Sobre comprar, acumular e abandonar livros

Extraído da edição 120 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.


(via Stable Diffusion)

Mantemos relações bastantes distintas com livros.

Alguns conservam grandes acervos de itens lidos e/ou não lidos. Outros compram apenas o que leem, então repassam. Alguns preferem a praticidade e a versatilidade da leitura digital. Outros – os mais cafonas em um mundo já dominado pela breguice – compram livros apenas para decoração. Essas estratégias não são autoexcludentes, muito menos definitivas para toda uma vida.

Da mesma forma, a leitura em si é um ato cuja ordem proporciona múltiplas decisões. Isto é, alguns mantêm listas fechadas para os próximos 76 anos; outros são mais espontâneos; alguns caçam por métodos próprios, outros confiam em recomendações de confiança.

Por fim, outra grande variável no que tange à leitura é o abandono dos livros. Podemos demonstrar graus muito variados de resistência, a depender da nossa expectativa, do desprazer e do orgulho envolvido1.

Com isso em mente, vamos partir de três perguntas:

  • Qual é a sua lógica para comprar livros? (Aliás, físicos ou digitais?)
  • Você tem uma ordem de leitura predefinida? (O que te faz furar a fila?)
  • Quão persistente você é diante de um livro que não te agrada? (O que te leva a abandonar um livro?)

Nesta Enclave, tentaremos dissertar sobre alguns métodos e lógicas pessoais, apenas pela diversão do relato. Para tanto, contamos com o auxílio de dois grandes colaboradores do RelevO: Marceli M. (Burocrata Carimbos) e Bolívar Escobar (Cartas do Bolívar). Escolhemos esses dois indivíduos porque, além de leitores experientes e indivíduos atentos ao mercado editorial, porque… porque… bom, porque a essa altura eles são nossos únicos amigos…

Sobre (anti)bibliotecas

Aqui, vamos partir de um trecho de Nassim Taleb, em referência a Umberto Eco, n’A Lógica do Cisne Negro (2007):

O escritor Umberto Eco pertence àquela classe restrita de acadêmicos que são enciclopédicos, perceptivos e nada entediantes. Ele é dono de uma vasta biblioteca pessoal (que contém cerca de 30 mil livros) e divide os visitantes em duas categorias: os que reagem com: “Uau! Signore professore dottore Eco, que biblioteca o senhor tem! Quantos desses livros o senhor já leu?”, e os outros — uma minoria muito pequena — que entendem que uma biblioteca particular não é um apêndice para elevar o próprio ego, e sim uma ferramenta de pesquisa. Livros lidos são muito menos valiosos que os não lidos. A biblioteca deve conter tanto das coisas que você não sabe quanto seus recursos financeiros, taxas hipotecárias e o atualmente restrito mercado de imóveis lhe permitam colocar nela. Você acumulará mais conhecimento e mais livros à medida que for envelhecendo, e o número crescente de livros não lidos nas prateleiras olhará para você ameaçadoramente. Na verdade, quanto mais você souber, maiores serão as pilhas de livros não lidos. Vamos chamar essa coleção de livros não lidos de antibiblioteca.

Usamos o trecho em questão como ponto de partida porque obedecemos (isto é, este editor, especificamente, obedece) a uma lógica semelhante. Afinal, não consigo atender à ideia de comprar apenas o que tenho certeza de que lerei – ou ao menos no curto e médio prazos.

Inclusive, isso tende a trazer problemas, uma vez que podemos entender o ato de comprar livros como estressante a partir de dois (ou três) vieses:

  1. Financeiro: bom, comprar – livros ou qualquer outra coisa – custa dinheiro. Se seu dinheiro é finito, como acreditamos que seja, é preciso fazer escolhas.
  2. Espacial: livros demandam capacidade de armazenamento e, a partir do momento que você não a tem, qualquer aquisição se torna estressante. Se seu espaço também é finito, como também acreditamos que seja, é preciso fazer mais escolhas.
  3. Metafísico (bônus!): se você compra um livro e não o lê, sua consciência pode arder ao cruzar o olhar com uma lombada nunca aberta, um plástico nunca removido, e assim por diante. Pode haver um rebote dos outros dois problemas: se não li, por que diabos gastei dinheiro e espaço?

Minha lógica de compra e acúmulo de livros é mais ou menos a seguinte: ajo ao mesmo tempo como um olheiro e diretor de clube de futebol, se livros fossem jogadores, se o tamanho do elenco não fosse um problema e, por fim, se jogadores não envelhecessem nem fossem únicos (isto é, se houvesse toda uma tiragem de Haalands no mundo e tanto o clube Eu como o clube Você pudéssemos ter um ou vários Haalands e Mbappés no elenco).

Essa explicação certamente não ajuda muito, a não ser uma óptica bastante específica e talvez deturpada de funcionamento de mundo. Mas o ponto é – não, pera lá, os pontos são:

  1. Expandir constantemente a lista de “livros de interesse”, isto é, aqueles que pretendo [acredito que vou] ler algum dia.
  2. Monitorar preços (listas em Amazon, Estante Virtual e sebos específicos, basicamente).
  3. Comprar diante de preços abaixo da média ou oportunidades raras (edições antigas que, se esgotarem, já era, ou ao menos vão encarecer a ponto de inviabilizar).
  4. Furar a fila diante de grandes descobertas ou urgências de interesse (“isso eu preciso ler agora”).

Em suma, se em algum momento sei (ou acredito com alguma convicção) que vou ler X, mas neste momento X se encontra em um ótimo preço (ou parece realmente próximo de esgotar, afinal a quantidade de Haalands, mesmo maior que no futebol, ainda é finita), compro sem dó. Nem que leve anos para eu abri-lo – já passei da fase de dor na consciência. Aqui não tem metafísica alguma.

  • Um exemplo recente: comprei Heat 2, de Michael Mann e Meg Gardiner, continuação do filme que tanto adoro. Quando vou ler? Sei lá, mas o preço em algum momento diminuiu e sei que eventualmente vou ler.
  • Sob a mesma lógica, não hesitei nem por um segundo quando encontrei, ano passado, NA LIXEIRA DA GARAGEM, a coleção COMPLETA (50 volumes!), capa dura, de Imortais da Literatura Universal da Abril Cultural. Precisei reorganizar a estante, mas não tenho dúvidas de que valeu a pena. Se até o momento li 10% deles, pouco importa. A assimetria é muito favorável – trata-se de clássicos, afinal, então tenho o efeito Lindy a meu favor –, principalmente levando em conta o custo zero.
No lixo! No lixo!!!

Vejamos as constatações de nossos amigos:

Qual é a sua lógica para comprar livros? (Aliás, físicos ou digitais?)

Marceli: Em geral, vou pela autoria (quero ler alguém e aí procuro a obra que seja mais representativa) e, em alguns casos, pela editora (por exemplo, confio na linha editorial da Todavia porque costumo gostar de tudo que leio deles, aí compro mesmo que desconheça o autor); mas também acontece de seguir indicações de amigos (normalmente, as situações em que furo a fila, a depender de quão efusiva seja a recomendação ou de quanto eu confie na pessoa). É comum também ler o livro baixado no Kindle e mesmo assim querer ter a cópia física e comprá-la depois (também posso comprar um livro principalmente porque ele é bonito, ou tem uma capa bonita).

Bolívar: Acho importante diferenciar as motivações para comprar e para ler. O que mais me motiva a ler um livro é quando pessoas de grupos diferentes de amigos me recomendam o mesmo título. É quase um sistema: se um livro marca três pontos, então é porque preciso ler. Já para comprar, acho que a principal motivação é conhecer o(a) autor(a) e querer fortalecer a iniciativa. Ocasiões especialíssimas são os livros desses dois universos se encontrando.

(via Stable Diffusion)

Listas, ordem, progressão linear

Assim, adentramos em outro tópico: como organizar a ordem de leitura? Do lado de cá, essa lógica é bem mais variável, uma vez que está sempre sujeita a descobertas acidentais. É como jazz, exceto por não envolver técnica ou talento. Em cima de um tema, vario conforme acidentes do dia a dia (ter lido, escutado ou assistido alguma coisa que despertou interesse em outro assunto), então viro a chave completamente, num processo helicoidal que eventualmente volta ao ponto de onde partiu.

Isso acontece organicamente. Um exemplo real: entre idas e vindas, Hong Kong é por si só um tema de interesse. Procurei narrativas que se passam lá, vasculhei e comprei – gradativamente, não ao mesmo tempo – tantos livros relacionados. Li alguns, abandonei outros, não abri os demais. Recentemente, me interessei de novo pelo tema e comecei Tai-Pan (1967), de James Clavell (por sinal, fantástico). Daqui a pouco, naturalmente, por cansaço ou pelo despertar/relembrar de algum outro tópico, o interesse retorna para “Guerra Fria”, “detetives dos anos 1940”, “ficção científica”, “Brasil colonial” etc., e assim a roda vai girando.

Nesse aspecto, nossa lógica e a de nossos amigos parece convergir:

Você tem uma ordem de leitura predefinida? (O que te faz furar a fila?)

Marceli: Tenho sempre uma pilha de livros que pretendo ler, mas não tenho muito sistema com eles – pode acontecer de ele ficar ali na estante por anos e pegá-lo aleatoriamente pra ler (ou, menos aleatoriamente e mais por uma vibe inexplicável, tipo sentir que chegou a hora de ler tal coisa). Mas se tem um lançamento legal ou se eu comprei algo, é comum furar a fila e mesmo pausar algo que eu esteja lendo pra passar o outro na frente. Acho que, nos últimos anos, engajar num livro e não ter vontade de olhar o celular é tão raro que, quando acontece, eu me emociono muito e quero aproveitar a onda. E também rola de eu começar a ler algum autor e empolgar e emendar dois ou três outros livros dele.

Bolívar: A vida acadêmica faz a gente se embrenhar em leituras muito mais por obrigação do que por liberdade de escolha. Tenho uma lista ancestral de livros no GoodReads que gostaria de ler algum dia, mas que nunca volto pra consultar. No geral, o que acontece é receber alguma recomendação e já, sem pensar muito, começar a leitura. Tenho alguns autores de interesse também cujos livros vou deixando no radar para começar quando sobrar tempo. Ou quando a vergonha na cara atingir níveis muito altos. Em resumo, é um sistema bastante volátil, aleatório e pouco previsível.

Largar ou não?

Abandonar um livro traz uma culpa moral, uma sensação de farsa. A presunção “o problema só pode ser eu” banhada na estranha sacralidade da palavra escrita ou da consagração do(a) autor(a). Além da dúvida: se abandonei um livro de 500 páginas na centésima delas, posso dizer que eu o li? Vaidade de vaidades!2

Pois livros devem ser abandonados sem dó. O famoso “cagar ou sair da moita”. Não vale se arrastar. Nunca. Isto é, a partir de uma tentativa honesta – e apenas o leitor, em sua prática, saberá discernir o que é uma tentativa honesta. Só no segundo semestre, abandonei A Identidade Bourne (Robert Ludlum); Kowloon Tong (Paul Theroux); Da Rússia, Com Amor (Ian Fleming); e O Alfaiate do Panamá (John le Carré). Somente o último trouxe algum peso na consciência, por gostar do autor e por não ter considerado o romance propriamente ruim, apenas desinteressante para mim, no momento, diante de outro problema seríssimo, e na verdade ponto nevrálgico do abandono de livros: nosso tempo é escasso.

A vida é muito curta para não gostar dos livros que se lê, uma vez que há um universo gigantesco (na prática, infinito) de opções que nos tragam prazer (nem que um prazer desconfortável, angustiante, mas que, enfim, valide a atividade da leitura). Simplesmente não vale a pena. (Inclusive, se eu não tivesse decidido largar sem dó alguns dos romances mencionados, não teria iniciado Tai-Pan a tempo de levá-lo para uma viagem de 18 dias, o que literalmente faria minha vida pior).

Tenho certeza de que li Stanley Kubrick defender o abandono veloz de livros que não cativaram o leitor. Acredito com alguma convicção que essa fala consta no Conversas com Kubrick (que não abandonei), de Michel Ciment, mas, ironicamente, não o tenho em mãos, porque este ficou na casa dos meus pais desde que saí de lá, há uns bons anos, a fim de poupar espaço.3

Curiosamente, nossa amiga Marceli Burocrata não concorda com essa lógica: “nunca desgosto a ponto de querer abandonar de vez; sempre dou chance até o final mesmo que seja para falar mal depois”. Marceli está errada. Não se deve dar chances até o final: é preciso falar mal do livro antes. Inclusive, em alguns casos, antes mesmo de abrir! Quem dera eu nunca tivesse lido [dois terços de] Da Rússia, Com Amor

Já Bolívar, que abandonou Graça Infinita, afirma que precisa “começar a abandonar mais livros para ver se algum padrão pode ser detectado”, portanto sua resposta não ajudou em nada. Brincadeira. Ambas as respostas foram mais complexas que o recorte sujo da mídia enclávica:

Quão persistente você é diante de um livro que não te agrada? (O que te leva a abandonar um livro?)

Marceli: Em geral, é quando outro livro fura a fila mesmo; mas procuro voltar e terminar, não gosto muito de deixar livro abandonado (e acho que tem a questão também de eu sempre pegar livros que me interessam pra ler, aí nunca desgosto a ponto de querer abandonar de vez, sempre dou chance até o final mesmo que seja para falar mal depois).

Bolívar: Não sinto como se eu tivesse um “gatilho” ou coisa do tipo que me faça desistir de livros. Quando acontece é por uma convergência de motivos. Por exemplo, comecei a ler Graça Infinita, o tijolão do D.F.W. em 2015 e está lá parado na página 200 até hoje. A sensação foi que eu estava começando uma leitura para a qual não estava preparado. A mesma coisa com O Pêndulo de Foucault, do Eco. Teve outros casos, mas não lembro agora. Preciso começar a abandonar mais livros para ver se algum padrão pode ser detectado.

Essas foram as nossas considerações sobre comprar, acumular e abandonar livros. Entre galhofas e modelos mentais possivelmente replicáveis, também queremos saber a sua opinião, principalmente se você for um metódica compulsivo, uma acumuladora caótica ou um absoluto desapegado.

Retornamos em dezembro!

(via Stable Diffusion)

 

 

Baú: Carlo M. Cipolla

Extraído da edição 120 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.


Não é surpresa que as pessoas vulneráveis […] não reconheçam o quanto pessoas estúpidas são perigosas. Essa falha é apenas uma expressão de sua vulnerabilidade. O fato realmente impressionante, entretanto, é que pessoas inteligentes e bandidos também costumam não reconhecer o poder de causar danos inerente à estupidez. É extremamente difícil explicar por que isso acontece, e é possível apenas observar que, quando confrontados com indivíduos estúpidos, pessoas inteligentes, assim como bandidos, costumam cometer o erro de se permitirem ter sentimentos de complacência e desdém, em vez de secretar quantidades adequadas de adrenalina e erguer defesas imediatamente.

Fica-se tentado a acreditar que um homem estúpido só vai causar mal a si mesmo, mas isso é confundir estupidez com vulnerabilidade. De vez em quando, alguém pode cair na tentação de se associar a um indivíduo estúpido para utilizá-lo em seus próprios esquemas. Tal manobra só pode ter efeitos desastrosos, porque a) ela se baseia em uma incompreensão absoluta da natureza essencial da estupidez e b) dá à pessoa estúpida um escopo aumentado para o exercício de seus dons. É possível ter esperanças de tirar proveito do estúpido, e, até certo ponto, é realmente possível fazer isso. Mas devido ao comportamento instável do estúpido, não se pode prever todas as suas ações e reações, e em pouco tempo a pessoa vai ser pulverizada pelos movimentos imprevisíveis do parceiro e estúpido.

Isso fica claramente resumido na Quarta Lei Fundamental, que afirma que:

“Pessoas não estúpidas sempre subestimam o poder de causar danos dos indivíduos estúpidos. Em particular, pessoas não estúpidas se esquecem constantemente de que em todo momento e lugar, e sob qualquer circunstância, lidar e/ou se associar com pessoas estúpidas resulta infalivelmente em um erro altamente custoso”.

Ao longo dos séculos e milênios, tanto na vida pública quanto na vida privada, inúmeros indivíduos deixaram de levar em conta a Quarta Lei Fundamental, e essa falha acarretou perdas incalculáveis para a humanidade.

Carlo M. Cipolla, As Leis Fundamentais da Estupidez Humana, 1976 (Ed. Planeta, 2020).