Swing de amor nesse planeta: os trinta anos da maior banda brasileira

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por Marceli Mengarda, a Burocrata — publicado na edição de abril do Jornal RelevO, com diagramação especial (de Marceli Mengarda, a Burocrata).

Tem uma teoria sobre a popularidade do reggae em São Luís, capital do Maranhão e considerada por muitos a “Jamaica brasileira”, segundo a qual o ritmo emplacou especialmente nas periferias após chegar aos dials ludovicenses pelas ondas de rádio AM de estações caribenhas, que percorrem distâncias bem mais longas que a FM. Se foi isso mesmo ou se na verdade algum marinheiro só largou um vinil do Bob Marley ali no porto, pouco importa. Este texto é sobre o Skank, então uma imagem envolvendo reggae, rádios e situações em que ninguém apostaria serve bem demais para ser desperdiçada.

Se você tinha ouvidos funcionais e um aparelho de rádio nos anos 1990, é absolutamente impossível não ter ouvido a voz do psicólogo Samuel Rosa de Alvarenga em algum momento. O Skank é talvez a banda que chegou mais perto da unanimidade em território brasileiro e, enquanto comemora trinta anos do lançamento de seu primeiro disco, está fazendo uma turnê de despedida dos palcos. Antes de nos perdermos pensando em por que todas as coisas boas sempre têm um fim, cabe um exercício afetivo de elencar, com razões aleatórias e mais ou menos cronológicas, por que esta coisa (a banda Skank) é tão boa.

De início, bem, é uma banda mineira: Samuel Rosa, Henrique Portugal, Lelo Zaneti e Haroldo Ferretti estavam todos em Belo Horizonte, o que já desperta a maior das simpatias. Impossível imaginar o pessoal comendo um espaguete no Bolão, em Santa Tereza, e não ser tomado por uma vontade de chegar junto, pedir uma dose de cachaça e perguntar se o Lô Borges não vai aparecer por lá nessa noite. A banda surgiu em 1991, mas o primeiro disco, Skank, saiu só em 1993. A ideia era trazer referências do dancehall jamaicano ao pop brasileiro, e o CD foi lançado e distribuído, no início, de maneira independente. Começou a fazer tanto sucesso que chamou atenção da gravadora Sony Music e o que se seguiu foi contrato, relançamento, tudo oficializado e nos conformes. Neste disco, tem uma versão de ‘I want you’, do Bob Dylan, com uma batida dub e uma letra muito bonita falando em realejos ancestrais e dândis de paletó chinês, que ficou melhor que a original – o prêmio para quem é ousado a ponto de unir os Bobs e colocar um pouco de Marley no Dylan. O som desse primeiro disco é cru e bastante regueiro, mas as letras estão vários níveis acima do que se ouve em música reggae normalmente: não há uma menção sequer à cor verde ou à planta que nasce da terra, e talvez esse seja exatamente o caminho. Emplacar uma banda cujo nome é uma variedade de maconha e não precisar mais tocar nesse assunto.

Em 1994, veio o Calango: uma capa com tipografia inegavelmente noventista e um pé ainda no dancehall, mas um pé que dança com muito mais desenvoltura, misturando com mais elegância as referências musicais (um dos melhores exemplos é juntar o tema do Peter Gunn a ‘É proibido fumar’, por sinal mais uma música que fala de maconha sem precisar falar de maconha). Discaço. Tem ‘O beijo e a reza’, que manda um “o sol na nuca e o corpo dela ofusca a luz do sol”, algo que o Milton Nascimento diria se tivesse escrito um reggae dub. Tem uma variedade musical mineira, o calango (han, han), que é recuperada em ‘A cerca’: o estilo é uma espécie de desafio verbal, um repente entre caipiras, mas musicalmente também vai até Recife, beija Chico Science e volta a Minas Gerais pelo Grande Sertão. No fim do disco, tem uma ‘Let ‘em in’ incidental em ‘Pacato Cidadão’ que já dá uma pista dos rumos McCartneyanos pelos quais a banda ia enveredar mais pra frente.

Calango tinha vendido um milhão de cópias e o Brasil todo dançava e cantava os hits dos mineiros, mas ainda não havia resposta para uma dúvida muito importante, que era a questão de a bola na trave alterar ou não o placar. Aí, em 1996, veio O samba poconé, começando com uma das dobradinhas de riff de guitarra + hey mais conhecidas da música brasileira em ‘É uma partida de futebol’, para responder: não, bola na trave não altera o placar. O disco de 1996 vendeu dois milhões de cópias e encapsula a Fase Seios do Skank: tanto na capa do disco quanto no videoclipe de ‘Garota nacional’, o mamilo feminino foi libertado sem reservas e sem incorrer em cancelamentos (sequer pelo revisionismo, o que é curioso). ‘Garota nacional’ foi a música mais tocada nas rádios brasileiras em 1994, liderou as paradas espanholas (!) por três meses e foi a única brasileira escolhida pela Sony Music para uma coletânea de comemoração do centenário da gravadora. A batida alegre e funky, aliada a um refrão chicletíssimo, é indefectível e explica o alcance inimaginável da canção – uma anedota bastante pessoal que ajuda a colocar as coisas em escala é a forte lembrança dessa música começando a tocar no som mecânico da festa de quinze anos de minha irmã mais velha, num salão de igreja de uma cidade do interior de Santa Catarina, e a emoção que tomou conta de todos os adolescentes noventistas lá presentes. Hoje, se você olhar em um serviço de streaming como o Spotify, vai ver que ‘Garota nacional’ tem menos da metade dos plays de ‘Sutilmente’, por exemplo, então entendemos o quão difícil é explicar esse tipo de coisa à juventude streamer, mas aconteceu demais.

Um videoclipe pra lá de seios.

Há quem, depois de fazer muito sucesso, não sabe direito o que fazer com isso e perde oportunidades, abandona a chance de alçar voos ainda mais altos e fica no patamar onde está (ou, pior, tropeça e cai). O Skank sempre bancou o sucesso de forma aparentemente muito tranquila e segura. O Samba Poconé já teve mixagem em um estúdio de Nova Iorque e parceria com Michael Fossenkemper (que divide os créditos por ‘Tão seu’), além de três músicas com feat de Manu Chao e uma viagem completa pela América, do funk norte-americano à já tradicional mistura caribenha ao pop-rock latinoamericano que estava quebrando tudo. Enquanto o trabalho e as parcerias se profissionalizavam cada vez mais, o produto permanecia acessível – pop fino, bem trabalhado e que respeita o ouvinte. Poucas bandas conseguem manter esse equilíbrio com essa consistência, e os três primeiros do Skank consolidaram tanto a proposta quanto o conceito. Acertadamente, em 2018 a banda lançou uma série de EPs ao vivo chamada Os três primeiros – com mais músicas dos dois últimos, como deve ser. Tática esperta, defendida por teóricos sérios da música e corroborada por aqui, que poderia ser aplicada até a um Black Sabbath da vida (mas, aí, contando os quatro primeiros).

Em 1998, no Siderado, a batida dub já é um eco distante, mas há grooves finíssimos e verdadeiras joias do ar soprado por entre tubos de metal, como ‘Saideira’, a música que encerra o disco (e que, depois, ganhou um cover de Carlos Santana). A cota de música de festinha é atendida com glórias por ‘Mandrake e os cubanos’ – canção que ensaiou um revival nos convescotes de jovens descolados no fim dos anos 2010, sendo interrompida abruptamente pelas restrições pandêmicas –, parceria de Samuel Rosa com Chico Amaral, saxofonista que divide a composição de tantas outras canções. Outra parceria que está ali e vai frutificar ainda mais nos anos seguintes é a de Nando Reis, que presenteou o Skank com ‘Resposta’, uma das mais lindas letras de término do cancioneiro popular, feita para Marisa Monte – a despeito de os Titãs todos ficarem de cara, porque a música fez um sucesso danado. Às vésperas do novo milênio, em 2000, Maquinarama vem para completar a transição do som que passou a ter referências cada vez mais britpop beatlemaníacas – anunciadas, de alguma maneira, com aquela parte do desejo e o destino brigando como irmãos em ‘Três lados’, um claro aceno ao Oasis que só não vê quem não quer. Sem brincadeira, essa letra: “somos dois contra a parede / e tudo tem três lados / e a noite arremessará outros dados”. Né. ‘Balada do amor inabalável’ completa a cota de música que tocou em novela – outra das bem-sucedidas táticas de distribuição da banda, que emplacou 23 músicas em trilhas sonoras de telenovela, oito delas só em Malhação. ‘Canção noturna’, quase o que seria uma saga de Castañeda mas com mais romance e num deserto um pouco mais andino, é outra das excelentes composições do disco (aliás, descobrindo agora: um dervixe é um tipo de monge muçulmano, seja lá o que isso signifique. A gente também acredita em tanta coisa que não vale nada).

O carinho da torcida com o cover guitarrado de ‘Saideira’

O disco Skank (ao vivo), gravado em Ouro Preto em 2001, conseguiu outro feito admirável: ‘Acima do Sol’, uma música ainda inédita (e que não foi lançada em nenhum outro disco posteriormente), alcançou o topo das paradas, porque o pessoal estava querendo diversificar essa coisa de topo das paradas para ganhar também de modos menos convencionais. Nesse disco, tem ainda ‘Estare prendido en tus dedos’, uma versão em espanhol de uma música do The Police, mais uma generosidade da banda em fazer um cover melhor que o original, seguida por um novo arranjo para ‘Tanto (I want you)’ bem menos dub que a do primeiro disco. O novo milênio chegou e muitas coisas estavam mudando com o advento da tecnologia e essas frases feitas para falar dos impactos da internet que se popularizava e da telefonia celular se imiscuindo sorrateiramente em nossos bolsos e em nossas vidas. O Skank conseguiu fazer uma boa leitura da conjuntura toda, talvez também por estar numa transição sonora muito particular e específica – e, claro, respaldados pela consistência de uma carreira de dez anos sendo honestos e, para usar uma expressão contemporânea, entregando tudo.

Um cruzeirense absolutamente transtornado na vitória do cabuloso sobre o Huracán. Sai daí, Samuel, é perigoso!

Cosmotron, de 2003, foi uma espécie de divisor de águas. Ricardo Alexandre, no livro Cheguei bem a tempo de ver o palco desabar, de 2006, tem um capítulo dedicado às relações dos mineiros com os fãs, outros músicos e a imprensa musical brasileira. Uma reunião da banda com os executivos da gigante Sony durante a mixagem do Cosmotron fecha o capítulo e é ilustrativa dessa natureza muito particular do Skank. Por ter chegado na gravadora já com um disco independente que vendeu muito bem, e por ter somado a ele dois discos que venderam bizentos milhões de cópias, a banda pôde ocupar uma posição muito mais independente do que se acredita possível nesses contratos. Assim, enquanto o pessoal ouvia o disco, os integrantes defendiam (com ‘simpatia e cordialidade’, segundo Alexandre) que o primeiro single do disco, antes do inegável single ‘Vou deixar’, deveria ser ‘Dois rios’. Funcionou: a música mais pianera-Paul-McCartney – uma das músicas mais bonitas de todos os tempos, inclusive –, foi lançada como o primeiro single, fazendo muito sucesso, e logo depois deixaram que ‘Vou deixar’ chegasse varrendo o Brasil numa catarse que só os grandes hits enérgicos para cantar a plenos pulmões são capazes de suscitar.

‘Vou deixar’ inaugura também uma categoria muito específica de Efeito Mandela, que é o de estar nas lembranças de todo mundo tendo sido a trilha sonora de formaturas que aconteceram antes mesmo de seu lançamento. Apesar de ter tocado à exaustão, perigando enjoar todo mundo com tamanho alto-astral, é engraçado que ela só tenha surgido só no sétimo disco da banda, já que é um dos momentos mais enérgicos das apresentações ao vivo da banda. Outra questão importante sobre o Skank: há muitas bandas que entregam uma boa performance ao vivo, animando o mar de gente que se posiciona ali e espera pular, levantar os braços e dar uns gritos em algum momento. Há muitas bandas que entregam composições complexas, letras que te fazem refletir mas que não necessariamente te fariam pular. Uma coisa não tem que, necessariamente, pressupor a outra: dá pra pular com uma letra que diga apenas “vamo pular” e dá para sentar e ouvir as mais poéticas do Milton Nascimento sem que essas experiências sejam diminuídas. Mas, quando uma banda junta as duas coisas, é preciso reconhecer o quanto isso é especial. Não por acaso, o pessoal do fã-clube – um produto extremamente noventista, assim como a rádio FM – estará lá, em quantos últimos-shows-da-última-turnê houver.

Em 2004, veio Radiola, uma coletânea dos maiores sucessos focada em Maquinarama e Cosmotron, trazendo também ‘Vamos fugir’, versão da maravilhosidade de Gilberto Gil que, segundo consta nas fontes, foi gravada para uma campanha publicitária da Rider (não lembrava, mas então tá). Dois anos depois, foi lançado Carrossel, com hits como ‘Uma canção é pra isso’ e ‘Mil acasos’ e diferentes tentativas de incorporar as novas tecnologias. A melhor de todas talvez tenha sido a banda ganhar, após um sem-número de discos de ouro, o primeiro Celular de Ouro do Brasil, por ter lançado o álbum Carrossel em formato digital em parceria com a Sony Ericsson – o modelo W300 vinha com todas as músicas do disco (lembra quando o U2 fez isso e todo mundo odiou e só queria saber como fazia pra deletar aquele álbum do iTunes?). Na toada tecnológica, teve ainda votação para escolher single de disco no site da banda (no álbum seguinte, com ‘Sutilmente’) e asseguram eles que ‘Vou deixar’ foi o ringtone com mais downloads no país.

O disco Estandarte, lançado em 2008, trouxe os últimos grandes hits inéditos: ‘Sutilmente’, uma parceria com Nando Reis (e uma música inegavelmente nandorrêica), e ‘Ainda gosto dela’, com participação de Negra Li que, salvo engano, é a primeira contribuição feminina numa gravação deles (esperando ser um engano mesmo; de todo modo, apesar da demora, a escolha foi muitíssimo acertada). Em 2010, veio o Multishow ao vivo, gravado no Mineirão. Foi uma despedida do estádio antes da reforma para a Copa do Mundo, não sem antes Samuel Rosa chamar a Máfia Azul para sacudir o gigante da Pampulha durante ‘É uma partida de futebol’. Essa música, a propósito, já é uma parceria com Nando Reis – reza a lenda que eles se conheceram no Rock Gol MTV, onde o Skank participou uma porção de vezes, consolidando também a posição de banda mais boleira do Brasil. Outro destaque do Ao vivo no Mineirão é a capa do disco, a partir de uma foto real, antiga e lindíssima da inauguração do estádio, em 1965, feita pelo fotógrafo Paulo Albuquerque.

Um trem bonito desses rebenta com nóis tudo.

Em 2011, teve mais um disco ao vivo, agora no Rock in Rio; em 2012 teve um revival do reggae com o Skank 91 e, em 2013, uma compilação dos #1 Hits com 25 canções entre os maiores hits (o famoso ‘só as boas’). Velocia, o disco de 2014, tem um tanto de parcerias com Nando Reis e uma pedrada para tocar fogo em todas as Babilônias com a ajuda de BNegão. Dali até 2019, quando anunciaram um hiato por tempo indeterminado e uma turnê de despedida, teve ainda a supracitada gravação dos três primeiros. Muitas coisas complicadas aconteceram nesse tempo todo e a relação do Skank (e da música pop como um todo) com a rádio FM parece acompanhar essa dinâmica.

Uma busca pelas músicas mais tocadas nas rádios brasileiras a cada década dá uma boa visão do fenômeno. Nos anos 1990, havia um equilíbrio entre os artistas internacionais – um tanto de R&B, um tanto de pop pós-roqueiro – e bandas nacionais de estilos diversos, desde o próprio Skank e os outros mineiros ilustres do Só pra Contrariar ao pop-guitarrado-creuzebeck dos Mamonas Assassinas, com algumas aparições do sertanejo hoje clássico, com duplas como Leandro e Leonardo. Nos anos 2000, o pop seguiu dominando as listas, agora com alguma expressividade de divas pop internacionais e um ensaio do que aconteceria uma década depois no estouro do sertanejo misturado ao pop, com artistas como Michel Teló e Victor e Léo – nessa década, o Skank ainda seguia lá, com músicas como ‘Sutilmente’ e ‘Vou deixar’. De 2010 para a frente, é muito difícil encontrar qualquer música que não tenha menção a cerveja ou motel no título ou que não seja de um cantor com letra duplicada no nome (numerologia, a grande parceira do famoso brasileiro desde sempre); uma dupla usando chapéu e cinto com fivelas exorbitantes sobre calças skinny ou mesmo uma mulher, desde que esteja cantando também sobre litrão e adultério. O agronejo, popnejo ou funknejo (diferentes digievoluções, que requerem alguém mais estudioso do tema para explicar) tomaram de assalto os dials das rádios FM brasileiras, complementando locutores que ficaram cada vez mais confortáveis para falar todo tipo de descalabro e, hoje, têm como única disputa à altura as rádios evangélicas (embora a real salvação seja mesmo a Antena 1, mas isso não vem tanto ao caso agora).

Como acontece com tudo que é bonito e complexo, não dá para afirmar categoricamente se a onda chorumosa que tomou este país é uma causa ou uma consequência de não termos mais hits inéditos do Skank. O que dá para afirmar – e, caso não tenha ficado claro nessa exposição extremamente puxa-saco – é que a banda se despede consolidada com um trabalho que fala por si e a coloca em posição de destaque seja qual for o critério de comparação. Um ponto fora da curva na música popular brasileira (e na música pop brasileira também), elaborado e acessível, com a antropofagia de sons e referências que só o brasileiro é capaz de engendrar. Já sabemos que vai ter um lugar diferente lá depois da saideira; não sabemos se vai ser bom mas, por enquanto, nesta última rodada, vamos brindar ao Skank.

Baú: David Mamet

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Como você manteve a exposição [dos roteiros] em um nível mínimo?

Essa é a graça. Qualquer um pode escrever um roteiro que tenha “Jim, como foram as coisas desde que você foi eleito governador do Minnesota? Como está sua filha albina?”; “Como é claro que você sabe, Sr. Smith, seu filho tem miopia. É incrível que, tendo essa miopia, ele estivesse ganhando o concurso nacional de ortografia”. Isso é fácil; isso não é um desafio. O truque é pegar uma história que pode ser complexa e tornar simples o suficiente para que as pessoas queiram alcançá-la em vez de detê-las e explicar-lhes por que deveriam estar interessadas – porque assim elas poderiam entender, mas não se importarão. O que deixa as pessoas interessadas é fazê-las alcançar [a história]. O que está acontecendo aqui? Quem é este cara? Que crime foi cometido? Quem foi levado? Por que ela é importante? Por que todas essas pessoas do governo estão correndo por aí? E como ele vai trazê-la de volta? Eles querem ver o que ele vai fazer a seguir. É aquilo a que se resume o cinema: o que acontece a seguir?

David Mamet entrevistado por Fred Topel, Screenwriter’s Monthly (fonte).


O truque é: nunca escreva exposição. Este é absolutamente o truque. Nunca escreva. O público precisa entender qual é a história, e se o herói entender o que procura, então o público irá segui-lo. A antiga piada sobre a exposição costumava estar na escrita de rádio quando diziam: “Venha e sente-se naquela cadeira azul”. Então, para mim, isso é o paradigma de por que é um erro escrever a exposição. Então a exposição saiu da televisão, “Eu sou bom, Jim, eu sou bom. Não admira que me chamem de melhor cirurgião ortopédico da cidade”. Não é mesmo? E agora a exposição migrou ou metastaseou para a porra da direção de palco. “Ele entra na sala e você pode ver que é o tipo de cara que lutou na Guerra do Vietnã”. Portanto, o erro da exposição de escrita existe mesmo sem a mais irrisória compreensão do processo dramático. Você tem que retirar a exposição. O público não se importa. Como sabemos que eles não se importam? Alguém já entrou na sala e viu um drama televisivo que estava na metade? Você teve alguma dificuldade para entender o que estava acontecendo? Não. O truque é deixar a exposição de fora e deixar sempre a “cena obrigatória” de fora. A cena obrigatória é sempre a cena da audição. Então, quando você vê o filme, ela não só é a pior cena – é também aquela com a pior atuação. Porque a estrela tem que fazer sua pior e mais expositiva atuação para conseguir o trabalho. Deixe de fora a exposição; queremos saber o que acontecerá a seguir. Todos os nossos amiguinhos lhe dirão em certo momento: “Você sabe, queremos saber mais sobre ela”. E é quando você diz: “Bom, foi para isso que você me pagou – para que você quisesse saber mais sobre ela”.

David Mamet entrevistado por Jeff Goldsmith, Creative Screenwriting (fonte).

Em defesa de Babilônia

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Batalhão do RelevO descendo para defender Babylon (2022, frame do filme).

Sábado à tarde, sol e… shopping. O cenário do inferno: poucos contextos são tão desprazerosos e te despertam tanto para os males da sociedade quanto um shopping lotado. Tudo é brega, triste e, principalmente, cheio. Até o estacionamento é caro – e árduo. Todos os olhares compõem antíteses de beleza, uma atrás da outra.

Era a única sessão de Babilônia restante em Curitiba, e eu já chegava à sala parcialmente arrependido. Ademais, sabia que permaneceria mais de três horas naquele lugar, portanto o custo de oportunidade era muito alto (deslocamento + estacionamento + ingresso + desgosto + tempo).

Então Babilônia começou – a primeira das duas vezes em que eu me submeteria àqueles mágicos 189 minutos.


É época de Oscar (acho eu, recebendo gotas do tema após este cair com peso na piscina aberta, respingando nos inocentes ao redor), um dos assuntos mais desinteressantes da civilização. Importar-se com o Oscar é por si só uma postura tão entediante que este enclave sequer procurará argumentar sua posição.

Paralelamente, ou por outro lado, ou de forma contraditória, adoramos virar os olhos para a crítica, esse Leviatã imaterial maníaco-depressivo eternamente atrapalhado pela própria miopia. É divertido, embora angustiante, indignar-se com o louvor a algum produto medíocre, questionar ferramentas (os tomates, os bots, o rabo preso) ou defender ferrenhamente uma injustiça, imaginando-se à frente de seu tempo – sem se levar muito a sério, por favor.

Enfim, tentar compreender os mecanismos de raciocínio que elevam ou repudiam uma obra (seja musical, seja audiovisual, seja gastronômica) é um baita exercício de compreensão da cultura, da sociedade e de comportamentos miméticos.

Também já é senso comum estabelecer a fase melancólica de Hollywood – e, vale registrar, não necessariamente do cinema (injusta sinédoque…) –, escrava de franquias mastodônticas, reciclagens extremas, algoritmos famintos e, queiramos ou não, esterilidade de produções tão politicamente corretas (outro subtópico que não temos interesse em desenvolver).

Pois bem, queremos filmes mais originais, autorais, cujos diretores (simbolicamente) nos estapeiem e proclamem “cala a boca, eu sei o que tô fazendo”. Ao menos dizemos isso em voz alta. Para nossa sorte, recebemos um destes com Babilônia (2022), de Damien Chazelle (Whiplash, La La Land, First Man).

Babilônia é uma pedrada épica cujos vários atos retratam a passagem do cinema mudo para o sonoro, partindo de 1926. O filme tem muito de Era uma vez na América (1984); Boogie Nights (1997); Eyes Wide Shut (1999); A Grande Beleza (2013); O Grande Gatsby (2013); Lobo de Wall Street (2013) e Era uma vez em Hollywood (2019) – e talvez por ter um tanto de tudo, sem recortes, tenha chegado a seus 189 minutos.

  • Era uma vez na América: crescimento de um grupo; música-tema em variações; melancolia do tempo e suas mudanças; longa duração.
  • Boogie Nights: por dentro de uma indústria; ascensão e decadência dos envolvidos nessa indústria; produções e vaidade.
  • Eyes Wide Shut: um dos capítulos, especialmente, é 100% De Olhos Bem Fechados.
  • A Grande Beleza: festa; glamour; decadência; beleza vs. vazio.
  • O Grande Gatsby: período parecido, euforia parecida; Tobey Maguire. Muito superior, Babilônia é o que Baz Luhrmann gostaria de ter feito com seu Gatsby.
  • Lobo de Wall Street: gente rica se drogando; apogeu e queda; euforia.
  • Era uma vez em Hollywood: os filmes por dentro; passado de Hollywood; Margot Robbie e Brad Pitt.

No entanto, Babilônia teve uma recepção crítica… morna, no mínimo. “Polarizada”. Acreditamos que o Leviatã míope se arrependerá dentro de alguns anos, portanto registramos nossa breve defesa (sem spoilers).

  1. O ato inicial do filme, uma festa megalomaníaca (à Grande Beleza), é um pináculo de montagem, edição e figurino sozinho mais interessante que a maioria das produções de grande orçamento a terem saído do papel. Há camadas e camadas e camadas: ao público basta perder-se e admirar a sequência.
  2. A trilha sonora é monumental, praticamente um personagem. Quem assina é Justin Hurwitz, também encarregado da função em Whiplash, La La Land e First Man. Tal entrosamento justifica como Chazelle consegue potencializar o trabalho de seu escudeiro por meio de uma edição, then again, primorosa. A estratégia Morricônica de estabelecer um tema e desenvolvê-lo em variações seguindo o desenvolvimento dos personagens encaixa precisamente com a filme.
    1. Mais sobre a trilha aqui.
  3. Os atores estão voando. Entre os protagonistas, Margot Robbie impressiona no papel de Nellie, a estrela selvagem adentrando um novo universo de glamour, cocaína, sujeira e vaidade. Diego Calva nos cativa como Manny Torres, o imigrante ligeiro. Brad Pitt faz o que sempre fez e, justamente, quando se precisa de um personagem-Brad-Pitt na tela, ele ainda é o mais indicado. Menções honrosas a Jovan Adepo (trompetista Sidney) e Jean Smart, cuja personagem representa, vejam só, a crítica.
    1. Aqui uma relação entre os personagens e suas contrapartes históricas.
  4. Há um desenvolvimento concreto, progressivo e realista dos personagens – o que justifica e faz valer os 189 minutos. Trata-se de épocas diferentes, cenários distintos, mudanças drásticas e desfechos variados: não teria graça pincelar tudo isso. Sob a perspectiva de Manny, Babilônia é praticamente um Bildungsroman. A virada de chave do cinema mudo elevou e derrubou muita gente. Absorvemos isso testemunhando o contexto inicial com calma. Nos situamos, então realmente enxergamos o impacto da mudança. Da mesma forma, a produção não fecha os olhos para a diversidade sociocultural da época e seus respectivos preconceitos. Só não o faz com o didatismo enfadonho com que muitos filmes-massa-amorfa parecem dirigir-se ao Twitter.
  5. Todas as cenas retratando produções cinematográficas – isto é, a dificuldade técnica de gravá-las cem anos atrás, em cenários externos ou internos – são extraordinárias, sem tirar nem por. O silêncio, o improviso, a magia. Esses momentos complementam a conclusão anterior: entendemos a magia, portanto, depois disso, a mudança nos afeta e conseguimos sentir os personagens.
  6. A cena final (novamente, sem spoilers) é um derretimento imperdível; o dedo médio de confiança absoluta do diretor; a autoria em seu êxtase. O fim que merecemos depois de uma jornada divertida, melancólica, megalomaníaca, engraçada, trágica, bela. De chorar. De chorar. Quem se rendeu não esquece.

Convenhamos, nenhum desses argumentos é grande coisa (“show, don’t tell”). Assista ao filme com som alto e coração limpo, depois diga-nos o que achou (por favor!). Três horas não são nada. Por fim, se quiser argumentos ainda piores, saiba que Babilônia foi indicado a três categorias do Oscar. Viva o Oscar!

Baú: Truman Capote

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Certa vez, convidaram-me para um casamento; a noiva sugeriu que eu viajasse de Nova Iorque para norte no carro de dois outros convidados, um casal cujos elementos davam pelos nomes de Mr. e Mrs. Roberts e que eu não conhecia. Era um dia frio de abril, e, durante a viagem de carro até ao Connecticut, os Roberts, um casal de quarenta e poucos anos, pareceram-me bastante simpáticos — não eram pessoas com quem me apetecesse passar um fim de semana prolongado, mas não eram maus de todo.

No copo-d’água, todavia, o álcool correu a rodos, e os meus motoristas emborcaram, diria eu, um bom terço do total. Foram os últimos a abandonar a festa, cerca das onze da noite, e a ideia de os acompanhar deixou-me alarmado; sabia que eles estavam bêbedos, mas não me apercebera até que ponto. Tínhamos percorrido uns trinta quilómetros, com o carro a guinar bastante e Mr. e Mrs. Roberts a insultarem-se mutuamente, fazendo uso da mais extraordinária linguagem (tratou-se, sem dúvida, de um momento saído de Quem tem medo de Virginia Woolf?), quando Mr. Roberts, como seria de esperar, se enganou no caminho e se perdeu numa estrada rural sombria. Eu pedi-lhes uma e outra vez, e por fim pus-me a suplicar que parassem o carro e me deixassem sair, mas eles estavam tão embrenhados nas suas invetivas que me ignoraram. No fim de contas, o carro imobilizou-se de forma espontânea (temporariamente) quando foi embater contra o tronco de uma árvore. Aproveitei a oportunidade para sair de rompante pela porta traseira e corri para o meio da floresta. Pouco depois, o amaldiçoado veículo arrancou, deixando-me sozinho na escuridão gélida. Estou certo de que os donos do carro nem deram pela minha falta; sabe Deus que eu não senti a falta deles.

Truman Capote, Uma candeia numa janela. Música para camaleões (1980, ed. Livros do Brasil; trad. Paulo Faria, 2015).

1962: um bom ano para gênios

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E, aliás, que seria de mim, que seria de nós, se não fossem três ou quatro ideias fixas?! Repito: não há santo, herói, gênio ou pulha sem ideias fixas. Só os imbecis não as têm.

Nelson Rodrigues

Pois bem.

Se na Enclave #112 tentamos analisar a interseção entre a Lolita (1955) de Vladimir Nabokov (1899-1977) e sua correspondente de Stanley Kubrick (1928-1999) – lançada em 1962 –, hoje derretemos o tema de forma breve e superficial, mas satisfatória para nos acalmarmos e finalmente mudarmos de assunto.

Voltemos àquele ano, o eixo comum entre nossos quatro personagens desta edição. Crise dos mísseis, Copa do Mundo, Don Draper bebendo e traindo.

Conforme comentamos, já lidamos com dois gênios em estágios diferentes da vida. Em 1962, ano de lançamento de Lolita (o filme), Nabokov vivia seu ápice – escritores não são jogadores de futebol, portanto 63 anos parece a idade certa para começar a colher frutos. Recém-mudado para a Suíça (onde viveria até seus últimos dias), ele lançaria nada menos que Fogo Pálido, outra obra-prima, para suceder Lolita.

Por sua vez, Stanley Kubrick, um nome promissor, sem dúvidas ainda não era Stanley Kubrick. Essa virada de chave aceleraria com seu trabalho seguinte, Dr. Strangelove (1964), e se consolidaria com o pináculo 2001: Uma Odisseia no Espaço, talvez o filme mais impressionante da história. No lançamento de Lolita, o jovem Kubrick estava prestes a completar 34 anos.

  • O que queremos dizer com impressionante? A definição mais pura e simples possível, o fator “wow!”, a indignação de “meu Deus, como eles fizeram isso?! E como fizeram isso na década de 1960?”.
  • Outro fator a motivar este texto foi a leitura do ótimo livro de Michael Benson. Recomendamos com ênfase a qualquer interessado por 2001.

Porém, entre os vários gênios daquela década, dois eram, além de indiscutivelmente gênios, indiscutivelmente brasileiros. Estamos falando, é claro, de Edson Arantes do Nascimento, o Pelé (1940-2022), e de Antonio Carlos Brasileiro (!) de Almeida Jobim, o Tom (1927-1994). Para eles, 1962 foi um ano de decolagens.

Constelação brasileira, aparentemente em 1966.

Como a Coreia do Sul hoje, o Brasil vivia seu ápice de popularidade. Era o sujeito descolado da escola, aquele cuja confiança os outros tentam emular sem sucesso. Bossa nova, Copa do Mundo, Juscelino, Maria Esther Bueno, Garrincha, Clarice, Guimarães Rosa, João Gilberto etc. – até Palma de Ouro. Seus movimentos vingavam em diversas frentes e, àquela altura, parecia que a coisa ia.

Não se trata de saudosismo (nunca), e sim de constatar o óbvio. A confiança é subjetiva e imensurável, e é provável que toda a minha geração morra sem conhecer um país confiante. (O que será que aconteceu logo depois, naquela mesma década, para frear tudo isso? 😒)

Pelé, nosso maior símbolo mundial, havia conduzido a seleção a seu primeiro título mundial em 1958, antes mesmo de completar 18 anos.

Na Copa seguinte, aos 22 – idade ótima para um atleta, péssima para um escritor – embora estivesse voando, machucou-se no segundo jogo, um empate em 0x0 contra a Tchecoslováquia. Foi substituído por Amarildo e viu Garrincha brilhar na campanha do bicampeonato, encerrada contra a mesma Tchecoslováquia (3×1).

No mesmo ano, ele ainda seria campeão paulista, brasileiro (então Taça Brasil), da Libertadores e Intercontinental (mundial). Neste último, destruiu com três gols o Benfica de Eusébio lá em Portugal (2×5).

Vale lembrar que Pelé só disputou três Libertadores: ganhou duas e parou em uma semifinal. Àquela época, era mais vantajoso fazer excursões mundiais – o Santos era praticamente um circo itinerante – do que se enlamear na competição continental, ainda sem transmissão televisiva.

1962 também foi um ano definidor para Tom Jobim por ao menos dois motivos. Primeiro, a histórica sequência de shows com João Gilberto, Vinicius de Moraes e Os Cariocas no restaurante Au Bon Gourmet, em que lançaram, entre outras joias, ‘Garota de Ipanema’. Depois, o absolutamente caótico show em Nova York que apresentou diversos músicos brasileiros a jazzistas de primeira linha dos EUA.

Separando apenas esses dois eventos, já encadeamos o sucesso posterior de Jobim. Em 1967, a consagração mundial viria após a parceria com Frank Sinatra. Ao longo de sua carreira, Tom viveria entre Rio de Janeiro e Nova York gravando obras-primas muito além de bossa nova, como Stone Flower (1970) e Matita Perê (1973).

  • É natural que nenhum brasileiro sinta vontade de escutar ‘Garota de Ipanema’, afinal qualquer superexposição dessacraliza. Isso nos afasta de uma beleza ímpar, mas, principalmente, nos faz esquecer o feito que constitui tamanho sucesso mundial.
  • The Girl From Ipanema is a far weirder song than you thought”.

Então voltamos a 1962, ano em que filtramos gênios. À Enclave, hoje interessam esses quatro – poderiam ser tantos outros e tantas outras, poderiam ser outras épocas. Tudo é recorte, e pensar num mundo com Nabokov, Jobim, Kubrick e Pelé em ação traz o tipo de melancolia alegre que nos satisfaz para iniciar a semana.

Baú: Miguel de Cervantes

Extraído da edição 113 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

E [Sancho] mostrou a caçarola cheia de gansos e galinhas e, pegando uma, começou a comer com muita distinção e apetite, e depois disse:

— Pendure a contas nas habilidades de Basílio, pois vales tanto quanto tens e tens tanto quanto vales! Só há duas linhagens no mundo, como dizia a minha avó: a que tem e a que não tem, e ela se agarrava com a que tinha. E, nos dias de hoje, meu senhor dom Quixote, se respeita mais o haver que o saber: um burro coberto de ouro parece melhor que um cavalo encilhado com albarda. Assim sendo, repito que fico com Camacho. Nas caçarolas dele são fartos os ensopados de gansos e galinhas, lebres e coelhos; nas de Basílio, se é que vou botar a mão em alguma, ou mesmo o pé, só deve haver sopa de pedra.

— Acabaste tua arenga, Sancho? — disse dom Quixote.

— Acabei, sim — respondeu Sancho —, porque vejo que vossa mercê se amola com ela, pois, se isso não atrapalhasse, teria pano para três dias de mangas.

— Queira Deus, Sancho — replicou dom Quixote —, que eu não morra sem te ver mudo.

— No passo que vamos — respondeu Sancho —, antes que vossa mercê morra, eu estarei comendo grama pela raiz, e aí pode ser que eu fique mudo, que não diga uma palavra até o fim do mundo, ou pelo menos até o dia do juízo.

— Mesmo que isso aconteça assim, Sancho — respondeu dom Quixote —, nunca teu silêncio chegará aonde chegou o que falaste, falas e falarás em tua vida. Além disso, é muito mais que provável que chegue primeiro o dia de minha morte que o da tua; então não penso jamais te ver mudo, nem quando estejas bebendo ou dormindo, que é o que mais me admira.

— Por Deus, senhor — respondeu Sancho —, não dá para se fiar na Caveirosa, digo, na morte, que tanto come bodes como cordeiros; e, como ouvi nosso padre dizer, pisa com o mesmo pé nos palácios dos reis como nas cabanas humildes dos pobres. Essa senhora tem mais poder que melindres, não tem nojo de nada: come de tudo e tudo faz, e de todo tipo de pessoas, idades e posições enche seus alforjes. Não é ceifador que durma as sestas, porque a toda hora ceifa, e tanto apara a grama seca como a verde; e parece que não mastiga, mas que engole tudo que aparece pela frente, pois tem fome canina, que nunca se satisfaz; e, embora não tenha barriga, dá a entender que está hidrópica e tem sede para beber sozinha a vida de todos, como quem bebe um copo de água fria.

Basta, Sancho — disse dom Quixote nesse ponto. — Fica aí, em terra firme, pois na verdade o que disseste sobre a morte com tuas palavras grosseiras é o que poderia dizer de um bom pregador. Olha, Sancho, se tivesses bom senso como tens boa índole, poderias arranjar um emprego de pregador e ir-te por esse mundo dando lindos sermões.

— Prega bem quem vive bem — respondeu Sancho —, e outras teologias não sei.

— Nem precisa — disse dom Quixote. — Mas não consigo entender como, sendo o princípio da sabedoria o temor a Deus, tu, que tens mais medo de um lagarto que d’Ele, sabes tanto.

— Julgue vossa mercê suas cavalarias, senhor — respondeu Sancho —, mas não se meta a julgar os temores e valentias alheias, que sou pagão tão temente a Deus como qualquer cristão. E me deixe despachar logo essa canja, que o resto são palavras ociosas, de que irão nos pedir contas na outra vida.

Miguel de Cervantes, Dom Quixote, vol. 2, 1615 (trad. Ernani Ssó, Penguin/Companhia, 2012).

Lolitas de Nabokubrick

Extraído da edição 112 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Lolita (1955), de Vladimir Nabokov, é o melhor livro que este editor leu em 2022, ainda que dezembro inteiro possa surpreendê-lo. Não esperava menos. Quem já teve contato com qualquer coisa escrita por Nabokov entende que o sujeito era basicamente um ET. Ademais, esse clássico contemporâneo dispensa apresentações, em que pese o fato de sua temática por si só ter-lhe fomentado a fama.

Por fim, quem também já teve contato com qualquer coisa dirigida por Stanley Kubrick entende que se trata de outro ET, talvez literalmente. E um jovem Kubrick, após o épico Spartacus (1960), assumiu a tarefa ingrata, hercúlea, espinhosa de adaptar Lolita (1962, hoje disponível no HBO Max). Por sua vez, a Enclave é basicamente uma newsletter sobre adaptações (releituras, reinterpretações, deslocamentos). Concluímos que o encontro Nabokubricko é um prato cheio.

Premissas

Muito já se falou – escreveu, argumentou, esmiuçou – sobre Lolita, em ambientes muito mais confiáveis que este. Porém, vale listar algumas considerações que elucidem, do nosso ponto de vista, por que esse romance é tão desgraçado. A despeito de detalhes muito conhecidos, principalmente para quem leu, partiremos de um leitor menos familiarizado (ou lembrado).

Lolita acompanha as memórias de Humbert Humbert, professor de meia-idade, em uma história já encerrada no momento da narração. Chegamos a ela por meio de um (fictício) editor de livros de psicologia. Nas mãos erradas, metalinguagem pode ser uma bomba de tédio; para Nabokov, é sempre um tempero. “Humbert Humbert” já é um pseudônimo dentro da história.

A partir disso, acompanhamos a trajetória e os devaneios de Humbert, um narrador absolutamente não confiável. Este é um dos cernes do livro: Lolita é, essencialmente, uma história que contém tudo aquilo que conhecemos dentro da perspectiva de seu maior infrator, e apenas dele.

Para tanto, está em boas mãos – nas melhores possíveis. Nabokov transformaria uma história de bingo na igreja na narrativa mais interessante do planeta se a mediasse por um narrador padre inseguro.

Pois bem, assim conhecemos a menina Dolores Haze, “Lolita” apenas na mente torpe de Humbert. Ou melhor, tentamos, pois tudo que ela pensa, sente ou executa nos é relatado pelo narrador que por ela se apaixona e que dela abusa. Não detalharemos o enredo em si.

Mas Lolita, o romance, nos oferece algumas surpresas; não por acaso é tão aclamado. A primeira delas, talvez menos lembrada: como qualquer obra-prima, o livro contém lampejos brutais de humor. Há duplos sentidos, jogos de palavras, azedumes do narrador – rimos dele, não com ele –, xadrez verbal com camadas de interpretação (Nabokov era um estrangeiro nos Estados Unidos e, naturalmente, na língua inglesa, na qual escreveu o livro). Ao longo da jornada de Humbert e Dolores pelo país, há inúmeros códigos à disposição do leitor-desbravador.

E aos poucos, Dolor’osamente (tssssc), nos apegamos ao narrador, um pedófilo manipulador, cretino e triste. Esse é o grau de qualidade da escrita da Nabokov, que brinca com sua arte, esfregando na nossa cara que conseguiria ganhar uma Libertadores com um time da Copa Kaiser. É como se ele nos desafiasse, provocando: “qual é a maneira mais difícil de eu te convencer? Um pedófilo neurótico professor de literatura é o suficiente para vocês? Pois bem”.

Parece piada, mas é bem provável que esse tenha sido o ponto de partida do escritor, um estudioso dos problemas de xadrez.

Ao fim de Lolita – emocionados, frustrados, raivosos, confusos –, experienciamos o suficiente para compreender com um só golpe a beleza da palavra escrita.

Adaptando o inadaptável

Which is why adaptar Lolita é uma tarefa tremendamente estúpida. Kubrick já sabia disso, vide o próprio cartaz da produção:

“Como foi que fizeram um filme de Lolita?”; fotografia de Bert Stern.

Afinal, estamos falando de uma suprassumo da palavra escrita. O que acontece na narrativa é menos esteticamente relevante que o efeito da narração. Como transportar esse efeito para o cinema (ou transformá-lo em outra coisa)? E, principalmente, por quê? Ademais, como expor o relacionamento de um marmanjo com uma garota de 12 anos?

Stanley Kubrick também gostava de um desafio – e de xadrez.

You’re gonna take my queen”, antecipa Charlotte, mãe de Dolores.

O responsável pelo roteiro é o próprio Kubrick, que editou pesadamente o material de Nabokov (ainda que este o assine). Sua Lolita pode ser classificada como uma comédia – a presença do gênio Peter Sellers, capaz de roubar qualquer cena, corrobora essa mudança de ênfase.

No longa-metragem, famoso pela iconografia consagrada no cartaz – isto é, o pirulito e o óculos (que sequer aparece no filme) –, Dolores tem mais que os 12 anos do romance. Ela também é chamada de “Lolita” pelos demais personagens, não só Humbert, e dispõe de uma malícia da qual devemos desconfiar plenamente no livro, afinal só a acessamos via Humbert.

Sue Lyon, aos 14 anos no início das gravações, faz um trabalho extraordinário como enfant terrible, para desespero da mãe, Charlotte (Shelley Winters). E para desespero de Sue Lyon, que nunca conseguiu se desvencilhar “do filme que causou minha destruição como pessoa”.

Dessa combinação emerge a ideia de “lolita” na cultura popular, isto é, da jovem adolescente sedutora – uma figura injusta em relação ao romance.

Por fim, Kubrick sabiamente inverte a ordem (ou o foco) dos acontecimentos – também não detalharemos –, dando muito mais destaque ao personagem de Peter Sellers. O diretor omite qualquer relação explícita entre Humbert e Dolores, promovendo apenas sinais indiretos, embora suficientemente claros.

Ao assistir a Lolita, não lembrava que o filme havia sido gravado em preto e branco. Essa não era uma condição em 1962, mas uma preferência de boa parte dos diretores porque a tecnologia colorida ainda não era tão sólida. Com isso em mente, chama atenção (para surpresa de ninguém) como Kubrick aproveita o máximo de cada quadro, com tomadas longas e diversas camadas visuais em perspectiva. Por exemplo, a cena do baile na escola ou as cenas nos quartos de hotel, com janelas ao fundo.

A trilha sonora de Nelson Riddle (que alguns anos depois faria os arranjos de The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim, segundo disco de Tom, que por sua vez recusaria compor a trilha de A Pantera cor-de-rosa [1963], que por sua vez consagraria mundialmente Peter Sellers como o inspetor Jacques Clouseau, um ano depois de brilhar em Lolita… [que por sua vez, 10 anos depois, declararia seu amor à música de Jobim no Sunday Times]) e, pera lá, só um momento, nos perdemos tentando conectar os pontos do planeta, afinal esta seção se chama hipertexto.

A trilha sonora de Nelson Riddle, marcada pela música-tema da protagonista, é por si só um sopro de ar fresco que converge com o tom da obra: Lolita é um filme mais leve, muito menos desafiador que o livro. Esse traço não é um intrinsecamente um defeito, embora exponha a dificuldade de lidar com um material tão complexo. Diante do desafio – e segurando as expectativas –, o resultado surpreende.

All in all, o romance é uma obra-prima, a quinta-essência de sua mídia. O longa-metragem é um bom filme nas mãos de um gênio ainda em desenvolvimento (pois não é nem o quinto em sua essencial filmografia). O encontro Nabokubricko não corresponde ao suprassumo de ambos, mas, não tendo anulado um ao outro, é suficiente para se sustentar. Ler Lolita é uma experiência extraordinária; assistir, no mínimo, vale a pena.

Baú: Ann Miura-Ko; Beethoven

Extraído da edição 112 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Em qual obra de arte você não consegue parar de pensar?

A Nona Sinfonia de Beethoven. Por que é que eu a adoro? Primeiro, precisamos compreender como eram Beethoven e a fase da vida em que ele se encontrava quando a compôs.

Por todos os relatos, Beethoven era um misantropo paranoico que afastava mesmo aqueles que o amavam e a quem ele amava. Era arrogante e não parecia importar-se muito com as emoções dos outros. Além disso, quando a Nona Sinfonia estreou, ele estava completamente surdo.

A Nona Sinfonia é conhecida por seu famoso tema em seu último movimento, chamado ‘Ode à Alegria’. Como é que um homem tão miserável tem uma compreensão real da natureza da alegria? O que acho fascinante é que a sinfonia completa demonstra a viagem necessária para se alcançar a alegria.

O primeiro movimento dá pistas sobre a raiva e a tragédia. No final, a sinfonia transforma-se numa verdadeira celebração da amizade e da fraternidade. Beethoven usa unicamente vozes humanas nesse último movimento da sinfonia. Há algo de tão poético na ideia de que, para alcançar a alegria, para alcançar tal amor transformacional, é preciso passar por provações de miséria e raiva. Diz algo profundo sobre Beethoven. Apesar da dor de perder a sua audição, ele teve a alegria de compreender o dom que tinha. É uma das composições mais incríveis que já encontrei porque nos diz tanto sobre quem era Beethoven e sobre o potencial de resiliência humana.

Ann Miura-Ko (Modern Meditations, The Generalist, 2022).


Oh! vós que pensais ou me declarais hostil, moroso e misantropo, quão injusto sois, e quão pouco sabeis a causa secreta do que assim vos parece! O meu coração e a minha mente sempre foram desde a infância propensos aos mais ternos sentimentos de afeto, e eu estava sempre disposto a realizar algo grandioso. Mas não deve esquecer que há seis anos fui atacado por uma doença incurável, agravada por médicos incautos, iludido de ano para ano, também pela esperança de alívio, e forçado à convicção de uma aflição duradoura (cuja cura pode durar anos, e talvez afinal de contas revelar-se impraticável).

Nascido com um temperamento apaixonado e excitável, profundamente suscetível aos prazeres da sociedade, fui ainda obrigado desde cedo a isolar-me, e a passar a minha existência em solidão. Se em algum momento resolvesse superar tudo isto, oh! Quão cruelmente me senti novamente repelido pela experiência, mais triste do que nunca, da minha audição defeituosa! – e, no entanto, achei impossível dizer aos outros: “Fala mais alto; grita! Pois sou surdo!” Ai de mim! como poderia eu proclamar a deficiência de um sentido que deveria ter sido mais perfeito comigo do que com outros homens – um sentido que outrora possuía na mais alta perfeição, até certo ponto, de que poucos da minha profissão alguma vez desfrutaram! Infelizmente, não posso fazer isto! Perdoai-me, portanto, quando me virdes afastar-me de vós com quem tão de bom grado me misturaria. O meu infortúnio é duplamente grave por me fazer ser mal compreendido. Já não posso desfrutar de recreação nas relações sociais, de conversas refinadas, ou de derramamento mútuo de pensamento. Completamente isolado, só entro na sociedade quando sou obrigado a fazê-lo. Devo viver como um exilado. Em companhia, sou assaltado pelas mais dolorosas apreensões, pelo pavor de ser exposto ao risco de ser observado… Que humilhação quando alguém ao meu lado ouviu uma flauta à distância, enquanto eu não ouvi nada, ou quando outros ouviram um pastor a cantar, e eu ainda não ouvi nada! Tais coisas levaram-me à beira do desespero, e quase me levaram a pôr um fim à minha vida. Arte! Só a arte dissuadiu-me. Ah! como poderia eu desistir do mundo antes de trazer à tona tudo o que sentia ser a minha vocação de produzir?

Ludwig van Beethoven, Testamento de Heilingenstadt (carta não enviada ao irmão, 1802 – portanto, antes da Nona Sinfonia –, via The Marginalian).

David Bowie: caos e transcendência

Extraído da edição 111 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

No set de The Man Who Fell to Earth (1976) — David James/Taschen.

É impossível não pensar em David Bowie: sensações após Moonage Daydream, um não documentário totalmente Bowiecêntrico.

Era noite de sexta-feira (16/09) quando cheguei ao Imax para assistir a Moonage Daydream (2022), documentário de Brett Morgen dedicado a David Bowie. Com descrição pretensiosa (“não é um documentário, mas uma odisseia, uma jornada etc.”), mentes cínicas poderiam torcer o nariz se diante deste mesmo nariz uma tela gigantesca não entregasse belas e raras cenas dos anos 1970 acompanhadas pelo remix de ‘Hallo Spaceboy‘ dos Pet Shop Boys em decibéis ensurdecedores.

A brincadeira era coisa séria.

Ao longo das pouco mais de duas horas seguintes, ouvimos, assistimos e acompanhamos Bowie – e tão somente ele. Sem talking heads (o recurso, não a banda… mas também sem a banda), sem informações, sem dados, sem capas, sem vendas, sem comitivas.

Não aprendemos absolutamente nada sobre qualquer disco, músico, gravação. Não escutamos qualquer anedota sobre um baixista de 1969, tampouco vemos algum vizinho octogenário descrever o pequeno David Jones. No máximo, descobrimos algo sobre o meio-irmão, Terry, e sobre a segunda esposa, Iman – sempre e tão somente a partir do próprio Bowie.

Ninguém fala, a não ser David Bowie (e alguns fãs, na década de 1970, à beira de um AVC por êxtase). Não se trata de um documentário informativo, malemal de um documentário. A execução conquistou o direito à pretensão: que odisseia fantástica; basta sentar-se e absorver.

Me obriguei a assistir outra vez, já na quarta-feira (21), lamentavelmente o penúltimo dia de exibição no Imax de Curitiba. Poderia reassistir outras tantas vezes com a mesma leveza. Dias depois, não consigo parar de ouvir a trilha sonora, relembrando cena por cena – outros amigos vivem a mesma situação.

Se a dimensão visual do filme oferecesse apenas uma tela preta, já valeria o ingresso. Algumas músicas de Bowie ganharam uma mixagem especial para o longa – outras simplesmente estão limpas e altas o suficiente –, e escutá-las no Imax foi uma experiência fantástica. É impressionante, no sentido mais puro e literal da palavra, como o áudio envolve e permite um contato renovado com o material.

  • Nunca havia realmente gostado de ‘The Jean Genie‘, ‘Aladdin Sane‘ e ‘Cracked Actor‘, por exemplo, na intensidade trazida por Moonage Daydream. Possibilitar essa revisão (e renovação) da experiência é encantador por si só.

Ademais, o trabalho de mixagem é primoroso ao trazer fluidez. Músicas diferentes, sons e falas se misturam em um só rio de imersão. A quem não assistiu no cinema, sugerimos com ênfase a experiência num sistema de som decente – nada de ver no notebook.

Por sua vez, as imagens intercalam entrevistas antigas, shows, clipes, filmes e bastidores de todos estes, além de nos mostrarem diversas referências abraçadas por Bowie ao longo da vida. Brett Morgen separou oito semanas para organizar o material que tinha em mãos; naturalmente, o processo levou dois anos – e um infarto. A família do músico inglês colaborou integralmente com o projeto.

Para um nerdalhaço em Bowieismo – que já tenha chegado ao nível de gravações descartadas e documentários perdidos –, talvez não haja tantos momentos inéditos, muito menos informações novas. O que absolutamente não é o ponto, tampouco a tentativa.

Primeiro, pagamos pelo recorte, isto é, a arte suprema é a colagem, não o papel colado. Segundo, pouco interessa quem trocou as cordas do baixo quebrado em 1981 ou se o artista almoçou bife com fritas antes de gravar um single na Tunísia. Informações estão disponíveis e catalogadas em décadas de material produzido sobre David Bowie: já há diversos livros e documentários cobrindo fatos, aspectos técnicos, curiosidades e a mera punhetagem.

O que Moonage Daydream oferece é uma leitura da cosmovisão de Bowie – e sua maturação – a partir da melhor experiência sensorial possível. Acompanhamos o artista, já calibrado pelo Budismo, trafegando pela Ásia (em especial as cenas noturnas, estonteantes); ouvimos esse indivíduo ao mesmo tempo tão exposto e impenetrável discorrer sem pressa sobre a vida. Testemunhamos suas referências e nos deliciamos com elas.

Então, choramos ou seguramos lágrimas (na chuva!) com o fim – de Bowie, do filme, da nossa própria existência. Ambicioso, experimental e conceitual sem abandonar o palatável, esse não documentário inclassificável é a cara de David Robert Jones.

Baú: Joaquim Ferreira dos Santos

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Uma das mais deliciosas conversas furadas de 1958 foi o boato de que a carne bovina consumida entre o Rio e Minas Gerais estava contaminada – não por bactérias assassinas como a da vaca louca, muito menos por algum vírus pré-aidético, pois definitivamente os tempos eram mais delicados. A carne dos açougues da época estaria contaminada por enormes porções de uma vacina de hormônios femininos. No panic, gritavam os mais liberais, mas qual!…

Generalizou-se entre os machos cariocas o medo horripilante, não de morrer como os que deglutiram hambúrgueres na Inglaterra nos anos 90, mas de que o até então pacato e viril cidadão, após ingerir um acém, um filé, subitamente adquirisse, ainda na mesa de refeição, alguma característica graciosa da identidade fêmea. Inspirado pelo fait-divers, o trio Paquito, Romeu Gentil e José Gomes compôs, com lançamento no final de 58 para a farra de 59, a marchinha Boi da cara preta, cantada por Jackson do Pandeiro e Almira:

“Coitado do Valdemar
Está dando o que falar
Comeu carne de boi falou fino
E deu pra se rebolar
Mas que azar.”

Já era sofisticado entre os bem-pensantes dizer que a música de carnaval estava em decadência. (…)

Joaquim Ferreira dos Santos, Feliz 1958 (Ed. Record, 1997).

Arte sem artista, imaginação praticada

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<beta.dreamstudio.ai>

Essa é uma pintura de Edward Hopper no Rio de Janeiro, embora Hopper (provavelmente) nunca o tenha visitado, muito menos retratado. Para criá-la, precisei digitar uma frase e clicar em um botão.

Empolgado, fiz Hopper ir a Tóquio e recriar seu ‘Nighthawks’ lá. Por fim, ele precisou reproduzir a obra em uma estação espacial.

 

<beta.dreamstudio.ai>

Aí a coisa começou a ficar séria. Subitamente, me senti movido por aquela inquietação primal diante da infinidade de escolhas. Havia um universo de possibilidades à minha frente, à minha disposição. Bastava eu brincar.

E se Canaletto pintasse Hong Kong? E se também pintasse o Rio de Janeiro?

<beta.dreamstudio.ai>

E se Francisco de Goya retratasse uma casa de ópio?

<beta.dreamstudio.ai>

A partir daí, misturei diversos temas que já passaram por este enclave (“E, aliás, que seria de mim, que seria de nós, se não fossem três ou quatro ideias fixas?!”, Nelson Rodrigues).

Obriguei Umberto Boccioni a retratar uma partida de futebol; e Pieter Jansz Saenredam, o Maracanã. Fiz os astecas derrotarem os conquistadores espanhóis com um auxílio cyberpunk; depois, fiz Picasso estar lá para imortalizar o momento. Então, vi a gloriosa Tenochtitlán ser invadida pelas criaturas alienígenas de Guerra dos Mundos.

Eu poderia passar horas nisso sem piscar. Caravaggio recriando Blade Runner; Syd Mead desenhando um Honda Civic 2000; Arnold Böcklin retratando o ritual de Eyes Wide Shut; a Xangai futurista de Hieronymus Bosch; Pieter Bruegel pintando a colonização de Marte.

Bruegel e a colonização de Marte <beta.dreamstudio.ai>

A partir do DreamStudio, como outras ferramentas já fazem (DALL-E 2, a mais famosa delas), eu estava concretizando sonhos, devaneios, fantasias e demais ocupações lúdicas da mente – sem dispor de nenhuma técnica para tal. A inteligência artificial, nesse estado tão desenvolvido quanto acessível (de graça), já é capaz de produzir arte sem o artista. Que troca fabulosa!

Claro, podemos estender uma discussão semântica para o conceito de “artista”: serão os programadores? Seremos nós, meros usuários? Porém, não vamos estender essa discussão (não hoje). Afinal, diante de ferramentas como o DreamStudio, a própria função [artista] se torna dessacralizada – sem abandonar a beleza da criação [arte] em si.

E aí, quem sabe, isso nos trará algum tipo de crise existencial (não será a primeira; não será a única). Quem sabe banalizaremos qualquer elemento belo gerado sem nenhum esforço. Quem sabe isso não será problema, diante da breguice em escala industrial. Vale lembrar que estamos em um planeta cheio de bonecos funko pop – e que eles custam caro.

Enquanto isso não acontece, vale deliciar-se com a novidade de terceirizar a execução da própria imaginação. Em algum momento, é inevitável que a mesma brincadeira não se aplique à música, se é que isso já não existe.

Isto é, em uma mera página do navegador – carregando uma infraestrutura inimaginável há 20 anos –, que eu possa solicitar e gerar um álbum colaborativo entre Tom Jobim e David Bowie com um clique, pedir a música X com o arranjo de Y ou consiga produzir faixas drum & bass do Geraldo Vandré.

O texto é uma mídia mais acessível: o gerador de pós-modernismo, por exemplo, data de 1996 (!). Da mesma forma – mas com um funcionamento mais complexo –, hoje alguns chatbots até conseguem sustentar uma conversa (às vezes, às vezes).

Quem sabe um dia, com ainda mais processamento, dados etc., eu não consiga gerar um longa-metragem (“O Homem que Copiava by Stanley Kubrick”), e até lá a noção de artista, autoria e atribuição já tenha se diluído de tal forma a nos aperfeiçoarmos nos verdadeiros desafios imutáveis da sociedade, como inserir anúncios na Lua e impedir os sem-teto de dormir confortavelmente.

Já vivemos num mundo onde a Magalu quer ser sua melhor amiga e um rapper virtual assina um contrato, depois é demitido por negligência racial (FNMeka: seu TikTok, cujo apelo me foge, já tem 10 milhões de seguidores). A inteligência artificial também já pode corrigir sotaques – atenção às aspas, mesmo sem aspas – para call centers e identificar você, seus amigos, sua família em fotografias pessoais.

Por ora, a Enclave segue apaixonada por qualquer ferramenta que lhe proporcione inserir o ‘Caminhante sobre o mar de névoa’ em Júpiter.

<beta.dreamstudio.ai>

Baú: Elias Thomé Saliba

Extraído da edição 110 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Bem mais recentemente, nas áreas conexas da neurociência cognitiva e alavancadas por sofisticados sistemas de informática, inúmeras pesquisas vêm mostrando que o humor é um mecanismo de enfrentamento psicológico, um estratagema que o cérebro humano usa para a resolução de conflitos: nem sempre este conflito aparece na forma de uma piada, pelo contrário, ele é inerente à vida humana na sua totalidade. Neste sentido, como veremos mais adiante ao analisarmos as teorias do humor, as inúmeras pesquisas da neurociência parecem corroborar a noção de incongruência – uma das teorias humorísticas mais utilizadas por todos os analistas, apesar da sua notável imprecisão. Elas sustentam que o humor revela a enorme complexidade do cérebro humano: se o cérebro fosse um governo, não seria uma ditadura, uma monarquia ou mesmo uma democracia – seria mais semelhante a uma anarquia: partes conectadas a outras partes que, por sua vez, são conectadas a outras e que, em nenhum lugar no sistema, existe uma autoridade central que decide o que dizer ou fazer. Essa situação gera alguns benefícios, como nos permitir resolver problemas e, até mesmo, raciocinar sobre várias coisas. Mas, em alguns momentos, isto provoca conflitos como, por exemplo, quando tentamos lidar com duas ou mais ideias inconsistentes ao mesmo tempo. Quando isso ocorre, o cérebro conhece apenas uma resposta: o riso. Noutras palavras, o cérebro lida bem com ideias que são conflitantes e usa estas situações para alcançar pensamentos e soluções mais complexas. Esse processo pode ser prazeroso, gerando o humor.
Elias Thomé Saliba, História cultural do humor: balanço provisório e perspectivas de pesquisas (Revista de História, USP, 2017)

WALL-E: poesia visual

Extraído da edição 109 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Há 14 anos, em junho de 2008, a animação WALL-E estreava nos cinemas. Fui conferir a contragosto, afinal não me interessava muito por animações e, principalmente, vivia o apogeu da insolência adolescente. Aos 16 anos, somos todos intragáveis.

Havia ganhado ingresso porque participava de um projeto (na antiga Gazetinha, suplemento infantojuvenil da Gazeta do Povo) no qual estávamos aprendendo – e escrevendo – sobre cinema. Assim, compareci à sessão do filme dirigido por Andrew Stanton, com roteiro de Stanton e Jim Reardon.

Rabugento e com as expectativas baixas, eu não poderia ter me surpreendido mais. WALL-E é uma produção encantadora, capaz de desmontar qualquer guarda alta. Porém, eu nunca havia revisitado essa obra da Pixar enquanto adulto, e só o fiz, sem qualquer motivo específico, na última semana.

Pois bem, com grande satisfação (e certo alívio), renovei minha apreciação – novamente cético, novamente cínico, pois apenas um lunático é capaz de confiar nas impressões de sua versão de 16 anos.

A sequência inicial de WALL-E é famosa, não por acaso. Não há qualquer diálogo por 22 minutos. Nesse tempo, conhecemos Wall-E, um robô senciente compactador de lixo. Solitário em uma Terra abandonada – e repleta de seu material de trabalho –, ele mantém hábitos, objetos e gostos humanos no ano 2805. E uma barata.

Wall-E até dispõe de contemplação estética, assistindo a filmes (e reproduzindo seus movimentos) por meio de fitas coletadas em seu ofício. O enredo se desenvolve a partir da chegada de EVA, outro robô – muito mais moderno e funcional – enviado pela nave habitada pelos seres humanos para procurar algum resquício de vida no planeta. Androides sonham com paixões elétricas?

Diante do silêncio, portanto, a narrativa avança pelos movimentos dos personagens e pelo primor de caracterização. De cara, WALL-E se apresenta como uma mistura de 2001: Uma Odisseia no Espaço com Charles Chaplin e/ou Buster Keaton (inspirações explícitas dos produtores).

Os movimentos, roteirizados e executados com maestria, preterem o uso de palavras, o que confere certa universalidade – e atemporalidade – ao longa-metragem. Por sua vez, a caracterização não seria um problema para a Pixar, estúdio devidamente capacitado para criar fofuras das mais diversas formas.

Assim, logo nos apegamos a Wall-E e permanecemos instigados por aquele contexto pós-apocalíptico. Quando os dois protagonistas encontram os seres humanos de 2805 (spoilers?) na nave Axiom, estes são… talvez irreconhecíveis não seja a melhor palavra. Mas engordaram a ponto de perder os movimentos – locomovem-se em cadeiras flutuantes – e não conseguem resolver problema algum por conta própria. Estão sempre conectados.

É claro que o filme carrega uma mensagem (e que a Enclave odeia mensagens), mas vamos lá. Primeiro, a obra se sustenta por si só, uma vez que o drama do apaixonado Wall-E é suficientemente estimulante.

Segundo, dentro da mensagem explicitamente ecológica – que, né… digamos que tenha um ponto –, há outra sutileza singela. Despreocupado em moralizar e ensinar de forma tão direta, WALL-E não retrata os seres humanos como perversos, mesquinhos, monstros indomáveis. O longa sequer se preocupa em detalhar a trajetória da Terra até o estado apresentado.

Isso porque a animação representa o ser humano não como porco, mas apenas… distraído. À medida que se afasta da dependência da tecnologia, que enfrenta os próprios problemas com diligência e procura atentar-se aos dilemas que o afetam, o indivíduo desperta.

Um filme lindíssimo – elegante, comovente e bem-humorado –, que certamente exigiu um enorme conhecimento de humanidade para nos entregar um amável robô compactador de lixo apaixonado por um iPad voador.

Baú: Lama Padma Samten

Extraído da edição 109 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

O exame cuidadoso do sofrimento revela que ele é, na verdade, um desconforto mental, cuja base, na maior parte das vezes, não tem sequer origem física ou mesmo concreta, mas é constituída das voláteis substâncias da imaginação e da delusão. É esse sofrimento, tomado em sua acepção de desconforto mental mais geral e abrangente, que é enfocado pelo Buda Sakiamuni como um dos pontos centrais de seu ensinamento.

Logo após sua iluminação, com olhos cheios de compaixão, o Buda fitou os variados seres em cada reino de existência e, compreendendo a dor do mundo, enunciou a primeira Nobre Verdade, a da existência do sofrimento e impossibilidade da harmonia – mantida a perspectiva humana de harmonia como satisfação completa dos desejos, apegos e necessidades.

O sofrimento é a sombra do ser. Havendo um ser, há sofrimento. Havendo um ser, há o mundo, e o sofrimento é inevitável. Pode-se ver três faces no sofrimento: impossibilidade de harmonia, impermanência e busca de salvação.

A impossibilidade de harmonia é exemplificada por uma história.

Na vida anterior à de sua iluminação, o Buda estava certa vez imerso em profunda meditação na encosta de uma montanha, quando ouviu um rufar de asas. Tratava-se de uma pequena pomba em voo vacilante. Ela pousou junto ao Buda e suplicou: “Abençoado Senhor! Estou sendo perseguida por um enorme abutre e, por mais que me esforce, não consigo escapar. Minhas forças já vacilam, e em breve por certo sucumbirei. Proteja-me, suplico-lhe!”. Nem bem havia a pomba concluído seu apelo desesperado e se ouviu um rufar de asas mais pesado. Pousando próximo, um gigantesco abutre dirigiu-se ao Buda: “Abençoado Senhor! Dê-me essa pomba. Não é justo que a proteja. Na minha condição de abutre, estou perseguindo-a desde o início do dia. Ela é o justo retorno por meu esforço. Já estou exausto e, se alguma raposa encontra-me assim tão fraco, por certo estarei perdido, e também meus filhos, que, abandonados, perecerão”. Conta a lenda que o Buda, com o coração de bodisatva cheio de compaixão, alimentou o abutre com sua própria carne, dando sua vida.

Conta-se também que, na vida seguinte, o príncipe Sidarta, quando menino, viu um verme ser estraçalhado por dois passarinhos que o disputavam e reconheceu a justeza da atitude dos pássaros em busca do alimento, bem como a inevitabilidade do terror e morte do verme. Naquele instante Sidarta compreendeu que a harmonia não pertence a esse mundo. Se passarinhos comportam-se dessa forma, o que dizer dos demais seres?

Como seria possível harmonizar os diferentes seres e interesses? Não estavam corretos a pomba, o abutre, o verme e os dois pássaros? Se todos estão corretos, como poderia haver harmonia?

Lama Padma Samten, A Joia dos Desejos, 2001 (ed. Peirópolis).

Lágrimas na chuva

Extraído da edição 108 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Vangelis Papathanassiou morreu aos 79 anos, vítima de insuficiência cardíaca (movida, aparentemente, por Covid-19; “aparentemente” porque, até o momento, nada foi esclarecido por completo).

Sua popularidade mais estrondosa pode ter vindo com Carruagens de Fogo (1981), aquela melodia incrustada de tal forma na cultura popular que não se desassocia mais das próprias paródias, mas o catálogo de Vangelis oferece diversas outras camadas.

A começar pelo que fez antes mesmos de suas incursões pelas grandes trilhas sonoras. Já escrevemos sobre 666 (1973), o sensacional disco da Aphrodite’s Child, banda grega que reuniu Vangelis e o popularíssimo Demis Roussos. Ali, o grupo tocou o terror com um rock esotérico viril incapaz de envelhecer.

Porém, Vangelis jamais ficou conhecido por qualquer “rock viril”. Ao contrário: sua imagem ficou bem mais ligada ao new age, à calmaria constante. Essa versatilidade – a caixa de ferramentas inesgotável, do rock progressivo ao acompanhamento de meditação – o preparou para produções tão reconhecidamente cósmicas a partir de seus sintetizadores.

E cosmicidade é o que não falta na trilha sonora de Blade Runner (1982), um álbum extraordinário por si só – e componente indissociável do filme, outra obra-prima. Sem Vangelis, Blade Runner não é Blade Runner. Nessa obra, o grego “f*d* o tecido do tempo” engendrando uma nova estética de futuro.

  • Discorrer sobre Blade Runner é chover (ou chorar) no molhado, portanto apenas acrescentamos que a trilha sonora foi complementada em 2007, com dois discos adicionais (o lançamento original tem apenas 57 minutos, expressivamente menos que o composto para o filme).
  • Volta e meia essas faixas bônus aparecem no YouTube, mas nem sempre de maneira organizada. Por algum motivo, a edição é rara na internet. Por ora – enquanto não derrubam –, encontramos algo próximo a isso (2009, lançamento privado) aqui.
  • Há diversos bootlegs com lançamentos não oficiais. O mais interessante para iluminar cantos esquecidos do filme é a Esper Edition.

De todo modo, Vangelis não só usa, mas também gasta, estende, expande seus sintetizadores. O resultado é um pináculo, um dos melhores discos de música eletrônica de todos os tempos. A verve da cidade futurista hiperpopulosa está ali; o quarto escuro e solitário também – a belíssima ‘Memories of Green‘ já havia sido lançada em See You Later (1980).

See You Later, por sinal, talvez seja a melhor maneira de encapsular Vangelis em 40 minutos. O disco – um tanto esquecido – é experimental, porém melódico; eletrônico, porém orgânico. ‘Multi-track suggestion‘ demonstra essa abordagem emergente entre o pós-punk e o disco. Colaboram Jon Anderson (do Yes), Peter Marsh e Cherry Vanilla.

Por sua vez, The Friends of Mr. Cairo (1981), agora também assinado com Jon (“Jon & Vangelis”), é divertido pela megalomania oitentista. Já havíamos comentado, no texto sobre 666, como a música-título “contém uma riqueza intertextual tão grande que será tema de alguma Enclave futura”.

Pois bem, a longa faixa (12 minutos) navega pelo livro/filme Maltese Falcon/Relíquia Macabra, como um pastiche do cinema americano dos anos 1940, incluindo imitações de Humphrey Bogart e Jimmy Stewart.

  • Aqui, o clipe. Aqui, a versão completa. Mr. Cairo é, naturalmente, personagem do livro de Dashiell Hammett, interpretado no filme pelo marcante Peter Lorre.
  • O álbum ainda contém ‘State of independence‘, que viria a estourar no ano seguinte, com Donna Summer (produzida por Quincy Jones).

Na outra ponta, temos a trilha sonora L’Apocalypse des animaux (1973), de quando ele ainda estava na Aphrodite’s Child. Gravado em 1970, esse curto disco – que acompanhava uma série documental francesa e não contempla tudo que Vangelis compôs para a produção – tem como fio condutor a leveza sublime. Basta ouvir ‘Le singe bleu‘ para flutuar nessa sutileza.

  • Mencionamos cosmicidade: não à toa, Carl Sagan utilizaria ‘Création du monde‘ justamente na sua série Cosmos (1980), anos depois.

Se existe um além, Vangelis não fará uma estreia, mas um reconhecimento. Se existe um ser maior, este ser lhe perguntará: “como cara***s você já expressava tudo isso aqui com um teclado?”. Que nosso grego favorito descanse em paz.

Nossos cinco favoritos: