Baú: John Gray

Extraído da edição 94 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Um fantoche pode parecer a própria encarnação da falta de liberdade. Seja movido por uma mão oculta ou puxado por cordéis, não tem vontade própria. Seus movimentos são comandados pela vontade de outro — um ser humano que decidiu o que o fantoche fará. Totalmente controlado por uma mente fora dele, o fantoche não tem escolha em sua maneira de viver.

Seria uma situação insuportável, não fosse o fato de que um fantoche é um objeto inanimado. Para sentir falta de liberdade, é preciso ser um ser consciente. Mas um fantoche é um objeto de madeira e pano, um artefato humano sem sentimento nem consciência. Um fantoche não tem alma. Consequentemente, não tem como saber que não é livre.

Para Heinrich von Kleist, no entanto, os fantoches representavam um tipo de liberdade que jamais estaria ao alcance dos seres humanos. Em seu ensaio “O teatro de marionetes”, publicado em 1810, o escritor alemão leva o narrador, perambulando por um parque da cidade, a encontrar “Herr C.”, que acaba de ser nomeado primeiro bailarino da Ópera. Vendo-o em diversas oportunidades em um teatro de marionetes montado na praça do mercado, o narrador manifesta surpresa pelo fato de um dançarino frequentar essas “pequenas burletas”. Em resposta, Herr C. comenta que um dançarino pode ter muito a aprender com esses espetáculos. Pois tantas vezes não são os títeres — controlados do alto pelos titereiros — extremamente graciosos em seus movimentos de dança? Nenhum ser humano poderia se equiparar às marionetes em sua graça natural. O títere é:

incapaz de afetação. — Pois a afetação ocorre, como se sabe, sempre que a alma […] se situa em um lugar que não seja o centro de gravidade de um movimento. Como o titereiro, manuseando os cordéis ou o fio, não tem outro ponto de apoio senão o que está sob seu controle, todos os outros membros são o que devem ser: inertes, meros pêndulos, e apenas obedecem à lei da gravidade; um excelente atributo que em vão procuraremos na maioria de nossos dançarinos […] esses fantoches têm a vantagem de ser resistentes à gravidade. Do peso da matéria, o fator que mais atua contra o dançarino, são totalmente ignorantes: pois a força que os eleva no ar é maior que a que os prende ao solo […]. As marionetes mal tocam o solo, feito elfos, a parada momentânea confere aos membros um novo ímpeto; mas nós o usamos para repousar, para nos recuperar do esforço da dança: um momento que evidentemente não é dança em si mesmo, com o qual nada podemos fazer, exceto superá-lo o mais rapidamente possível.

Quando o narrador reage com espanto a essas afirmações paradoxais, Herr C., “cheirando uma pitada de rapé”, observa que ele deveria ler “com atenção o terceiro capítulo do Gênesis”. O narrador entende a alusão: ele tem “perfeita consciência dos danos causados pela consciência à natural graça de um ser humano”. Mas ainda assim se mostra cético, e então Herr C. lhe conta a história de como enfrentou um urso. Bom esgrimista, ele seria capaz de trespassar com facilidade o coração de um ser humano; mas o animal se esquivava, aparentemente sem qualquer esforço:

Ora eu investia, ora simulava um ataque, já estava suando em bicas: tudo em vão! O urso não se limitava a se esquivar a todas as minhas investidas, como o melhor esgrimista do mundo; quando eu simulava um ataque — nenhum esgrimista seria capaz disso —, ele sequer reagia: olhando-me bem nos olhos, como se pudesse ver minha alma, ficava com a pata erguida, de prontidão, e, quando minhas investidas não eram sérias, ele nem se mexia.

Os seres humanos não são capazes de imitar a graça de um animal assim. Nem a fera, nem o fantoche, sofrem da maldição do pensamento autorreflexivo. Por isso, na visão de Kleist, é que são livres. Se os seres humanos um dia forem capazes de alcançar esse estado, será apenas depois de uma transmutação em que se tornem infinitamente mais conscientes:

assim como duas linhas que se cruzam em um ponto, depois de terem passado por uma infinidade, subitamente convergem de novo do outro lado, ou como a imagem em um espelho côncavo, depois de viajar na direção do infinito, de repente se aproxima de novo de nós, também, quando a consciência tiver por assim dizer passado por uma infinidade, a graça retornará; de tal maneira que a graça estará mais puramente presente na forma humana que não tiver consciência ou a tiver em um alcance infinito, vale dizer, em uma marionete ou em um deus.

O diálogo é concluído dessa maneira:

— Mas então — intervim, meio confuso — precisaríamos comer de novo da Árvore do Conhecimento para retornar ao estado de inocência?
— Certamente — respondeu ele —, é o capítulo final da história do mundo.

John Gray, A Alma da Marionete: um breve ensaio sobre a liberdade humana, 2015 (ed. Record, 2018).