Rafael Maieiro: PALAVRÕES & DEMONSTRATIVOS: sobre outros assuntos e uma ouvidoria que não ouve conselhos

Coluna de ombudsman extraída da edição de janeiro de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Saúde: Ladeira do João Homem, 65. Ali, nas encruzas da praça, é só descer a rua por alguns metros e estamos no Bar do Geraldinho. Cadeiras e caixas de cerveja coloridas na calçada (C5 – boom, manuais!). Ali está o Zeh Gustavo, o ex desta coluna, no seu habitat, brincando no copo de cachaça e abrindo um sorriso no rosto. Me aboleto na mesa, o encontro marcado é para falar sobre o RelevO de dezembro.

[Eis o método do mandato desta ouvidoria do jornal: conversar com leitores de alguns estados deste Brasil – em cafés, bares, livrarias ou, quem sabe, no ponto de ônibus. A ideia-chave do espaço, ora ocupado por mim, é narrar os encontros sem nenhum compromisso com os fatos, contudo assinando um pacto com a particularidade do real na poesia e/ou na ficção. Para abrir o caminho, escolhi o ex, o tal do Zeh, para a estreia].

Zeh vira a Salinas, pede a minha cerveja gelada. Quase gargalha sei lá o porquê. Eu digo:

– Viu as ilustrações da Natalia Azevedo? A publicação é em PB, né? Olhe, são muitos olhos – faço um movimento com os dedos insinuando o trocadilho ridículo –, mas ainda não estou maluco: vi a oitava cor do arco-íris.

Zeh me despreza, o que não é incomum, e já fala que me fudeu na última coluna dele, justificando-se como ato de amor. E puxa um Aldir Blanc:

– Na Rua da Tijolo, bloco 5, aquela de esquina…

[Zeh, meu camaradinha, além de personagem e ex, você também é o revisor desta coluna. Qualquer erro aqui é culpa sua, por sinal é um ótimo lema do RelevO, porém não vá me encher o texto de referências bibliográficas e seus TOCs ABNT. Como disse Carolina Bataier, “Todo o resto, sim”].

Fiquei ouvindo o ex acabar a cantoria, ainda afinada, um copo afina a voz, meti logo um porra e perguntei o que ele achou sobre a edição de dezembro.

– Os olhos, os barcos são quase uma bandeira. Sim, muita cor. Não somos dodóis da moleira, ainda, meu chapa. Natalia Azevedo…

Enquanto Zeh fazia seu solilóquio, ele ainda não estava bêbado, mas estava no modo falastrão, um gatinho fazia número pela rua, uma rua de pedras, uma rua de pedestre, no alto do Morro da Conceição. O gato me olhou – será que usar gatos em textos num impresso também chama atenção? –, fez um movimento que, à primeira vista, tomei por uma saudação carinhosa. Mas, quando o bicho repetiu a ação, percebi: ele estava me mandando à merda, me mostrando o famoso dedo. Olho para o ex, ele abre o jornal e me aponta uns versos de Bolívar Escobar. Leio. Faço um sinal de concordância misturando movimentos com os lábios e com a cabeça.

– Bom, né? Também gostei da nova seção, Discursos de ódio. Ali tem caldo, hein, o Antonio Paradisi deu uma boa de uma tapa. Finn plantou a semente do ódio de classe…

Bato palmas. Zeh volta a me ignorar, ele tá meio estranho hoje. Ergo o jornal tapando o meu campo de visão para além do jornal. O ex faz o mesmo. A cena tem algo de Magritte, ou, mais precisamente, uma versão impressa do ensimesmamento virtual. Janelas de papel e tinta; janelas de silício e petróleo. Quando partimos a fatia do tempo e baixamos as nossas armas, não estamos transtornados:

– Porra, Zeh, tô vendo aqui no Editorial. Eles estão saindo do preju. Acho que contrataram o ombudsman errado. Agora eles vão pro buraco! Literariamente falando, posso dizer, sou pior que uma pandemia.

Gargalhamos.

Aliás, leitores, ombudsman, em sueco, é ouvidor. Já que se trata de um impresso, tecnologia superada até para embrulhar peixes, a minha ouvidoria vai oferecer o número de um orelhão (telefone público, jovens, depois eu explico) para contato a partir do mês de fevereiro.

Aí, palavreiros rústicos ou eruditos, vocês poderão me xingar à vontade: isto, isso, aquilo.