Nuno Rau: A crítica está morta, mas respira relativamente bem (ou: para o que olhamos, e como olhamos?)

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Um recente e nada feliz episódio envolveu o exercício da crítica e tem muito a dizer sobre quão tênue é o ponto em que estamos. O crítico Luiz Maurício Azevedo publicou uma resenha sobre o livro de um autor negro, caracterizando o trabalho como “literatura ruim”, e fundamentando tal juízo. Luiz Maurício é um intelectual negro e passou a sofrer ataques de milícias digitais, inclusive ameaças de morte: inconcebível que um crítico negro faça uma análise com rigor e, sobretudo, sem condescendência, de autor ou autora também negros. O mundo é desigual, as oportunidades, assimétricas, a meritocracia não passa de uma lenda inventada propagada pelos que têm meios, e o preconceito de várias matrizes segue ululante por aí, não raras vezes sem pudor de expor sua fisionomia podre; contudo, qualquer condescendência com a produção da arte nos empurra para o empobrecimento do debate estético imprescindível até para mudar o mundo acima descrito. Importante ressaltar também que manifestações assim, além de ferirem a autonomia da crítica, afastam muitas pessoas do exercício que é pensar sobre literatura, pelo receio do cancelamento, uma prática, no geral, daninha e antidemocrática – não será demais esclarecer que não me refiro aqui a opiniões preconceituosas e sem lastro, o que vemos por aí não raras vezes, que devem ser respondidas e problematizadas.

Tenho algumas hipóteses para o eclipse da crítica, e não cabe aqui descrevê-las, apenas dizer que uma delas é o receio do confronto em um mundo em que fatos como o reportado não são exceção, o que dá uma certa nostalgia do não vivido quando lemos Antonio Candido, Sérgio Buarque de Hollanda, o implacável Mário Faustino, que, em suas análises de livros e autores na página Poesia Experiência, do Jornal do Brasil, falava sem meias palavras e sem chapa branca sobre o bom e o ruim a seus olhos, e com fundamento.

Resolvi começar a aventura temerária que é ocupar a função de ombudsman de RelevO por esse assunto movido pelo editorial de fevereiro de 2002, que define, muito a propósito, a tarefa de editoras e editores como delicado e complexo exercício crítico. Também quixotesco, o que os editores devem considerar um elogio, já que este ombudsman nutre um nada secreto amor pelas pessoas que investem com todas as suas forças contra moinhos de vento.

Partindo desse olhar, ao ler os textos, contos e poemas selecionados para a edição, uma pergunta que sempre me ocorre marcou presença de novo: para o que olhamos quando estamos escrevendo? e como olhamos? Essas questões, aparentemente simples, constituem um dos pontos nevrálgicos da atividade de quem escreve. A quem isso importa? Não sei, ao certo. Na sociedade capitalista tudo é convertido em mercadoria, com exceção da poesia (quase sempre, porque mesmo os livros editados em pequenas editoras acabam virando objeto de escambo e fugindo à lógica mais estrita do mercado), e da ficção (uma parte, a que não consta dos catálogos das grandes editoras, pelo mesmo raciocínio). A poesia e certa prosa acabam resistindo, mas não sem pagar um pesado tributo: o da instransitividade social. Quem lê, afinal? Editoras e editores leem, por dever de ofício, em geral escolhido também por prazer, e fiquei pensando nos quase mil textos lidos, como exposto no Editorial, para extrair 50 dos quais foram selecionados os publicados: dois poemas, cinco contos, duas traduções (uma coletânea de poemas e um poema isolado).

Começando pelas traduções, foi uma alegria ler poemas de William Carlos Williams, poeta do corte e da síntese, e Joyce Mansur, com seu incêndio surrealista embebido de micro e macropolítica. Dos demais textos, preciso confessar que senti certo estranhamento pelo fato de sua quase totalidade ter como temática o campo – vasto e variado – das relações interpessoais; deles, me aproximei e afastei em proporções variadas. Tenho como premissa que, para escrever sobre um tema já muito percorrido, é preciso uma abordagem original, é preciso não cair nas armadilhas do lugar comum, ou, por outro lado, extrair do lugar comum a sua potência máxima, o que não é nada simples. Não se trata de defender uma literatura política strictu sensu, o que seria, no mínimo, ingenuidade, posto que tudo é político, inclusive o amor.

A questão aqui pode ser mais bem referida pelo título mesmo do Editorial: “Saber ser novo, saber ser atual”. Impossível não lembrar do ensaio seminal de Agamben, O que é o contemporâneo?, em que, partindo do pensamento de Nietzsche e de um poema de Ossip Mandelstam, o filósofo reflete sobre a relação possível e necessária de cada um com seu presente. Pensando com Nietzsche quando afirma que “pertence verdadeiramente a seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões, e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas exatamente por isso, exatamente por através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo”, ele conclui afirmando que “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para perceber não as luzes, mas o escuro”. Por essa via, me pergunto sempre, e de novo: para onde olhamos? Os séculos que nos precederam foram campos de conflito, e esse 21 não parece diferir em nada, com seus enfrentamentos socioeconômicos trágicos, o avanço violento do neoliberalismo, o campo da cultura envolto em contradições, sendo a literatura muitas vezes imersa e paradoxalmente propalando o sistema que negaria e que, em tese, proporia diverso, como aconteceu com boa parte da produção modernista.

Um jornal de literatura como o RelevO deve levantar essas questões, em quem o lê, elas não são realmente simples e se ligam a nossos estar agora e aqui. O que vocês acham, companheir_s de viagem no RelevO?

Aproveito para agradecer o convite do editor do periódico, que constitui uma grande oportunidade de exercer um olhar sobre a produção contemporânea, e mais ainda pela autonomia que, muito eticamente, o jornal confere aos que ocupam esta função.

Osny Tavares: Quem lê, quem escreve, quem lê

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2021 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


O publisher do RelevO concede ao ombudsman um espaço nobre, neste alto de página 5. Centrão entre percepções de quem faz e quem lê, ele pode ser um criador de caso ou um pacificador — se competente, as duas coisas. 

Na edição de fevereiro, a leitora Brunna Gabardo escreve longamente sobre sua experiência de leitora do jornal, distribuindo seu carinho entre o conteúdo e a plataforma impressa. Ao revelar seu próprio interesse e aspirações literárias, induziu-me a uma reflexão que, pouco depois, na coluna Editorial da mesma edição, cresceu para tema de coluna: há categorias fixas para definir o autor e o leitor deste periódico?

Porque naquele espaço, o fundador revelou o episódio de um possível assinante que exigiu ser colunista como contrapartida. A partir dele, é possível especular quais as diferentes percepções de valor que os leitores possam vir a ter sobre o produto. Também se eles creem representarem um papel específico em seu ciclo de vida. E, primordialmente, se veem as instâncias de leitor e autor no RelevO como verticais e fixas. 

Este jornal tem um pé em cada era: analógico por formação e essência, digital por espírito dialético. Da primeira traz o custo marginal. Tudo nele custa algo; e quanto mais há, mais custa. Do segundo traz a possibilidade de criar algo que os novos chamam de comunidade de fala. A literatura produzida nela sempre será a mais próxima. E, porque não, por consequência, a mais valiosa?

Embora realizar essa ideia seja uma questão de curadoria, portanto editorial, a contribuição primeira dos textos é função voluntária de um pressuposto leitor. De forma que esse é o único ombudsman que pode, legitimante, voltar-se contra os leitores que representa. E, de espírito ainda mais livre, os leitores podem rebelar-se entre si. E, ultimamente, consigo mesmos. 

Na mesma edição, o poema de Larissa Adur é um exemplo de localização (não por acaso, seu título é um endereço). O humor da página central pode ser um último estímulo para ainda acompanhar notícias. E aponto especialmente para a novidade jornalística do ensaio “Ex Nauseam”, de Algum Lucas — uma confissão de agora. 

Há no jornal um esforço pela proximidade. Cabe ao veículo torná-la mais intensa, de forma que até os ligeiros possam vê-la.

Morgana Rech: O duplo nunca morre

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2020 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Parece que, para uma primeira sessão, fomos bem. Bastante comum: em início de análise, um primeiro movimento de despersonalização é feito pelo paciente-jornal. No caso do RelevO, ele aparece com essa dupla versão de si, metido a jornal automobilístico-guia-fálico-de-tunagem. Mostra toda a potência do seu motor editorial, talvez com o objetivo de ditar a velocidade e o trajeto da nossa estrada transferencial.

Típico, porém, genial, já que não resta mesmo outra opção a um jornal literário, impresso, resistente como esse, senão jogar limpo com as suas tendências falocêntricas. Suportar o tamanho do desamparo que é fazer literatura sob a proteção, no caso desse fenômeno duplicador que observamos aqui, de cavalos e cilindros. A análise do Gol Bola, se é que entendi bem, 1994, denuncia: o RelevO não vai se rebaixar tão facilmente. Não vai cair nessa de confundir freio com pedal de aceleração. Vai conseguir fazer humor, acima de tudo e em alta velocidade.

A cara sacana do duplo vem, às vezes, só confundir o próprio autor para, depois, fazê-lo acreditar mais forte nele mesmo. Isso é o bonito da literatura, afinal de contas. Uma forma de uma verdade desmentida se tornar uma nova verdade, fazendo da antiga uma mentira e, portanto, se refazendo como mentira. É isso mesmo? E o jornal pergunta, no fim: sacou? Eu devolvo a pergunta, é lógico. Estamos em análise, RelevO. Eu acredito em você.

O duro é acreditar no falocentrismo quando o joelho treme diante de uma narrativa como a do Rodrigo Menezes de Melo, em que “a gente quase sempre se sente melhor quando finge que é bom”; ou quando Elisa Dot conta sobre o brilho dos vagalumes que aumenta quando os olhos transbordam de “lágrimas não solicitadas”; ou quando imaginamos a personagem de Marta Neves completamente saída de si naquele bar insuportável; ou no duplo de Afrânio, que morre de tanto ignorar o que está diante dos seus olhos, no texto do Evandson Sousa.

Fim de sessão e o próprio jornal restitui sua própria imagem, ao incentivar o mantra “sou a reencarnação daqueles que ainda não morreram”. É lógico que ainda não morreram, porque o duplo nunca morre quando a arte e o humor são bons. O paciente-jornal se engrandece ao longo do tempo e, justamente por isso, fico no maior orgulho e me despeço: nos vemos no mês que vem.

Cezar Tridapalli: Procissão de textos sem conexão

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2019 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Eu acompanhei o surgimento do RelevO e tenho memórias que, se não são o retrato fiel de um tempo, formaram na minha cabeça uma verdade subjetiva: o jornal nascia independente, irreverente e, digamos, meio inconsequente. Ríamos da novidade, uma risada franca que nada tinha de deboche; ao contrário, era uma risada que condensava o que-legal, que-necessário, que-divertido, que-iconoclasta, que-modernista, que-naïf.

Não sei se é uma tese generalizável ou que acontece com poucos – comigo sim: a tendência a ser complacente com novidades que nos agradam, que preenchem uma falta nossa e da cultura. Mas o tempo passa, algumas estratégias envelhecem, a relação cai no costume e aquilo que encantava corre riscos de virar indiferença ou irritação. O tempo passa e, agora ombudsman, pego de novo o papel, folheio o jornal e não consigo recuperar o frescor, o olhar inaugural se foi, resta na mão um objeto frio. O que então falar desse objeto frio? O jornal esfriou ou fui eu?

A irreverência que já me fez rir muito continua lá (eu estava pronto para dizer que humor bom prescinde de “kkkkkks”, mas a edição de fevereiro foi lá e enfiou kkkkkk, e numa piada das mais manjadas, em que o editor ri de sua classe profissional). Pode ser ainda que o meu humor venha fácil demais, mas acho sim engraçado quando o editorial, ao explicar seus critérios de seleção, diz receber de tudo, até ameaça.

Mas sabe aquela capa de disco que virou meme? O Chico Buarque aparece rindo e, logo depois, fica sério. Aconteceu comigo. Sim, porque eu ri da piada, haha, aceitam de tudo, até ameaça, mas logo estaquei. O jornal está admitindo que os – cof, cof – critérios de publicação são um vale-tudo. Isso joga fora a própria noção de critério e camufla sob a boa piada uma falta de direcionamento. Dizer que vale-tudo é afirmar que uma crítica a isso não vale nada. Mesmo se não valer nada, vou deixá-la aqui em forma de pergunta: o negócio é ir recolhendo texto suficiente para uma edição e dizer depois que isso é ser plural?

O RelevO de fevereiro traduziu poemas do russo e em seguida falou, em entrevista, de demarcação indígena, aí caiu na zoeira com o – tá, bem engraçado – RelevO camping, depois apresentou resenha longuíssima e acadêmica com direito a referências bibliográficas, e jogou no fim umas meditações de John Donne, tudo salpicado por poemas e crônicas e contos caídos sem paraquedas no meio das páginas. Aqui poupo os autores, os textos são bons, mas se eu pegar um nariz bonito aqui, a boca sedutora ali, orelhas elegantes acolá, olhos profundos alhures, e juntar tudo isso, eu não tenho nenhuma garantia de que o resultado será a beleza estarrecedora, ou ao menos harmônica, ao menos coerente, ao menos não frankensteiniana. Alguma costura marcada por seções explícitas ou mesmo por linhas imaginárias poderia fazer com que mapa e território se entendessem.

“Ah, se for escrito ou desenhado tá valendo” não é critério; passa, quando muito, por mais uma piada encobridora, que teria mais efeito se o leitor soubesse que a brincadeira do vale-tudo não passa de uma mise-en-scène e que o jornal sabe o que está fazendo. Que aceite a diversidade, tudo bem, mas selecione os textos e disponha-os ao longo das edições dentro de alguma lógica de aproximação que dê liga. Nem sempre bons jogadores formam bons times, é preciso organizar a esquadra.

Claro, é possível fazer só a piada e deixar a crítica pra lá, tipo “cara, nós somos anárquicos mesmo, somos marginais mesmo, independentes mesmo, profissionais em deixar a coisa amadora, você não entendeu nada, não nos enquadre, não nos institucionalize”. Ainda assim deixo a sugestão: talvez o jornal devesse costurar melhor suas vozes, carimbar seu timbre de um jeito mais personalizado. Ou falar do que quiser é a marca? Ou não ter marca é a marca? Vai que. Só acho que tal amadorismo bem humorado tem seu valor iconoclasta, mas pode também ser uma defesa, um escudo atrás do qual justifica falta de critérios na escolha de conteúdo e, vamos lá, de forma também. Acredito ainda que tudo isso tangencia a questão de uma suposta neutralidade apontada – como problema – por alguns leitores. Não há costura formal, nem temática, nem de posicionamento político. Tenho dificuldades de ver o que mantém as páginas do jornal unidas.

Por falar em dificuldades de ver, arrisco aqui a dar uma de criança ingênua e dizer que o Rei/RelevO está nu em termos formais, de diagramação, de arte-finalização, essas coisas todas.

Acompanhamos a triste saga financeira do periódico, mas as despesas devem aumentar, pois sugiro que a edição de março distribua lupas para os assinantes. Eu, que sou apenas míope, me gabo de enxergar de perto. Tudo tem limite, porém. Se tento ler no papel alguns anúncios ou a lista de cidades e livrarias que recebem o jornal, mal consigo. Se vou para o on-line e amplio a fonte, a definição se perde. Pra quem, como o RelevO, quer valorizar “o papel do papel” no Jornalismo, acaba fazendo gol contra. Espalmar um poema de 6 versos e deixá-lo perdido na página, pendurado ao nome de um autor envergonhado, sem ninguém para apresentá-lo, meio sozinho na festa, acompanhado apenas de um anúncio espremido e ilegível devido ao tamanho da fonte e à qualidade da impressão, tudo ao lado de um latifúndio de espaço em branco, é proposital?

Falo da página 22 da edição de fevereiro. O que me diz um retângulo com três retângulos dentro, sendo o primeiro talvez uma capa de livro, o segundo uma silhueta humana escura e o terceiro talvez mais uma capa de livro? Pobre autor de Prisão dos dias, agora na p. 14, de quem não dá pra ler quase nada a respeito. É alguma estratégia jornalística deixar aqueles espaços enormes em branco (um respiro?) e comprimir anúncios até deixá-los ininteligíveis? É mais uma intenção transgressora? Texto cortando o meio da página no miolo, sem problemas, mas experimente ler isso no on-line e verá que não dá.

É uma possibilidade séria, que de nenhum modo descarto: estaria eu muito colonizado pelas publicações que organizam minimamente suas seções, costurando-as e formando um todo apreensível? Preciso me desconstruir?

“Jornal estranho e interessante”, diz um leitor (aliás, em tempos de desterritorialização e de busca por um lugar de fala, que tal dizer de onde são os tantos leitores que escrevem ao jornal, geralmente para elogiá-lo? Poderia funcionar melhor do que enfiar a maçaroca de lugares que recebem o RelevO, página 4, que, se não são ilegíveis, são no mínimo pouco convidativos para a leitura). Por que não apresentar também os autores? De onde veio a escalação, quem é a poeta, o cronista, a contista, o resenhista, a tradutora etc.?

Quando entramos, por exemplo, numa igreja barroca, ou clássica, ou gótica, não conseguimos – e nem deveríamos tentar – dizer o que é forma, o que é conteúdo. Há uma unidade mesmo na diversidade. No RelevO de fevereiro, o mérito isolado de cada texto foi atrapalhado pela falta de critérios na composição do todo. Autores que não sabemos de onde vêm surgem de repente, mudam de assunto em relação aos que vieram antes, terminam o que têm a dizer e saem rápido porque a procissão de textos sem conexão de qualquer ordem – temática, formal, política – precisa prosseguir.

Ricardo Lísias: Para os professores de literatura

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2018 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Discordei algumas vezes das reclamações dos editores do RelevO quanto à produção do jornal. Agora, quero concordar: vi uma nota na página do jornal do Facebook sobre a situação dos Correios. Parece de fato a pior possível. Não me lembro de ver uma empresa estatal ser sucateada tão rápido. Todos conhecemos os reais propósitos do governo de Michel Temer. Obviamente, estão fazendo com que a empresa valha o mínimo possível, para depois vendê-la barato aos donos do dinheiro que o mantém em um posto que ele jamais deveria ter ocupado. Mas o caso dos Correios é escancarado demais. É lamentável, como tudo que Temer faz.

Vou ocupar o espaço dessa vez para fazer um balanço das reações às minhas leituras. Uma agressão até pode gerar algum raciocínio, mas não é o caso. Quero apenas observar a afirmação de que não entendi esse e aquele texto. Um leitor achou que eu deveria conhecer um pouco melhor uma das letras de Neil Young antes de afirmar isso ou aquilo. Para ele, então, a interpretação de um trecho deve responder ao restante da obra. Não posso, por exemplo, pegar um parágrafo de um livro e falar sobre ele o que eu quiser, se a totalidade não confirmar a parte menor.

Salvo engano, mais de um leitor acusou o fato de eu ter errado o gênero de um texto. Eu deveria ter entendido que não se tratava de ficção, quando li como um conto. Para esses leitores, existe algo pré-definido em um texto e eu tenho que obedecer a essa determinante. Do contrário, eu não entendo o texto direito.

De forma nenhuma. Não vou obedecer a determinante alguma. Não é o autor de um texto que vai me dizer se ele é de ficção ou não, do mesmo jeito que não será a totalidade de uma obra que me impedirá de achar um sentido para um trecho em separado. Quem manda na minha leitura sou eu, apenas eu e leio do jeito que quero.

Naturalmente, temos aqui um impasse: se é assim, esses leitores também estão certos ao afirmar que não entendi nada, já que eles não têm a obrigação de acatar a forma como leio? Não me resta dúvida. Estão certíssimos. Mas se eles estão certos ao dizer que estou errado, então estou errado ao dizer que eles não estão certos? 

Seria ocioso continuar a brincadeira. Jorge Luis Borges já percebeu isso faz tempo. Quando estamos diante da arte, não existe nenhum tipo de opinião errada. No máximo, alguns se expressam melhor do que outros. Na verdade, essa coluna é para os professores de literatura. Vários estão lendo esse texto. Não digam aos seus alunos, por favor, que eles não entenderam um poema. Vocês não sabem que tipo de bagagem aquela menina traz para dizer que “A máquina do mundo” fala do avô dela. 

Um professor que diz para um aluno que ele não entendeu uma obra literária é um autoritário. Não é possível ensinar o sentido de um texto para ninguém. Só dá para explicar que o estudante escreveu uma frase pouco clara, sem sentido ou truncada. O que dá para fazer é deixar as pessoas falarem o que elas bem entenderem. Se a gente não aceitar a interpretação de um adolescente para um poema, podemos estar agredindo algo de muito íntimo e importante para ele. Se não isso, no mínimo vamos afastá-lo da literatura. Imagino não ser o caso de ninguém aqui…

Gutemberg Medeiros: Lima Barreto e o mito

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Em 2013, houve um movimento em redes sociais propondo Lima Barreto para ser o homenageado da FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty). Logo surgiram manifestações, algumas violentas, contra essa proposta, pois seria sujar a memória do escritor. As alegações eram de que ele era o maldito em sua época, uma espécie de outsider assumido sempre a lutar contra os espaços legitimados nas esferas literárias e jornalísticas.

Na época, manifestei-me contra esse tipo de coisa, parte dos mitos criados em torno de Lima – e tanto há quem goste de tecer para outros como Patrícia Galvão, Nelson Rodrigues e Hilda Hilst. Não precisa ser “especialista” em Lima para saber o que é mito ou não. Para tanto, basta recorrer à biografia do escritor realizada por Francisco de Assis Barbosa, publicada em 1952, e ainda uma das referências sobre o autor de “Clara dos Anjos”.

Tudo bem, em 1907, Lima lança com amigos e escritores a revista Floreal e durou apenas quatro números, mas o autor já era um homem marcado, pelo menos incompatibilizado com grande número de influentes jornalistas e escritores. Como se não bastasse a ácida leitura do mundo jornalístico em “Memórias do escrivão Isaías Caminha”. Mas isso por uma parcela desse universo, não pela maioria dos seus colegas. Inclusive, fazia ponto na Confeitaria Colombo na mesma mesa de Olavo Bilac, já considerado o Príncipe dos Poetas e cronista dos mais valorados.

Lima passou por variedade extensa de revistas e jornais, recomendado por amigos de profissão. Desde menores como ABC até a Gazeta de Notícias, um dos mais importantes jornais diários da 1ª República. Poderia ter publicado mais e não o fez, basicamente, por dois aspectos de sua vida pessoal. Primeiro, enquanto trabalhou no então Ministério da Guerra. Como arrimo de família, não poderia se arriscar a ser exonerado por algum artigo ou crônica ácida. Cedo se aposentou. O outro fator a atrapalhar a sua produção foi o alcoolismo. Tão considerado era a ponto de ter sido convidado a participar como colaborador da primeira revista modernista nacional, a Klaxon, e se recusou por julgar Mário de Andrade e companhia um bando nada sério de seguidores do futurismo italiano.

Por outro lado, buscou se integrar ao meio literário, como ingressar na Academia dos Novos (1911) e na Sociedade dos Homens de Letras (1914). Como se não bastasse, Lima quase se candidatou à Academia Brasileira de Letras em três ocasiões – em 1918, 1919 e 1922, ano de sua morte, na vaga de João do Rio, quando formalizou o pedido de inscrição, mas acabou desistindo. Logo, pode-se garantir que ficaria muito feliz se fosse convidado para a FLIP. Finalmente sua hora chegou em um evento cuja importância é inquestionável e todo e qualquer reconhecimento de sua obra é fundamental, pois continua tendo o destino de outros grandes autores, como Dostoiévski: muito citado e pouco lido. Pois que se descubra o continente Lima Barreto.

Ainda na questão de ser “maldito”, isso só é verdade em parte, no que diz respeito às poucas vezes que obras suas ganharam a chamada perenidade do livro. A maioria só foi publicada na década de 1950 pela Editora Brasiliense e graças, novamente, aos esforços de Francisco de Assis Barbosa. Porém, foi jornalista dos mais reconhecidos em seu tempo. Como outros escritores e jornalistas brasileiros, exerceu forte e frequente crítica aos rumos da imprensa. O que chamo de metajornalismo, quando a imprensa vira pauta de si mesma. Ou seja, espécie de ombudsman antes dessa categoria ter sido criada. Para ficar apenas em seus contemporâneos, João do Rio e Medeiros de Albuquerque também ocuparam esse lugar de crítica.

Tomara que, a partir da FLIP, a sua produção no geral, e a jornalística em especial, seja retomada. Um exemplo dos mais felizes foi publicado ano passado com a coletânea de inéditos em livro “Sátiras e subversões”, organizada por Felipe Botelho Corrêa (Penguin & Companhia das Letras). Na seleta, textos publicados nas revistas ilustradas mais renomadas do princípio do século no Rio de Janeiro, Careta e Fon-Fon. Um estudo revelador sobre o escritor é João Antônio, leitor de Lima Barreto, de Clara Ávila Ornellas (Edusp), especialmente ao provar com densa pesquisa como ambos seguiram na trilha do pensamento articulado por Leon Tolstói.

Manuel Bandeira escreveu que Lima traz o gosto da nossa vida, muitas vezes amargo, mas ainda vital para melhor nos compreendermos. Em tempo: Evoé!, caro professor Silvio Demétrio.

 

Nota do editor:

Esta é a primeira coluna de Gutemberg Medeiros. Ele é jornalista e pesquisador. Cursou Mestrado e Doutorado na RCA/ USP e cursa pós-doutoramento em Comunicação e Semiótica na PUCSP. Foi indicado pelo ombudsman antecessor, Silvio Demétrio, e tem mandato de três a nove meses. O editor não interfere no texto acima, exceto em casos de correção ortográfica.  Cabe ao ombudsman repercutir erros do jornal, questões internas e, quiçá, escrever sobre o que bem entender no âmbito da críticas das mídias.