno e sente que o século XIX pode não ter acabado ainda, que podemos estar presos numa espécie de looping histórico em que fatos e estéticas se repetem numa espécie de série perversa, sensação que fica pior porque vem no bojo de discursos de elogio ao “novo” (parece até aquele partido que leva esse nome, que de novo nada tem, é a velha política das oligarquias numa embalagem edulcorada).

Na literatura esse fenômeno tem muitas faces, e quase todas passam por um completo desconhecimento da História e da tradição. Pois é, esta última palavra é particularmente problemática, mais ainda se for pensada sob a perspectiva do anjo benjaminiano, já que toda tradição está vinculada a um tempo que não passa de catástrofe, espécie de maldição que – não se enganem – atinge também a nós, que problematizamos tudo, das relações à comida, passando pelas definições de poesia e literatura, e talvez tenhamos nos perdido num labirinto de problematizações de tal modo capilarizado que não possibilita a reunião de tudo numa grande frente de real renovação dos modos de vida. Fosse diferente, é provável que não estivéssemos engolfados numa onda reacionária e no aperfeiçoamento constante do receituário do sistema para captura de nossos melhores esforços por uma financeirização e uma mercantilização selvagens. Onde a reação para esse estado de coisas? O que pode literatura, o que pode a poesia contra toda essa depauperação de nossas esperanças?

De digressão em digressão saí, como de costume, do assunto principal: as muitas faces de uma certa diluição na produção literária, e sua possível explicação pelo desconhecimento do que já foi feito. Nos últimos dias um meme circulou bastante pelas redes sociais, e ele, em sua aparente despretensão, explica muita coisa. A cena é a seguinte: um homem vestindo um uniforme militar está de mãos para o alto, rendido pelo que aparenta ser uma patrulha do exército inimigo, que aponta fuzis para o desafortunado. Então ele grita “Não disparem, sou poeta!”, e alguém da patrulha responde: “Prove!”. A resposta é mais ou menos um retrato de parte da produção que circula nas redes: “Não disparem sou poeta!” A questão se funda no que pode fazer de um poema um poema. O século XX, no processo mais do que necessário de questionamento de regras esvaziadas, foi pródigo em declarações bombásticas que, se tomadas integralmente a sério, levam ao polo oposto, um vale-tudo sem margens. Exemplo disso é a declaração de Mário de Andrade (uma figura que acho ainda precisa de mais estudo para que sua luta pela cultura seja compreendida) sobre a natureza do conto: “Conto é tudo o que o autor chamar de conto”. A liberdade que essa declaração pressupõe permite muita produção interessante, que por critérios clássicos seria recusada, mas toda liberdade pressupõe, do mesmo modo, o bom uso, a não incursão no que chamei de vale-tudo, e isso, penso, está numa entrelinha não dita – mas pensada – por Mário. Voltando ao meme: o que ele mostra é aquilo que tem sido chamado, em muitas postagens pelas redes afora, de “empilhamento”: o verso acaba sem razão aparente, sem nada que explique a versura, e segue na linha seguinte para realizar a mesma façanha do sem-sentido. Ou seja, todo o desenvolvimento de técnicas, das quais o enjambement é apenas um exemplo, parece desconhecido, ou é desconhecido mesmo, e aí toda a aventura de escrita das gerações anteriores fica relegada ao desprezo, a uma zona de sombra, tendo como resultado que cada vez temos menos ferramentas de leitura e interpretação do que é escrito.

Existe, no entanto, um outro polo na produção de hoje, que é a de poetas que conhecem muito sobre versificação, métrica, ritmo, todas as questões técnicas do verso, enfim, mas cuja produção parece não ter se descolado do século XIX. Se colocarmos os poemas de “Claro Enigma”, de Drummond, (ou do “Livro de Sonetos”, de Jorge de Lima, ou de “Siciliana” de Murilo Mendes”, entre outros exemplos), ao lado desta parte da produção contemporânea, esses poemas novos soam a naftalina, são como aquelas construções em que se apõem frontões e colunas gregas, sem agregar significado algum. Nesse momento o tempo se embaralha, e penso em Drummond, Jorge e Murilo como “jovens há mais tempo”, torcendo para jogar nesse time, rezando pra que as musas me protejam da água diluída do empilhamento, e da técnica vazia de poemas pomposos e engalanados que não dizem nada.

Paul Valéry conta a seguinte história, que costuma ser muito repetida por aí: certo dia o pintor Degas comentou com Mallarmé, seu amigo, que tinha boas ideias, mas que não conseguia fazer bons poemas. Mallarmé, teria respondido que poemas não se faziam com ideias, mas com palavras. Penso que se Mallarmé soubesse como sua frase seria deturpada décadas afora, teria apenas silenciado diante de Degas. O que Mallarmé quis dizer, por óbvio, é que para escrever poemas é preciso que ideias, boas ideias, sejam materializadas em palavras, e que, para isso, é preciso dominar um código específico, diferente daquele dominado por Degas, e muito bem, para a pintura. É deste domínio que falo, domínio que foi muito afetado pela má incorporação dos avanços das vanguardas históricas – mas isso é outro papo. Uma coisa deve estar soando estranha a vocês: o último número do RelevO trouxe apenas um poema de autora brasileira, o interessante “Talhar na nódoa um precipício”, de Ana Maria Vasconcelos, e estou aqui me estendendo sobre o que seja e o que não seja poesia….

Houve uma compensação, por certo, que foram os dois conjuntos de traduções publicados – os de Adam Zagajewski, Vasil Stus e Serhyi Zhandan, traduzidos por Piotr Kilanowski, e os de Laura Gilpin, traduzidos por Hélio Parente –, além da estreia do acervo da revista Escamandro, trazendo nessa estreia um texto de Guilherme Gontijo Flores sobre Adília Lopes, acompanhado de alguns poemas (há também o flash em três versos de Helena Kolody na contracapa). Esses três conjuntos, bem como o poema de Ana Maria Vasconcelos, provam que a tese de Mallarmé é muito mais ampla do que a redução de um poema ao jogo de palavras. A mesma coisa pode ser dita a respeito da prosa, e o conto de Paulo Moura também comprova isso, mostrando o desenrolar do desespero de um dos personagens diante da constatação de que quase tudo num relacionamento é fluidez e movimento.

Pensando bem, acho que este ombudsman queria se queixar de só haver um poema de poeta brasileir_ contemporâne_ na edição de junho, por mais que se divirta com os textos de humor – “Profissões mais top do agora” e “Relevo Turismo” –, e curta a nostalgia das colunas Enclave e Brazilliance. Talvez um pouco mais de poesia e ficção, que ficou restrita aos contos de Paulo Moura e de Nathália Fernandes, se afinasse com a potência de RelevO, que, penso, é mais do que fundada nessa divulgação.

Nuno Rau: Entre texto, contexto e interpretações (ou: Baudelaire, quem diria, acabou no Mercadão de Madureira…)

Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Confessar, preciso confessar que as primeiras vezes que entrei em contato com a poesia de Baudelaire, algo que estava posto sobre os versos — e entre eles — me fazia sentir um certo incômodo, em parte, e um tanto de tédio. Antes disso, na infância e na adolescência, lia os poemas como uma experiência direta e sem filtro de nenhuma natureza, e foi assim que atravessei românticos, parnasianos, modernos, tudo que se abrigava sob o nome de poesia chamada marginal (que só merecia esse rótulo agregador por sua marginalidade em relação ao mercado), o furacão Fernando Pessoa, e alguns inclassificáveis, como Augusto dos Anjos. Revirando aqui esse tempo, percebo que talvez tenha começado cedo a tentar entender o que existia de pensamento para além das margens dos poemas, o que havia de debate sobre a produção d_s poet_s: lendo as revistas dos anos 1970 — Revista Escrita, José, e O Saco, principalmente, além de ter conseguido naquela época as também incríveis Navilouca e Almanaque Biotônico Vitalidade, que não continham entrevistas ou ensaios, mas cujos projetos eram, em si mesmos, projetos-pensamento —, lendo aquelas revistas comecei a conhecer o que gravitava em torno da escrita, algumas das questões específicas da poesia e outras, do campo ampliado da cultura.

Foi ali pelos vinte e bem poucos que cheguei a Baudelaire, e nesse momento já tinha o hábito de buscar apoios no que havia sido escrito sobre _s poet_s que estava lendo, achava — e não estava exatamente errado — que, por esse caminho, iria encostar melhor na pele dess_s poet_s, perceber seus mínimos movimentos, capturar garrafas de náufrago tantos nos versos como nos espaços entre eles, esse contrabando que poetas mais interessantes fazem embarcar no que escrevem e nem sempre (quase nunca?) são realmente decifrados. Pois aqui, nessa articulação, caí numa armadilha: o que havia me chegado às mãos sobre Baudelaire não passava de uma recepção conservadora – e, por isso mesmo, equivocada – de sua poesia. A leitura pela chave da arte pela arte (o poeta como artista puro e reacionário em política), a ênfase absoluta nos procedimentos técnicos, ótica pela qual ele não diferiria estruturalmente dos parnasianos, a fixação de sua imagem como um dândi, um burguês excêntrico, tudo me levava àquela sensação incômoda de tédio, que nada mais era do que uma recusa do que os comentários sobre a obra faziam aderir a ela, no contexto da minha experiência pessoal de poeta muito jovem e sem grana num subúrbio afastado de uma das periferias do capitalismo.

Essa sensação só começou a se dissipar quando conheci o que Walter Benjamin escreveu sobre a poesia de Flores do Mal, e se afastou de vez quando li os livros de Dolf Oehler sobre o mesmo assunto. Foi por tais leituras que soube que a reação de Brecht a Baudelaire foi semelhante à minha, e mesmo, de um modo geral, a crítica de esquerda até um dado momento — Lukács, Sartre etc. Sob essa chave de interpretação, a leitura caía refém de uma série de esquematismos, mal-entendidos e condenações acríticas, porque, na realidade, Baudelaire cifrou em seus poemas uma crítica profunda a respeito do pensamento burguês e seu modus operandi. Seria uma contradição minha essa recusa ao poeta da arte pela arte, o poeta mestre da técnica, já que considero a técnica (ao lado do conhecimento da tradição) um eixo essencial da poesia? Não, porque a técnica e o conhecimento da história da poesia não são conflitantes com seus aspectos políticos, sociais, além de seu punch existencial. Essa é uma falsa oposição, que, por razões óbvias de espaço, não será possível aprofundar, além de não ser esse o objetivo: o que gostaria de ter exposto era a modificação de meu olhar sobre a poesia baudelairiana, e, com ele, toda a minha compreensão.

Essa longa confissão se deu por conta das artes do Acaso, esse deus quase sempre avaro, mas que tem sido pródigo na minha relação com o RelevO: quase sempre tenho alguns insights prévios sobre esta coluna e, quando recebo o jornal, nele encontro fragmentos que apontam para esses insights. No excelente texto de Greicy P. Bellin sobre os contos de Joyce em Dublinenses , eis que me deparo com uma menção a Baudelaire por conta de sua relação com as transformações de Paris em sua época. De algum modo, também, o poema de Ana Vilalta, por celebrar em sua fatura – e com precisão – uma relação técnica entre poesia e prosa, mostrando como os limites andam mesmo borrados, e também que dessa investigação se pode produzir excelente poesia. Até as traduções de João Moura Fernandes — gostei especialmente das soluções adotadas na versão do poema de Frost — remetem ao Baudelaire tradutor de Poe, assim como as tensões que o poema de Rafael Iotti explora também remete, de algum modo, a ele. Dos textos em prosa, há um pisar no chão do real que me trouxe o trecho de Cerco animal, de Vanessa Lodoño, bem como o humor ácido que se infiltra na dicção do personagem do conto de Marlon Grando, na escolha das palavras que caracterizam uma pessoa de outra geração.

Hoje, penso, não passa despercebido a ninguém que escritor_s, poet_s, folósof_s, crític_s, artistas, todos foram, até há não muito tempo — regra quase geral —, filhos da burguesia, das classes médias, de parcelas bem privilegiadas dessas classes médias. Uma das marcas distintivas da boa literatura, da boa poesia, é o senso de contradição e de oposição com a classe de origem, se essa classe for privilegiada. Baudelaire é apresentado por Oehler, em Terrenos vulcânicos, como um traidor de classe, e Drummond, por Vagner Camilo no excelente livro Da rosa do povo à rosa das trevas, como um deslocado na família, na classe social e na vida pública, um gauche. A saudável diversidade (de classe, de gênero, de orientação sexual) que incidiu sobre o perfil de escritor_s e poet_s mudou a dinâmica como estava estabelecida até o penúltimo quarto do século passado.

A tristeza, a dor e alguma revolta podem nos levar a uma aproximação com o riso — de si mesmo e dos outros — e foi dentro dessa perspectiva que, olhando para a cena da poesia, imaginei a divisão de quem escreve poesia em duas categorias básicas: Poetas da Varanda Gourmet e Poetas Palha de Aço, estes últimos podendo ser chamados de Poetas do Mercadão de Madureira (vocês conhecem o Rio de Janeiro? Caso não, podem trocar por Poetas do Ver o Peso, o antigo, no caso de Belém do Pará. Dica: pesquisem o bairro no contexto do Rio). O mundo literário apresenta a mesma estrutura da sociedade em geral, a mesma divisão de classes, e por vezes de modo nada agradável, para dizer o mínimo, porque inverte os vetores da atribuição de valor, e, em alguns casos, poéticas insípidas são supervalorizadas, e mesmo justificadas teoricamente — o que não as faz menos ruins. Baudelaire seria, aqui, o poeta que desceu da varanda gourmet e veio comer pastel e beber cerveja no Mercadão de Madureira, onde veio se tornar flaneur.

Essa brincadeira pessoal não funciona como esquematização desse pertencimento a mundos diferentes, como se ele possibilitasse ou impedisse a produção de boa ou excelente poesia. Não é tão simples. Uma visão elitista diria que só privilegiad_s são capazes de produzir uma boa escrita, enquanto uma visão populista advogaria que só as classes espoliadas, justamente por essa espoliação, são capazes de produzir poesia de qualidade, posto que crítica. A visão mais realista talvez afirme que só artistas conscientes de suas próprias contradições, estejam onde estiverem, é que podem realizar obras realmente válidas, caso as encarem de frente.

O Baudelaire que habita em mim só se incomodou, na edição de maio, com a menção a Ayn Rand e seu livro A nascente, que defende um individualismo radical bem adequado ao ataque neoliberal de que somos reféns, o que parece ser a tônica da série Mad Men, objeto do artigo da seção Enclave. Por fim, daqui fiquei pensando que o Mateus Ribeirete deve descansar seu corpo massacrado pela Gop Tun 2022 no Relev’Otel Fazenda (vou procurar todas as indicações de som que ele fez, confesso que música eletrônica nunca foi bem a minha praia). Por fim, gostei da viagem em torno do samba de Bide e Marçal, esses bambas cariocas das décadas heroicas da malandragem. Persistente leitor, esteja você no Mercadão de Madureira ou na Varanda Gourmet, pense no junkspace que é o presente em que vamos enfiados até pelo menos o pescoço, e invente as suas formas de rebelião, de não conformismo, como fez Baudelaire pelas ruas de Paris e pelas páginas dos livros — de servidão voluntária já andamos cheios demais.

Nuno Rau: Poet_s vagam atônit_s pelos vãos de um século incendiário (ou: o mundo é um holograma ou essa parada do real é concreta mesmo?)

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


O Acaso é um deus estranho, e sua maior diversão parece ser pregar peças nas pessoas distraídas e desavisadas, às vezes empurrando grandes feitos da História, em outras se satisfazendo com o milimétrico tropeção existencial. O que posso dizer é que foi uma surpresa abrir o RelevO de abril e ver, algumas páginas adentro — meus ímpetos retrô dão saltos mortais triplos de contentamento — as colunas Hi-Fi Braziliance e Enclave. A primeira nos trouxe Dolores Duran com sua “Ternura Antiga”, passeando por diversas versões dessa canção tão delicada, e a segunda estampa a imagem de um cinema, o Fox Bruin Theatre, um palácio de cinema com 670 lugares, localizado no bairro Westwood de Los Angeles, Califórnia, cenário do filme Era uma vez em Hollywood, de Quentin Tarantino… Fosse por aqui não estaria mais de pé, já que os cinemas andam sendo demolidos, as livrarias fechando, os bares tradicionais da boemia sendo transformados em points de playboys, a cidade derretendo e refundindo seus metais em direções que não podemos supor com precisão, sob o influxo do capital volátil e agora também cripto-alado.

Futuros distópicos à parte, algumas coisas postas na edição de abril me jogaram num campo de reflexão: a paixão de Tarantino por uma Hollywood que não existe mais, o poema da pesada de André Giusti (“Talking ‘bout our generation”), as angústias do poeta Felipe Mamone expostas nas cartas d_s leitor_s, a menção a Edmund Burke no conto de Luciana Merley (“Lendo jornal no Mercado Central”), e a própria imagem de um mercado central, que nos grandes centros do Brasil ocupa, em geral, edifícios do século 19, com estruturas em ferro importadas de Manchester, tudo isso junto me levou a pensar sobre a complicada relação com a tradição, o que implica, por complementaridade, na relação com o presente. Observo com agudo interesse o arco tenso da poesia brasileira há bastante tempo, e nesse percurso observei que, a partir dos anos 1980, o interesse de jovens poetas — com raras exceções — parecia, em paralelo a uma insistente ancoragem à dicção cabralina, se descolar do tecido de nossa tradição e buscar referências exógenas: Cristophe Tarkos, Sylvia Plath, William Carlos Williams estão entre _s preferid_s daquela primeira década pós-marginal, quando a maioria se regozijava em conversar com Oswald, Mário, Bandeira, Drummond, e — por que não? — o invasivo Cabral. Ou seja, parece que um corte foi desferido sobre o tecido que vinha sendo trançado desde, ao menos, Gregório de Matos Guerra.

Um ombudsman às vezes percebe que não consegue se afastar de suas obsessões, e mesmo se esforçando para não sair dos trilhos do que se vincula aos materiais do jornal a que se dedica, acaba trocando as pernas em suas ideias fixas: eis que, como confessei acima, poemas, contos, textos e matérias do periódico me jogaram na cara o precioso tema de nossa relação com a tradição, e suas não poucas contradições (que, por sua vez, se trança com a questão de março (para o que olhamos quando estamos escrevendo?) junto com a de abril (que é escrever poesia nesse começo de terceira década do século 21?). No ensaio Sobre tradição, que integra o volume Sem diretriz: Parva aesthetica, Adorno pontua que “o que parece não ter história, ser um puro começo, é antes de tudo uma vítima da história, e tão mais funesta por não ter consciência disto”, e complementa: “O escritor que resiste aos momentos de aparência da tradição, encontra-se contudo enredado nela, sobretudo por meio da linguagem”; como também: “Assim como a tradição aferrada a si mesma é ingênua, também é ingênuo aquilo que carece de tradição em absoluto, pois desconhece o que há de passado nas relações pretensamente puras com as coisas, não turvadas pela poeira do parecer.”

Para pensadores como Adorno e Lukács, a tradição é incompatível com as sociedades burguesas, está sempre em contradição com elas, empenhadas em sua necessidade de fabricar novos produtos (que na arte se caracteriza pela “crescente e incessante obrigação da recusa, segundo Adorno, pela aceleração na troca de movimentos e programas estéticos), autofagocitando tudo com sua força centrípeta. Com a aceleração do empuxo neoliberal, o descarte do passado é motor da produção do novo, cada vez mais, já que seus processos de produção e reprodução são vinculados tão somente à razão instrumental, prática, e não a uma razão integral, totalizante. Ocorre que este passado permanece como fantasma: convertido em forma vazia, sem relação com as formas sociais que lhes deram origem (e igualmente sem a pesquisa de possibilidades de novas relações dessas formas com as formas sociais), vemos o verso livre, as formas fixas, a experiência do poema concreto, a poesia visual serem empregados acriticamente.

É nesse cenário que a recusa da passada de bastão de poetas como Drummond, Murilo, Mário, Jorge de Lima, Cecília, Henriqueta, entre outr_s, repelidos em face de uma tradição exógena, soa deslocada. Alguém pode argumentar que é visível o diálogo com poetas como Ana Cristina César, Torquato Neto, Hilda Hilst, Paulo Leminski e Roberto Piva, mas desconfio que, nestes casos, a aura romântica que paira sobre a imagem de cada um, como um adensamento de matéria simbólica gerado pelo destino trágico que os irmana, se sobrepõe aos aspectos realmente significativos da obra de cada um, refletindo apenas apreensão superficial, porque sem conversar com a concepção de mundo dest_s poetas, com a História, com suas estéticas. Em lugar disso, a forma pura, o gesto esvaziado de conteúdo.

É nesse contexto, de quem apercebeu-se que o verso não morreu, e que temos que lidar com a falência das utopias (junto com elas, em direção aos mesmos ralos, foram as vanguardas), é que podemos ir conversando criticamente com vozes que vieram antes de nós: a tradição é algo que a gente ama, mas é também, e sempre, o indício de uma tragédia, muitas aliás, que nos trouxeram até aqui – nosso tempo espelha conflitos e contradições que eram ainda mais intensos no século anterior: machismo, racismo, sexismo, a exploração do trabalho, tudo enfim que representa um rol de bandeiras pra gente, agora, e cada vez mais. Não há território pacífico. Quem me conhece sabe que gosto de brincar com sonetos, por exemplo, e isso tem dois lados. Um lado é não afastar uma forma que foi criada e desenvolvida por pessoas como nós, e que tem um teor de atualidade que pode ser recuperado, desde que bem feita a abordagem, desde que não sejamos neoparnasianos, ou tentemos apenas emular a intensidade com que Drummond, Murilo e Jorge de Lima se aplicaram nessa forma, munidos das potências simbólicas de seu tempo. O outro lado é: nenhuma forma nos chega pura, as formas vêm sujas de História, e toda História humana é barbárie (cf. Benjamin).

Não pensar nisso é ser inocente, seja para negar o já feito, seja para abraçá-lo. Isso vale também, e muito, para a apropriação dos ganhos do concretismo. Os textos e manifestos do concretismo e da poesia práxis do período heroico chegam a ser ridículos pela sua fé absoluta no progresso da técnica, o que significava uma adesão a um modelo que politicamente, na prática, estava em contradição com as crenças dos poetas, porque os irmãos Campos, Décio e os demais se opuseram, tanto quanto a turma do Chamie, ao regime do golpe civil-militar de 1964. Resumindo: vivemos sobre um chão de brasas, está ardendo, e a gente se mover é difícil, há gases estupefacientes no ar nublando a visão e toldando a compreensão. Estar no presente de corpo inteiro (e é só isso que temos, todos) é sempre uma aventura complexa em qualquer época.

E para não dizer que não falei da prosa, achei muito interessante que os contos “Emprendedores”, de Cid Brasil, “Lendo jornal no Mercado Central”, de Luciana Merley, o hilário “Celsinho Kaizen”, dos editores, “Estranhos na noite”, do uruguaio Rodolfo Caravia, em tradução de Johann Heyss, bem como o ensaio “Abrace o caos,” de Otávio de Moura Brandão, todos dialogam com fragmentos de nosso mundo atomizado e fetichizado.

Fato é que gostaria de investir uns poucos cobres em ações da cerveja BuZazen, do Celsinho Kaizen (leiam o conto, não vou dar spoiler), deve arrebentar nas vendas, e quem sabe mesmo acionistas mini-mini-minoritários consigam desconto na compra… Tem que ser divertida — apesar dos aspectos distópicos — a aventura: isso é o que nos salva em meio a um século incendiário.

Nuno Rau: O sexo é mais importante que a poesia (e que a prosa) (ou: Vicente de Carvalho não era um normal.)

Coluna de ombudsman extraída da edição de abril de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Não, prezad_s leitor_s do RelevO. Apesar de abril ser o mais cruel dos meses, criando lilases da terra morta, misturando memória e desejo, ao menos segundo o poeta que, a despeito de ser um conservador, mexeu na água parada da poesia de seu tempo (em qualquer tempo nunca está de todo parada, nunca de todo fazendo onda, ainda que a marola seja muita), este ombudsman ficou apenas preocupado com o editorial de março, que nos relembra o aumento exponencial da conta de luz, o preço da gasolina, os custos postais de envio, tudo isso que torna uma equação complexa o simples fechamento do balancete mensal do jornal, pelo equilíbrio cada vez mais difícil das colunas “créditos” e “débitos”.

Vida de editor é um calvário em vida — excetuando-se, talvez, os daquelas mega-editoras como a Record, a Companhia das Letras, a Penalux e a Patuá (vamos sonhar, Wilson, Tonho e Edu!) —, e só a paixão pela atividade, somada a certa dose de falta de juízo, justifica que uma pessoa dispenda horas que poderia empregar em atividades muito mais lucrativas apenas pra fazer chegar a leitor_s que sequer conhece pessoalmente, na maioria dos casos, um recorte da produção contemporânea de poesia, literatura, tradução etc. Mergulhado em preocupação com o equilíbrio financeiro do Jornal, pensei em formular um título de algum modo sensacionalista para, quem sabe, trazer mais assinantes, e animar alguns daqueles que, combalidos pelos embates da vida (e principalmente impactados pela mesma espiral inflacionária em que o atual desgoverno tem nos mergulhado com cada vez mais traços de sadismo), estejam pensando, dentre as despesas a eliminar, justamente nesse veículo de cultura. Se conseguir, com isso, manter um assinante, já me sinto justificado.

A lembrança do abril de Eliot, no entanto, tem muito mais a ver com nosso presente: The Waste Land foi quase inteiramente escrito sob a influência da pandemia global que abalou o mundo quando mal acabava a Primeira Grande Guerra: a gripe espanhola. Eliot e Vivien Haigh-Wood, sua esposa na época, contraíram o vírus em dezembro de 1918. A guerra havia terminado um mês antes, e o vírus espalhou-se pelo mundo, impulsionado pela movimentação de tropas, com primeiro e maior impacto nos países que participaram do conflito. Contam que Eliot escreveu grande parte do poema durante sua recuperação, e não deve ser fortuita a sobreposição de imagens do Inferno de Dante à paisagem urbana de Londres. Fato é que vamos, agora em 2022, pela casa de 660 mil mortes pela COVID-19 só no Brasil, às voltas com uma guerra movida por interesses de duas potências imperialistas e seus afãs de expansão, com potencial de se tornar um conflito mundial, e com o neoliberalismo fazendo estragos cada vez maiores em nossas consciências, entre outros desastres mais ou menos anunciados. No campo das relações pessoais, somos expostos a todo tipo de preconceito e retrocesso, esbarrando com canalhas que estavam com suas partes podres escondidas em armários lacrados nos últimos anos, e resolveram expô-las com inacreditável orgulho.

Impossível aqui não abrir outro breve parêntesis. Como é bem sabido, Marx escreveu na abertura de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, de 1852: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira como tragédia, a segunda como farsa”. O que dizer quando comparamos os acontecimentos do Brasil atual com o fato de que, em plena gripe espanhola, os países não divulgavam notícias sobre a doença, como, por exemplo, fez o presidente norte americano Woodrow Wilson (1856-1924), ao censurar a imprensa para que as mortes não fossem noticiadas. As fake news também grassavam, ainda que não tivessem este nome: como a Espanha não estava envolvida diretamente na Primeira Grande Guerra, as notícias sobre a doença vinham de lá, e, por tal motivo, a gripe ficou conhecida como “espanhola”. Qualquer semelhança com o presente não é mera coincidência.

Mas voltando ao que nos interessa mais, como toda obra que não mergulha na banalidade, o poema eliotiano não é uma coisa só, não é apenas uma notícia cifrada sobre pandemia e guerra: ele descreve e encarna a grande crise da cultura ocidental dos inícios do século, teorizada depois por Adorno, entre outros, crise que arrisco dizer que ainda nos afeta, nesse momento tardo-moderno, pós-moderno para alguns. Trazendo para mais perto de nós, essa crise só foi de fato integrada ao pensamento de Mário de Andrade mais de quinze anos depois (The Waste Land é de 1922), a partir de 1938, na longa crise pessoal desencadeada pelo fim da experiência do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, órgão que ele capitaneou ao longo de três intensos anos, uma história que precisaria ser mais bem conhecida por todos, porque nos faz compreender muito do que nos caracteriza e nos afeta hoje como país. Essa aventura, somada ao fato de que Mário considerava que toda arte possui um significado coletivo, e que devemos nos precaver contra todo formalismo e individualismo, também explica, em parte, a desilusão dele com os rumos do modernismo, desilusão que é, de muitos modos, a tônica de Drummond em Claro Enigma, publicado em 1951, e provavelmente seja o fundo obscuro que move os poemas do Livro de Sonetos (1949), de Jorge de Lima, e alguns outros.

Nesse contexto — e a história necessita que a olhemos com viés sempre crítico —, a alegre crença no progresso do Concretismo em seus primeiros anos soa como uma inocência sem par, a despeito do que seu ímpeto nos trouxe de bom. Meu argumento aqui é de que vamos em meio à mesma crise, o aprofundamento das estratégias do capitalismo para permear todos os âmbitos de nossas vidas e converter tudo em moeda, crise que cada geração encara de modo diferente. Não sei para vocês, mas é o que vejo quando leio os poemas de Maria Cristina Martins, Maria Clara Viana, o poema-pedrada de Gary Snyder traduzido por Morgana Feijão, ou ainda os exercícios de suprarrealismo de Paul Éluard, traduzidos por Henrique Nascimento. Em tempos bem diferentes, parece que um vetor comum os atravessa como motor, como ignição da escrita. O mesmo nos contos de Rodrigo Neves, Fernanda Mellvee, Dan Porto, ou os textos não assinados (Rinha de Especialistas, uma delícia, e a “notícia” sobre o primeiro disco nacional fumável). Destoa um pouco o nosso bom e velho Vicente de Carvalho, que por uma questão de rigidez geracional não conseguiu ouvir a Balada do Louco, com os Mutantes. Teria lhe feito bem, certamente. Cabem menções à coluna Enclave, que me fez sentir nos anos 1970 ouvindo um álbum dos 2000 (confesso que não conhecia o Nicola Conte, e que achei o som dele bastante careta), e à história de “Anoiteceu”, canção de Francis Hime e Vinícius de Moraes (esses não serão nunca caretas).

Talvez caiba aqui voltar à questão: o que é escrever poesia (e conto, e romance, e ensaio) nesse começo de terceira década do século 21? Para o que olhamos? De que modo olhamos? O que podemos arrancar das convulsões do tempo presente? Estamos indo em rumos acertados? Existem rumos acertados? Quando leio os textos do RelevO (assim como os da revista em que sou coeditor) sempre me atravessam, e nunca pacificamente, tais perguntas. Do mesmo modo quando escrevo um poema.

Para finalizar, não custa lembrar aos mais distraídos e aos inocentes do Leblon (cf. CDA): o mundo ainda não deu certo, e vamos imersos em muitos dos mesmos problemas dos séculos 18, 19, 20, fora os que a criatividade humana conseguiu produzir depois. Alguma dúvida? Basta entrar num grupo de WhatsApp bolsonarista, ler algum texto produzido pela Empiricus Research ou escutar qualquer pronunciamento do Paulo Guedes como ministro. Depois dessas longas digressões, volto ao título: sexo e poesia, embora não sejam incompossíveis, não são esferas que possam ser comparadas deste modo rasteiro, a não ser pelo fato de que sexo ruim e poesia idem causam, depois, a mesma sensação desagradável, e que um bom poema pode ser comparável ao sexo no prazer que causa (sem maiores detalhes). Não se pode, assim, estabelecer uma escala entre os dois campos, nem por metáfora.

Nuno Rau: (ou: para o que olhamos, e como olhamos?)

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Um recente e nada feliz episódio envolveu o exercício da crítica e tem muito a dizer sobre quão tênue é o ponto em que estamos. O crítico Luiz Maurício Azevedo publicou uma resenha sobre o livro de um autor negro, caracterizando o trabalho como “literatura ruim”, e fundamentando tal juízo. Luiz Maurício é um intelectual negro e passou a sofrer ataques de milícias digitais, inclusive ameaças de morte: inconcebível que um crítico negro faça uma análise com rigor e, sobretudo, sem condescendência, de autor ou autora também negros. O mundo é desigual, as oportunidades, assimétricas, a meritocracia não passa de uma lenda inventada propagada pelos que têm meios, e o preconceito de várias matrizes segue ululante por aí, não raras vezes sem pudor de expor sua fisionomia podre; contudo, qualquer condescendência com a produção da arte nos empurra para o empobrecimento do debate estético imprescindível até para mudar o mundo acima descrito. Importante ressaltar também que manifestações assim, além de ferirem a autonomia da crítica, afastam muitas pessoas do exercício que é pensar sobre literatura, pelo receio do cancelamento, uma prática, no geral, daninha e antidemocrática – não será demais esclarecer que não me refiro aqui a opiniões preconceituosas e sem lastro, o que vemos por aí não raras vezes, que devem ser respondidas e problematizadas.

Tenho algumas hipóteses para o eclipse da crítica, e não cabe aqui descrevê-las, apenas dizer que uma delas é o receio do confronto em um mundo em que fatos como o reportado não são exceção, o que dá uma certa nostalgia do não vivido quando lemos Antonio Candido, Sérgio Buarque de Hollanda, o implacável Mário Faustino, que, em suas análises de livros e autores na página Poesia Experiência, do Jornal do Brasil, falava sem meias palavras e sem chapa branca sobre o bom e o ruim a seus olhos, e com fundamento.

Resolvi começar a aventura temerária que é ocupar a função de ombudsman de RelevO por esse assunto movido pelo editorial de fevereiro de 2002, que define, muito a propósito, a tarefa de editoras e editores como delicado e complexo exercício crítico. Também quixotesco, o que os editores devem considerar um elogio, já que este ombudsman nutre um nada secreto amor pelas pessoas que investem com todas as suas forças contra moinhos de vento.


Partindo desse olhar, ao ler os textos, contos e poemas selecionados para a edição, uma pergunta que sempre me ocorre marcou presença de novo: para o que olhamos quando estamos escrevendo? e como olhamos? Essas questões, aparentemente simples, constituem um dos pontos nevrálgicos da atividade de quem escreve. A quem isso importa? Não sei, ao certo. Na sociedade capitalista tudo é convertido em mercadoria, com exceção da poesia (quase sempre, porque mesmo os livros editados em pequenas editoras acabam virando objeto de escambo e fugindo à lógica mais estrita do mercado), e da ficção (uma parte, a que não consta dos catálogos das grandes editoras, pelo mesmo raciocínio). A poesia e certa prosa acabam resistindo, mas não sem pagar um pesado tributo: o da intransitividade social. Quem lê, afinal? Editoras e editores leem, por dever de ofício, em geral escolhido também por prazer, e fiquei pensando nos quase mil textos lidos, como exposto no Editorial, para extrair 50 dos quais foram selecionados os publicados: dois poemas, cinco contos, duas traduções (uma coletânea de poemas e um poema isolado).

Começando pelas traduções, foi uma alegria ler poemas de William Carlos Williams, poeta do corte e da síntese, e Joyce Mansur, com seu incêndio surrealista embebido de micro e macropolítica. Dos demais textos, preciso confessar que senti certo estranhamento pelo fato de sua quase totalidade ter como temática o campo – vasto e variado – das relações interpessoais; deles, me aproximei e afastei em proporções variadas. Tenho como premissa que, para escrever sobre um tema já muito percorrido, é preciso uma abordagem original, é preciso não cair nas armadilhas do lugar comum, ou, por outro lado, extrair do lugar comum a sua potência máxima, o que não é nada simples. Não se trata de defender uma literatura política strictu sensu, o que seria, no mínimo, ingenuidade, posto que tudo é político, inclusive o amor.

A questão aqui pode ser mais bem referida pelo título mesmo do Editorial: “Saber ser novo, saber ser atual”. Impossível não lembrar do ensaio seminal de Agamben, O que é o contemporâneo, em que, partindo do pensamento de Nietzsche e de um poema de Ossip Mandelstam, o filósofo reflete sobre a relação possível e necessária de cada um com seu presente. Pensando com Nietzsche quando afirma que “pertence verdadeiramente a seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões, e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas exatamente por isso, exatamente por através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo”, ele conclui afirmando que “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para perceber não as luzes, mas o escuro”. Por essa via, me pergunto sempre, e de novo: para onde olhamos? Os séculos que nos precederam foram campos de conflito, e esse 21 não parece diferir em nada, com seus enfrentamentos socioeconômicos trágicos, o avanço violento do neoliberalismo, o campo da cultura envolto em contradições, sendo a literatura muitas vezes imersa e paradoxalmente propalando o sistema que negaria e que, em tese, proporia diverso, como aconteceu com boa parte da produção modernista.

Um jornal de literatura como o RelevO deve levantar essas questões, em quem o lê, elas não são realmente simples e se ligam a nossos estar agora e aqui. O que vocês acham, companheir_s de viagem no RelevO?

Aproveito para agradecer o convite do editor do periódico, que constitui uma grande oportunidade de exercer um olhar sobre a produção contemporânea, e mais ainda pela autonomia que, muito eticamente, o jornal confere aos que ocupam esta função.

Nuno Rau: A crítica está morta, mas respira relativamente bem (ou: para o que olhamos, e como olhamos?)

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Um recente e nada feliz episódio envolveu o exercício da crítica e tem muito a dizer sobre quão tênue é o ponto em que estamos. O crítico Luiz Maurício Azevedo publicou uma resenha sobre o livro de um autor negro, caracterizando o trabalho como “literatura ruim”, e fundamentando tal juízo. Luiz Maurício é um intelectual negro e passou a sofrer ataques de milícias digitais, inclusive ameaças de morte: inconcebível que um crítico negro faça uma análise com rigor e, sobretudo, sem condescendência, de autor ou autora também negros. O mundo é desigual, as oportunidades, assimétricas, a meritocracia não passa de uma lenda inventada propagada pelos que têm meios, e o preconceito de várias matrizes segue ululante por aí, não raras vezes sem pudor de expor sua fisionomia podre; contudo, qualquer condescendência com a produção da arte nos empurra para o empobrecimento do debate estético imprescindível até para mudar o mundo acima descrito. Importante ressaltar também que manifestações assim, além de ferirem a autonomia da crítica, afastam muitas pessoas do exercício que é pensar sobre literatura, pelo receio do cancelamento, uma prática, no geral, daninha e antidemocrática – não será demais esclarecer que não me refiro aqui a opiniões preconceituosas e sem lastro, o que vemos por aí não raras vezes, que devem ser respondidas e problematizadas.

Tenho algumas hipóteses para o eclipse da crítica, e não cabe aqui descrevê-las, apenas dizer que uma delas é o receio do confronto em um mundo em que fatos como o reportado não são exceção, o que dá uma certa nostalgia do não vivido quando lemos Antonio Candido, Sérgio Buarque de Hollanda, o implacável Mário Faustino, que, em suas análises de livros e autores na página Poesia Experiência, do Jornal do Brasil, falava sem meias palavras e sem chapa branca sobre o bom e o ruim a seus olhos, e com fundamento.

Resolvi começar a aventura temerária que é ocupar a função de ombudsman de RelevO por esse assunto movido pelo editorial de fevereiro de 2002, que define, muito a propósito, a tarefa de editoras e editores como delicado e complexo exercício crítico. Também quixotesco, o que os editores devem considerar um elogio, já que este ombudsman nutre um nada secreto amor pelas pessoas que investem com todas as suas forças contra moinhos de vento.

Partindo desse olhar, ao ler os textos, contos e poemas selecionados para a edição, uma pergunta que sempre me ocorre marcou presença de novo: para o que olhamos quando estamos escrevendo? e como olhamos? Essas questões, aparentemente simples, constituem um dos pontos nevrálgicos da atividade de quem escreve. A quem isso importa? Não sei, ao certo. Na sociedade capitalista tudo é convertido em mercadoria, com exceção da poesia (quase sempre, porque mesmo os livros editados em pequenas editoras acabam virando objeto de escambo e fugindo à lógica mais estrita do mercado), e da ficção (uma parte, a que não consta dos catálogos das grandes editoras, pelo mesmo raciocínio). A poesia e certa prosa acabam resistindo, mas não sem pagar um pesado tributo: o da instransitividade social. Quem lê, afinal? Editoras e editores leem, por dever de ofício, em geral escolhido também por prazer, e fiquei pensando nos quase mil textos lidos, como exposto no Editorial, para extrair 50 dos quais foram selecionados os publicados: dois poemas, cinco contos, duas traduções (uma coletânea de poemas e um poema isolado).

Começando pelas traduções, foi uma alegria ler poemas de William Carlos Williams, poeta do corte e da síntese, e Joyce Mansur, com seu incêndio surrealista embebido de micro e macropolítica. Dos demais textos, preciso confessar que senti certo estranhamento pelo fato de sua quase totalidade ter como temática o campo – vasto e variado – das relações interpessoais; deles, me aproximei e afastei em proporções variadas. Tenho como premissa que, para escrever sobre um tema já muito percorrido, é preciso uma abordagem original, é preciso não cair nas armadilhas do lugar comum, ou, por outro lado, extrair do lugar comum a sua potência máxima, o que não é nada simples. Não se trata de defender uma literatura política strictu sensu, o que seria, no mínimo, ingenuidade, posto que tudo é político, inclusive o amor.

A questão aqui pode ser mais bem referida pelo título mesmo do Editorial: “Saber ser novo, saber ser atual”. Impossível não lembrar do ensaio seminal de Agamben, O que é o contemporâneo?, em que, partindo do pensamento de Nietzsche e de um poema de Ossip Mandelstam, o filósofo reflete sobre a relação possível e necessária de cada um com seu presente. Pensando com Nietzsche quando afirma que “pertence verdadeiramente a seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões, e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas exatamente por isso, exatamente por através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo”, ele conclui afirmando que “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para perceber não as luzes, mas o escuro”. Por essa via, me pergunto sempre, e de novo: para onde olhamos? Os séculos que nos precederam foram campos de conflito, e esse 21 não parece diferir em nada, com seus enfrentamentos socioeconômicos trágicos, o avanço violento do neoliberalismo, o campo da cultura envolto em contradições, sendo a literatura muitas vezes imersa e paradoxalmente propalando o sistema que negaria e que, em tese, proporia diverso, como aconteceu com boa parte da produção modernista.

Um jornal de literatura como o RelevO deve levantar essas questões, em quem o lê, elas não são realmente simples e se ligam a nossos estar agora e aqui. O que vocês acham, companheir_s de viagem no RelevO?

Aproveito para agradecer o convite do editor do periódico, que constitui uma grande oportunidade de exercer um olhar sobre a produção contemporânea, e mais ainda pela autonomia que, muito eticamente, o jornal confere aos que ocupam esta função.