Nuno Rau: O sexo é mais importante que a poesia (e que a prosa) (ou: Vicente de Carvalho não era um normal.)

Coluna de ombudsman extraída da edição de abril de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Não, prezad_s leitor_s do RelevO. Apesar de abril ser o mais cruel dos meses, criando lilases da terra morta, misturando memória e desejo, ao menos segundo o poeta que, a despeito de ser um conservador, mexeu na água parada da poesia de seu tempo (em qualquer tempo nunca está de todo parada, nunca de todo fazendo onda, ainda que a marola seja muita), este ombudsman ficou apenas preocupado com o editorial de março, que nos relembra o aumento exponencial da conta de luz, o preço da gasolina, os custos postais de envio, tudo isso que torna uma equação complexa o simples fechamento do balancete mensal do jornal, pelo equilíbrio cada vez mais difícil das colunas “créditos” e “débitos”.

Vida de editor é um calvário em vida — excetuando-se, talvez, os daquelas mega-editoras como a Record, a Companhia das Letras, a Penalux e a Patuá (vamos sonhar, Wilson, Tonho e Edu!) —, e só a paixão pela atividade, somada a certa dose de falta de juízo, justifica que uma pessoa dispenda horas que poderia empregar em atividades muito mais lucrativas apenas pra fazer chegar a leitor_s que sequer conhece pessoalmente, na maioria dos casos, um recorte da produção contemporânea de poesia, literatura, tradução etc. Mergulhado em preocupação com o equilíbrio financeiro do Jornal, pensei em formular um título de algum modo sensacionalista para, quem sabe, trazer mais assinantes, e animar alguns daqueles que, combalidos pelos embates da vida (e principalmente impactados pela mesma espiral inflacionária em que o atual desgoverno tem nos mergulhado com cada vez mais traços de sadismo), estejam pensando, dentre as despesas a eliminar, justamente nesse veículo de cultura. Se conseguir, com isso, manter um assinante, já me sinto justificado.

A lembrança do abril de Eliot, no entanto, tem muito mais a ver com nosso presente: The Waste Land foi quase inteiramente escrito sob a influência da pandemia global que abalou o mundo quando mal acabava a Primeira Grande Guerra: a gripe espanhola. Eliot e Vivien Haigh-Wood, sua esposa na época, contraíram o vírus em dezembro de 1918. A guerra havia terminado um mês antes, e o vírus espalhou-se pelo mundo, impulsionado pela movimentação de tropas, com primeiro e maior impacto nos países que participaram do conflito. Contam que Eliot escreveu grande parte do poema durante sua recuperação, e não deve ser fortuita a sobreposição de imagens do Inferno de Dante à paisagem urbana de Londres. Fato é que vamos, agora em 2022, pela casa de 660 mil mortes pela COVID-19 só no Brasil, às voltas com uma guerra movida por interesses de duas potências imperialistas e seus afãs de expansão, com potencial de se tornar um conflito mundial, e com o neoliberalismo fazendo estragos cada vez maiores em nossas consciências, entre outros desastres mais ou menos anunciados. No campo das relações pessoais, somos expostos a todo tipo de preconceito e retrocesso, esbarrando com canalhas que estavam com suas partes podres escondidas em armários lacrados nos últimos anos, e resolveram expô-las com inacreditável orgulho.

Impossível aqui não abrir outro breve parêntesis. Como é bem sabido, Marx escreveu na abertura de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, de 1852: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira como tragédia, a segunda como farsa”. O que dizer quando comparamos os acontecimentos do Brasil atual com o fato de que, em plena gripe espanhola, os países não divulgavam notícias sobre a doença, como, por exemplo, fez o presidente norte americano Woodrow Wilson (1856-1924), ao censurar a imprensa para que as mortes não fossem noticiadas. As fake news também grassavam, ainda que não tivessem este nome: como a Espanha não estava envolvida diretamente na Primeira Grande Guerra, as notícias sobre a doença vinham de lá, e, por tal motivo, a gripe ficou conhecida como “espanhola”. Qualquer semelhança com o presente não é mera coincidência.

Mas voltando ao que nos interessa mais, como toda obra que não mergulha na banalidade, o poema eliotiano não é uma coisa só, não é apenas uma notícia cifrada sobre pandemia e guerra: ele descreve e encarna a grande crise da cultura ocidental dos inícios do século, teorizada depois por Adorno, entre outros, crise que arrisco dizer que ainda nos afeta, nesse momento tardo-moderno, pós-moderno para alguns. Trazendo para mais perto de nós, essa crise só foi de fato integrada ao pensamento de Mário de Andrade mais de quinze anos depois (The Waste Land é de 1922), a partir de 1938, na longa crise pessoal desencadeada pelo fim da experiência do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, órgão que ele capitaneou ao longo de três intensos anos, uma história que precisaria ser mais bem conhecida por todos, porque nos faz compreender muito do que nos caracteriza e nos afeta hoje como país. Essa aventura, somada ao fato de que Mário considerava que toda arte possui um significado coletivo, e que devemos nos precaver contra todo formalismo e individualismo, também explica, em parte, a desilusão dele com os rumos do modernismo, desilusão que é, de muitos modos, a tônica de Drummond em Claro Enigma, publicado em 1951, e provavelmente seja o fundo obscuro que move os poemas do Livro de Sonetos (1949), de Jorge de Lima, e alguns outros.

Nesse contexto — e a história necessita que a olhemos com viés sempre crítico —, a alegre crença no progresso do Concretismo em seus primeiros anos soa como uma inocência sem par, a despeito do que seu ímpeto nos trouxe de bom. Meu argumento aqui é de que vamos em meio à mesma crise, o aprofundamento das estratégias do capitalismo para permear todos os âmbitos de nossas vidas e converter tudo em moeda, crise que cada geração encara de modo diferente. Não sei para vocês, mas é o que vejo quando leio os poemas de Maria Cristina Martins, Maria Clara Viana, o poema-pedrada de Gary Snyder traduzido por Morgana Feijão, ou ainda os exercícios de suprarrealismo de Paul Éluard, traduzidos por Henrique Nascimento. Em tempos bem diferentes, parece que um vetor comum os atravessa como motor, como ignição da escrita. O mesmo nos contos de Rodrigo Neves, Fernanda Mellvee, Dan Porto, ou os textos não assinados (Rinha de Especialistas, uma delícia, e a “notícia” sobre o primeiro disco nacional fumável). Destoa um pouco o nosso bom e velho Vicente de Carvalho, que por uma questão de rigidez geracional não conseguiu ouvir a Balada do Louco, com os Mutantes. Teria lhe feito bem, certamente. Cabem menções à coluna Enclave, que me fez sentir nos anos 1970 ouvindo um álbum dos 2000 (confesso que não conhecia o Nicola Conte, e que achei o som dele bastante careta), e à história de “Anoiteceu”, canção de Francis Hime e Vinícius de Moraes (esses não serão nunca caretas).

Talvez caiba aqui voltar à questão: o que é escrever poesia (e conto, e romance, e ensaio) nesse começo de terceira década do século 21? Para o que olhamos? De que modo olhamos? O que podemos arrancar das convulsões do tempo presente? Estamos indo em rumos acertados? Existem rumos acertados? Quando leio os textos do RelevO (assim como os da revista em que sou coeditor) sempre me atravessam, e nunca pacificamente, tais perguntas. Do mesmo modo quando escrevo um poema.

Para finalizar, não custa lembrar aos mais distraídos e aos inocentes do Leblon (cf. CDA): o mundo ainda não deu certo, e vamos imersos em muitos dos mesmos problemas dos séculos 18, 19, 20, fora os que a criatividade humana conseguiu produzir depois. Alguma dúvida? Basta entrar num grupo de WhatsApp bolsonarista, ler algum texto produzido pela Empiricus Research ou escutar qualquer pronunciamento do Paulo Guedes como ministro. Depois dessas longas digressões, volto ao título: sexo e poesia, embora não sejam incompossíveis, não são esferas que possam ser comparadas deste modo rasteiro, a não ser pelo fato de que sexo ruim e poesia idem causam, depois, a mesma sensação desagradável, e que um bom poema pode ser comparável ao sexo no prazer que causa (sem maiores detalhes). Não se pode, assim, estabelecer uma escala entre os dois campos, nem por metáfora.