Ricardo Lísias: Confusão

Coluna de ombudsman extraída da edição de dezembro de 2017 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Devo confessar que fiquei paralisado diante do editorial do último número do RelevO. A edição de novembro trouxe um conjunto de textos enfeixados sob um tema: a negritude, para usar um termo da própria apresentação dos editores. Edições temáticas podem ser interessantes também para contornar a fugacidade que, por definição, atinge os jornais. Um pesquisador irá procurá-lo daqui alguns anos. Os estudantes podem, desde já, usar a edição como fonte e matéria de informação. Os leitores, enfim, acabamos mais bem embasados se o tema nos interessar. Periódicos temáticos sempre me agradaram muito – por isso, aliás, lamento tanto o fim da circulação da revista Granta no Brasil.

Achei que na desnecessária intenção de se justificar, o editorial acabou se confundindo todo e lançando argumentos para lá de ultrapassados. O primeiro parágrafo, por exemplo, fala da tal “qualidade literária”. Ela não existe. O que se conhece por “cânone” é basicamente a imposição de grupos que, por ocupar espaços revestidos de poder para tanto, determinam critérios que incluem alguns textos e excluem outros. Trata-se de uma operação de violência. 

A citação de Campos de Carvalho veio bem a calhar: há algo de nonsense em dizer que “a derrota é certa”. Eu não acho. A edição está ótima, mas tem um editorial muito defensivo. As pessoas que digam o que quiserem. Se os editores admitem que fazer a seleção para o jornal é um ato crítico, criar argumentos para classificar a qualidade dos textos dele também é. Nós e os outros temos todo o direito de sermos igualmente críticos.

Já a citação de Machado de Assis me pareceu quase uma esperteza. Lançar mão do nosso maior escritor é um lance de segurança. Eu discordo do que ele diz: não acho que seja possível existir uma consciência “tão pura e tão alta, que não sofra a ação das circunstâncias externas”. Quanto a Henry James, fico com um meio termo. Penso, como ele, que qualquer experiência nunca é completa. Meu texto não vai dizer tudo o que eu quero, então ele será sempre limitado, ao contrário do que ele diz depois.

O editorial derrapa mesmo no final, quando diz que acredita ter ultrapassado o “arvoredo ideológico”. É o contrário. Se houve um ato crítico para a seleção de um tema, a única coisa que se impôs foi uma ideologia. Não há problema nenhum nisso e não poderia ser diferente. A ideologia não “priva o olhar de maior pujança crítica”, mas sim o torna menos cínico: até hoje quase que só homens brancos tiveram a possibilidade de ver seus textos medianos e chapa-branca serem publicados e, muitas vezes, considerados bem melhores do que são. No Brasil contemporâneo, é batata, como diz meu vizinho. Se desde o início tivesse ficado claro que não há nada nisso que não seja ideologia, quem sabe essa violência tivesse sido ao menos controlada um pouco.

De resto, a edição ficou excelente.