Nuno Rau: Notas marginais ao texto de jack london, (ou Pasolini mais moderno que todos nós, procurando irmãos que não existem.)

Coluna de ombudsman extraída da edição de setembro de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


A verdade é que ainda estou em dúvida, e mais que isso: são, agora, mais de duas semanas em estado de suspensão. Perguntar aos editores sobre a verdade estragaria o tribunal íntimo a que me entreguei, não sem um certo prazer. A beleza está muitas vezes no caminho, na deriva, a chegada tem um quê de previsível, a concretude dos fatos pode ser aborrecida e os contornos diluídos abrem possibilidades de sentido – podem também retirar o chão. O fato: não tenho certeza se a seção de cartas está sendo utilizada como espaço de ficção. Não totalmente, porque isso seria sonegar a correspondência real, exercendo uma escrita ora crítica, ora onírica, ora autoelogiosa, algumas vezes vazada de humor, e não é essa a proposta do RelevO na seção “Cartas”. Talvez a dúvida tenha me bloqueado porque a estratégia me interessa muito como forma de questionar o estatuto do real, desabilitar certezas, inserir níveis de indeterminação no sistema – mas há indícios que apontam para a constatação de que aquelas cartas são verdadeiras: (i) o editorial, onde se busca explicar o óbvio (que justamente por ser óbvio nem sempre é percebido), (ii) a afirmação (ficcional) de que “é tudo real” na parte 4 da seção “Enfezadinhos”, e, por fim, (iii) a coexistência com cartas que são reais, foram de fato enviadas. Existe, claro, uma outra hipótese, que é de poetas/escritor_s usarem a seção de correspondência para exercitar um tipo de laboratório, criando tipos, propondo debates por meio dessas cartas-garrafas de náufrago.

De que cartas estou falando? Das cartas-não cartas, as que foram supostamente enviadas por potenciais colaboradores que tiveram seus textos recusados pelo jornal: Renata (ou Renato?) Duque, Feliciano Moreira, Ramiro Gregorin, Ronald Cabello, Alves Viana e Vanderley Gonçalves, reais, imaginários ou reais-imaginários, destilam sua amargura por não conseguirem (ainda, existe sempre um ainda nessa etapa) aceder ao status de autores publicados. Pondo de lado que meus planos consistiam em seguir conversando sobre alguns aspectos da poesia e da prosa contemporâneas, e falar disso a partir das ideias de Pasolini, o desvio que a dúvida causou pode ser útil para alguns aspectos da relação com a escrita. De saída, na hipótese de serem reais as manifestações, o texto de Jack London traduzido por Eder Capobianco tem tudo que aponta para o quão fora de foco elas estão, e de modo tão intenso que essas linhas poderiam ser apenas notas à margem de “Sobre a filosofia de vida do escritor” (p. 6 e 7 da edição de agosto). É curioso como London afirma a escrita como trabalho humano, propõe uma relação com a tradição que não imobilize ou esvazie seus resultados – como é o caso dos chatoboys neoparnasianos e seus sonetos insossos, inermes, inanimados –, e vincula, na medida exata, texto e experiência vital, sendo esta filtrada pelo pensamento. Ele é explícito: “Ao nascer eles [os que London considera talentosos, originais, os que possuem uma filosofia de trabalho] devem ter sido muito semelhantes a todos os bebês, mas de alguma forma, do mundo e de suas tradições eles adquiriram algo que seus companheiros não adquiriram. E isso não era nem mais nem menos do que algo a dizer. Agora você, jovem escritor, tem algo a dizer, ou apenas pensa que tem algo a dizer? Se você tem, não há nada que impeça que você o diga.” Essa última afirmação me faz lembrar de Antônio Abujamra quando disparava a seguinte fala para seus entrevistados no programa “Provocações” “Agora use sua liberdade, a que talvez você nunca tenha tido e que gostaria de ter por um momento, e fale para aquela câmera tudo que você gostaria de dizer”. O efeito da pergunta era, quase invariavelmente, curioso: as pessoas ou travavam ou diziam banalidades – a liberdade de dizer assusta, e na escrita não é muito diferente.

O que London afirma, no entanto, leva a pensar sobre o porquê da escrita. Em certa medida – e acho que já falei sobre isso em alguma edição –, é um ato solitário, mas apesar de existir a outra dimensão, coletiva, social, e apesar de que o ato de publicar seja de fato importante, imprescindível – porque tornar público um texto cria o potencial do diálogo e da crítica –, se quem escreve tem uma relação de dependência quase sôfrega com a publicização do que produz, algo está no lugar errado. Minha premissa é a seguinte: todos devemos escrever indiferentes à recepção, seja de editoras, de revistas, jornais, leitor_s etc. Não se deve buscar alimento nessas relações, elas são o depois da escrita, e podem vir ou não, inclusive de modo desvinculado da qualidade e significado da produção (claro que aqui tangenciamos um terreno complexo, pantanoso e impossível de esgotar no espaço de uma coluna – a definição do que seja qualidade num poema, conto, romance). Há casos bastante emblemáticos e conhecidos em que elas não vieram, ou não vieram com a proporção merecida (Emily Dickinson e Fernando Pessoa, por exemplo), porque ao fim e ao cabo é tudo muito aleatório: premissas de editores, comissões editoriais, júris de concursos, todos que viabilizam a publicação e veiculação do que quer que seja escrito. São tramas complexas, e, nesse campo, ancorar nosso trabalho a expectativas é desviar o foco do mais importante: escrever apesar de, apesar de, apesar de.

Não raras vezes alguém atravessou esse assunto num poema; é o caso de Pasolini, que afirma a potência da escrita em “Eu sou uma força do Passado”, escrito em 1964, aqui em tradução de Régis Bonvicino: “Eu sou uma força do Passado/ Somente na tradição está o meu amor/ Venho das ruínas, das igrejas/ dos retábulos, das aldeias/ abandonadas dos Apeninos ou Pré-Alpes/ onde habitavam os irmãos/ Vago pela Tuscolana como um louco,/ pela Ápia como um cão sem dono./ Vejo os crepúsculos, as manhãs/ de Roma, da Ciociaria, do mundo,/ como os primeiros atos da Pós-História,/ que testemunho, por conta da idade,/ da borda extrema de qualquer época/ sepulta. As vísceras de uma mulher morta/ pariram um ser Monstruoso./ E eu, feto adulto, vagueio/ mais moderno que todos os demais/ a procurar irmãos, que não existem mais”. O poema é carregado de significados complexos, ancorados na História, além de ser composto por muitas camadas. Ser uma força do passado, por exemplo, significa para ele “perceber a parte mais vital de nossa memória, morada de nossas memórias e conflitos”. E compreender o passado é essencial, porque não tê-lo entendido implica em revivê-lo como farsa: “viver o passado em forma de pedra significa remover a parte vital”, segundo o próprio Pier Paolo.

O principal aqui, penso, é perceber que o poema é um modo de estar no mundo, de esgrimir com a História, de enfrentar as contradições, inclusive as nossas – e sob essa ótica o chororô de ser ou não publicado parece vir de quem foi criado a leite com pera e ovomaltine na bandeja. Existe algo mais afastado da poesia, da literatura, da arte? Claro que há: os fascismos, por exemplo. No entanto, deixar de sentir-se o centro do mundo e aproveitar o tempo em trabalhos não contraproducentes como indignar-se por ser recusado me parece mais sintonizado com o que Jack London prescreve. Não custa lembrar também que a longo prazo estaremos todos mortos. Colocar a morte em perspectiva costuma ser um bom exercício para diluir essas veleidades. Outra coisa produtiva é a raiva, bem dirigida, contida em margens de ferro e transmutada em esforço de produção, escrever é trabalho humano que sempre permite ser aprimorado, ajustado. Resumindo ao máximo: é preciso parar de lero-lero e ir à luta.

Mas ainda não falei quase nada sobre o RelevO de agosto… Invertendo o pêndulo de edições anteriores, apenas dois textos em prosa estão presentes: um trecho de “Metamorfoses do Sr. Ovídio”, de Julia Raiz, e “mas que inferno”, de Mariana Soeiro. Contos curtos e pedaços de romances ou novelas não deixam entrever, exatamente, o potencial de um autor, uma autora, trazem sinais desse potencial, e o maior deles é nossa curiosidade por ler mais – o que os dois textos provocaram em mim. A poesia ocupou, também proporcionalmente, mais espaço. As traduções de Piotr Kilanowski para poemas de Halyna Petrosaniak, Vasyl Stus e Serhij Zhadan se ocupam do problema da guerra e suas consequências nos indivíduos, e as boas surpresas que foram os poemas “9 tempos para entrar no mar”, de Raquel Zepka, e “Monocultura”, de Fernanda Lira, panorama que é completado pela tradução feita por Laura Assis do poema “A casa”, da poeta queniana Warsan Shire. Todos os poemas deslocam perspectivas, cada um a seu modo, afirmam um olhar diferente sobre a parte da realidade que trazem à superfície – e este é um traço da poesia que diz ao que veio. No mais, continuo curtindo as colunas Enclave e Brazilliance, sem deixar de lembrar que poesia e ficção são o que fazem de RelevO um jornal sempre esperado por leitor_s (menos pelos recusados indignados).

Pós-escrito: para que todo o acima escrito não ganhe ar de encenação, preciso dizer que antes de escrever os dois últimos parágrafos não aguentei a curiosidade e perguntei ao editor se as cartas eram reais. Não sem algum espanto (porque havia a esperança do contrário) recebi a confirmação: as manifestações indignadas de autores recusados – sim, ao que parece todos do gênero masculino – são absolutamente reais.