A primeira vez que tive de explicar o que era um ombudsman foi numa prova de proficiência em inglês. Foi na ECA em São Paulo, meados da década de 1990. A prova apresentava um texto sobre a legislação sueca referente à função do “ouvidor” em um jornal. Na época isso era uma novidade relativamente recente no jornalismo brasileiro. A Folha de São Paulo havia começado há algum tempo com a coluna que mantém até hoje. O primeiro ombudsman foi o jornalista Caio Túlio Costa, que foi o primeiro também a lançar um livro explicando o que era um ouvidor dos leitores de um jornal.
Quando me convidaram para assumir essa função no RelevO considerei interessante o desafio, uma vez que essa função é tradicionalmente vinculada ao jornalismo diário, o que se chama popularmente de “hard News”. Um ombudsman traça um arco crítico sobre a cobertura que um jornal realiza. Transpor isso para o contexto de um jornal de poesia e literatura requereria algum engenho. Foi aí que encontrei o desafio que me motivou.
É que desconheço algum exemplo de ombudsman que tenha trabalhado com um material estético e não noticioso.
O RelevO inovou ao implantar os mandatos dos que me antecederam. Em conversas com o editor do jornal, Daniel Zanella me explicou que cada um seguiu uma linha própria, independente, dando-me total liberdade para desenvolver meu trabalho. Parti, então, dos seguintes referenciais como modelo crítico: o ensaio Forma É Poder, que Paulo Leminski publicou no saudoso Folhetim publicado pela Folha de São Paulo em 1982, a concepção do que é uma teoria crítica segundo Max Horkheimer e de uma noção que é cara à linha da Semiótica da Cultura, a intertextualidade, muitas vezes atribuída à Bakhtin, mas que na verdade é desenvolvida de fato por Julia Kristeva.
De Leminski extraio as seguintes afirmações: “Uma prática do texto criativo, coletivamente engajada, tem a função de desautomatizar. De produzir estranhamento. Distanciamento. É desmistificação da “objetividade”inscrita no discurso naturalista. Essa objetividade é falsa. Ela apenas reflete a visão do mundo de dada classe social, de determinada civilização. Sua pretensão a “discurso absoluto” é totalitária”. Essa era sua concepção de uma linguagem crítica dentro do jornalismo cultural. Não há, portanto, segundo esse parâmetro, como ser “objetivo” no jornalismo cultural, a menos que não se queira ser acrítico (coisa que se vê em larga escala nesse modelo de jornalismo cultural como “prestação de serviço”, agenda, que vigora nas mazelas do mercado).
Ainda do poeta paranaense sigo o raciocínio do aforismo seguinte de seu ensaio: “Violação. Ruptura. Contravenção. INFRATURA. A poesia diz “eu acuso”. E denuncia a estrutura. A estrutura do Poder, emblematizada na “normalidade” da linguagem”. Poesia, portanto, é caso de exceção. Aquilo que foge às normas. Uma linguagem fluxo. Descodificação. Desterritorialização. Esse “eu acuso” de Leminski brilhantemente embutindo no enunciado a referência ao famoso Caso Dreyfus que marcou a história do jornalismo europeu a partir da leitura que Emile Zola fez dele.
Como a poesia realiza essa tarefa, então? Na minha concepção, exatamente pela dinâmica da intertextualidade, o terceiro parâmetro de nosso modelo crítico aqui para o RelevO. Intertextualidade é conversa entre textos culturais.
Nada que se escreve e publica é independente. Nada nesse sentido nasce de uma tábula rasa. Um grau zero da escrita, como diria Barthes. Existe toda uma rede de enunciados sobre o mesmo tema e de outros referentes afins que precede o corte que será feito pelo enunciado que antecipa e reage com este último. Aquilo que se pode chamar seguramente de historicidade.
É daí que entra a concepção de Horkheimer do que vem a ser uma teoria crítica. Em seu célebre texto Teoria Tradicional e Teoria Crítica, o filósofo alemão explica, entre outras coisas, que o que caracteriza uma teorização crítica é a possibilidade de se infletir uma perspectiva histórica sobre o objeto da crítica. Fazer crítica é, sobretudo, percorrer os agenciamentos do objeto em suas relações dadas pela perspectiva histórica. Aquilo que se percebe do objeto tal como ele se apresenta no quadro histórico no qual ele emerge e as linhas de derivação pelas quais esse objeto se desloca no devir do tempo.
Meu objeto é o RelevO como um todo. Não me sinto autorizado para realizar alguma crítica sobre a poética dos textos aqui publicados. Não poderia analisá-los como se notícia o fossem. Afinal, um ombudsman não faz crítica literária, senão uma espécie de media criticismo. Como tal, penso que minha função é colocar o que se constitui como publicação em relação à historicidade. Jamais eleger minhas convicções políticas como verdades, uma vez que não acredito ter convicção nenhuma sobre nada. Convicção só tem quem já parou de pensar.
Quero agradecer aqui, no corpo do texto mesmo, pelas observações do leitor Alexandre Cunha, especialmente a comparação com Gregório Duvivier. É isto que nos enche não de convicções, mas de um afeto que nos indica que estamos no caminho certo. Agora com relação ao fato de algum comentário sobrepor-se ao campo político, vamos pensar assim: desde que o oxigênio é uma necessidade comum a todo ser humano e não humano também, o próprio ato de respirar é um ato político. Só não existe política onde não existe mais vida. Xô, uruca!