Nuno Rau: A aura romântica que paira, impávida, e brilha no céu da pátria em raios fúlgidos, (ou: o conformismo nosso de cada dia.)

Coluna de ombudsman extraída da edição de agosto de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Em Signos em rotação, Octavio Paz começa um ensaio com a seguinte questão: “Começarei por uma confissão – estou certo da existência de alguns poemas escritos nos últimos anos por alguns poetas latino-americanos, mas não o estou da existência da poesia latino-americana.” Sob os efeitos de uma inquietação semelhante, não me soa despropositado dizer que não estou certo da existência de uma poesia brasileira contemporânea, inquietação de fundo – percebo agora depois de alguns meses procurando desempenhar de modo ao menos aceitável a função provisória de ombudsman do jornal RelevO – que atravessa a quase totalidade dos textos elaborados entre março e julho deste ano (e estendo essa quase angústia à prosa de ficção). Tomando o jornal como registro de um dado recorte dessa produção, a questão parece se justificar plenamente; para começar a refletir sobre o problema, confrontemos o conteúdo do editorial de julho com a carta de Ademir Demarchi do mesmo mês. O primeiro nos informa que são recebidos quase 400 textos por mês, o que gera, em razão do espaço disponível (em razão dos custos de impressão, são 24 páginas), uma recusa de 98% do material enviado. Se como termômetro tomarmos também a edição do mês passado, na qual nenhum/a poeta brasileiro/a foi publicado/a, ficamos diante da pergunta: a poesia remetida foi de fato tão inferior à prosa?

Antes de tentar aprofundar a questão, penso que cabe alguma conversa sobre os textos em prosa publicados, ainda diante da exposição pragmática do editorial, com seus 98% de recusas, mas diante, também, da nossa circunstância – e quero dizer com isso: da história, de nossa condição incontornável de animais políticos. Não, não estou estreitando os parâmetros de juízo para privilegiar uma produção que tem por tema explícito as questões especificamente políticas de nosso tempo, que são muitas e candentes; não desejo que todo mundo escreva romances como Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, e Os que bebem como cães, de Francisco de Assis Brasil, ou contos como A morte de D.J. em Paris, de Roberto Drummond, e Você vai voltar pra mim e outros contos, de Bernardo Kucinski. A investigação do aspecto trágico de nossa condição como animais políticos está presente nos contos de Dalton Trevisan, quase sempre debruçados sobre a micropolítica dos afetos, em Nelson Rodrigues e em Cassandra Rios, para não me estender em exemplos. “Primavera ao sol”, de Luis Felipe Mendes dos Santos, não aproveita a concisão necessária ao conto para jogar com possíveis tensões da situação nele desenhada, conformando-se ao pitoresco e ao inusitado; esse lado inusitado é explorado por Fernanda Mellvee n“O amante fantasma”, que também – em meu modo de ver, claro – tem diante de si a oportunidade criada pela trama insólita (ainda que já explorada, por exemplo, em Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado), mas não transita nas possibilidades de exposição mais caricata das fraturas expostas da relação conjugal em sua face micropolítica (impossível não pensar em Madame Bovary, em que Flaubert delineia esse jogo, milimetricamente). A surpresa, para mim, se resumiu ao fragmento do romance Na contramão, Curitiba, de D. K. Montoya, com suas descrições obsessivas, como se tentasse extrair dos detalhes aparentemente insignificantes e banalíssimos a possibilidade de um sentido, numa articulação entre forma e conteúdo que é o cerne da literatura. Não sei se é essa a proposta do romance, mas até para poder comprovar ou não essa intuição, me senti capturado pela vontade de lê-lo. O texto do italiano Alberto Arecchi sobre Opicino de Canistris, apesar de estar entre meus interesses pelo tema (o tempo e o lugar em que a acumulação primitiva do capital foi, talvez, mais interessante – a Itália entre o fim da Idade Média e o Renascimento), não entra nesse argumento por não se tratar de autor brasileiro.

Retornemos, então, à poesia, que na edição passada esteve representada pelas traduções que Piotr Kilanowski trouxe de Jacek Podciadlo, poeta polonês contemporâneo, Irina Ratuchínskaia, porta russa nascida na atual Ucrânia, e Vasyl Symonenko, poeta ucraniano, com três poemas políticos que abordam a impossibilidade de ação diante da experiência totalitária e da guerra (tema candente, no momento em que duas nações imperialistas não vindas do projeto Escamandro, da poeta indiana Tishani Doshi, em que também estão imbricadas questões políticas no campo ampliado. Poesia brasileira contemporânea? territorialistas fazem a Ucrânia de marisco, entre a onda e a pedra); também as traduções, Nada. Aqui chegamos à (des) carta de Ademir Demarchi: “Por falar em poema, esse é um aspecto do jornal que o aproxima do Almanaque do Biotônico, assim como do próprio xarope, com esses textos choramingados e sentimentalóides (‘gotas caem como chuva’, ‘ir garimpar estrumes de vazio’, ‘dói, mas estamos juntos regando plantinhas’, ‘regar as plantas dos pés’, ‘quem é mau, ama com maldade’, ‘o céu é cheio de imortalidades… a língua é sempre doce’, ‘e todas as noites têm lua e todas as noites têm cigarras’), todos textos que o tom marcante de kitsch a esse nano-nanico curitibano chegado a colunas dóricas.” Se tomarmos exclusivamente os trechos apontados, chegaremos à conclusão de que a poesia anda tangenciando a banalidade com roupas de metáfora prêt-à-porter.

Voltemos ao texto de Octavio Paz para investigar suas conclusões. Depois de pôr de lado a poesia brasileira, por sua especificidade em relação à produzida no restante do continente, Paz conclui que a poesia precisa estar conectada a certa continuidade histórica: “Mas história e poesia se cruzam e às vezes coincidem. É indubitável que de Bolívar a Zapata e de Zapata a Fidel Castro – um aristocrata, um camponês e um revolucionário de classe média – há uma certa continuidade, não nas ideias mas nos propósitos profundos e talvez inconscientes. O que alguns chamam de ‘lógica da história’ e outros de ‘destino’. Um poeta latino-americano não pode ser insensível a essa continuidade, encontrar a palavra de origem e fundar uma sociedade não são, no essencial, tarefas contraditórias, mas complementares. Quando a história e a poesia rimam, essa coincidência se chama, por exemplo, Whitman; quando há discórdia entre uma e outra, a dissonância se chama Baudelaire.”

Postos os termos do problema, é importante chamar atenção para a incompreensão de Paz sobre Baudelaire, que também não havia encontrado até então muita compreensão por parte dos críticos de esquerda, amarrados à leitura de seus poemas como expressões da arte pela arte, cuja exceção seria tão somente Walter Benjamin. Mesmo Brecht teria incidido nessa difração da leitura, quando disse: “Baudelaire é a punhalada final nas costas de Blanqui. A derrota de Blanqui é sua vitória de Pirro.” É Dolf Oehler quem demonstra, décadas depois, como o poeta cifra sua escrita como “testemunha de acusação do processo que o proletariado move à classe burguesa”, como apontado por Benjamin, indicando um dos possíveis caminhos que podem ser trilhados com as devidas vênias do presente, suas complexidades e contradições específicas – sem deixar de considerar que, em parte, o século 19 não acabou, o que também se percebe por outra vertente da produção atual, que emula Baudelaire em sua forma (alguns com extenso domínio), sem apropriar sua subversão no jogo dos sentidos, sua maravilhosa traição de classe. Se tais poetas estão em um polo, no outro gravita o grupo de quem aposta na pura expressão, sem qualquer consciência dos debates que atravessam a poesia ao longo das décadas, estabelecendo em sua produção uma posição crítica, como fizeram poetas que marcaram território, como Drummond, Murilo, Cabral, Ana C., Waly, Secchin, Geraldo Carneiro e tant_s outr_s. É de Antonio Carlos Secchin, por sinal, uma das mais precisas observações que já li sobre a relação com a tradição, que não pode significar aprisionamento: “Há muitos modos de aprisionar o transbordamento do mundo, não queiramos que a poesia seja mais um. Ela deve ser a palavra vigorosa, diante de todo arbítrio classificatório, a voz que não se pode perceber senão nas margens. Por isso a poesia representa a fulguração da desordem, o mau caminho do bom senso, o sangramento inestancável do corpo da linguagem, não prometendo nada além de rituais para deus nenhum.”

Novamente este ombudsman recorre a seus estratagemas para se queixar de não haver nenhum poema de poeta brasileir_ contemporâne_ (na edição de junho apareceu um, ao menos), por mais que ache importante haver textos de humor, embora o Mapa baixo astral não siga os passos de edições anteriores, por uma enorme e importante ressalva: o texto escorrega em estereótipos de certo universo masculino que não estão alinhados com um pensamento que se considere crítico. Uma boa referência é a série “Viver do riso”, dirigida por Ingrid Guimarães, que mostra como o humor vem acompanhando as (necessárias) mudanças políticas do mundo (link para um episódio: bityli.com/uNQeoj). Sigo curtindo a nostalgia das colunas Enclave e Brazilliance, mas outra vez chamo aos editores a atenção de que poesia e ficção potentes, distantes da diluição, devem manter espaço nas páginas de RelevO.