Deu green! Ganância, dopamina, Dostoiévski, operação Penalidade Máxima

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Prompt: “Cassino medieval mas futurístico onde um homem russo aposta a vida na roleta (representado por Botticelli)” — DALL-E.

“Por mais ridículo que seja eu ter esperado obter tantas coisas na roleta, me parece ainda mais ridícula a opinião rotineira, aceita por todos, de que é tolice e absurdo esperar alguma coisa do jogo. E por que o jogo é pior do que qualquer outro meio de ganhar dinheiro, por exemplo, digamos, o comércio? É verdade que, de cem que jogam, só um ganha. Mas o que é que eu tenho a ver com isso?”

Não faz muito tempo que algo mudou na nossa relação com os esportes.

Casas de apostas conquistaram terreno na internet, então dominaram os espaços publicitários, depois os estádios de futebol, depois os uniformes. Compraram licenças de campeonatos. Palavras (esses sintomas infalíveis) emergiram: bet, green, odds. Com os atalhos tecnológicos de que dispomos, tornou-se estupidamente fácil apostar. Surgiram apostadores profissionais, grupos, consultorias – tudo muito normalizado (afinal já vemos nas taças, nos estádios, nos uniformes…).

Agora, para surpresa de provavelmente ninguém, descobrimos que as apostas também se apossaram de alguns atletas. Não atletas de várzea, sem contrato ou qualquer tipo de rede de proteção. Atletas de elite, jogadores de primeira divisão. A operação Penalidade Máxima tem se encarregado de investigar – e ainda estamos no começo do fio.

Sobre a febre

Apostas não são nem de longe uma invenção contemporânea. Ao contrário: foram necessários milênios até que alguém se dispusesse a teorizar sobre esse ato tão intrínseco à diversão humana, capaz de preceder até a escrita. Estamos falando de uma das atividades mais antigas da nossa espécie.

Antes de morrer [em 1576], Gerolamo Cardamo queimou 170 manuscritos não publicados. As pessoas que vasculharam suas posses encontraram 111 textos sobreviventes. Um deles, escrito décadas antes e aparentemente revisado muitas vezes, era um tratado em 32 capítulos curtos. Intitulado O livro dos jogos de azar, foi o primeiro na história a tratar da teoria da aleatoriedade. As pessoas já apostavam e lidavam com outras incertezas havia milhares de anos.

(…)

Para qualquer pessoa interessada em apostar nos tempos de Cardano, todas as cidades eram Las Vegas. Em toda parte eram feitas apostas – jogos de cartas, dados, gamão e até mesmo xadrez. (…) Assim, fazendo sua entrada no mundo das apostas, Cardano passou a jogar os jogos governados pelo puro acaso. Em pouco tempo, já tinha economizado mais de mil coroas para pagar seus estudos – mais do que ganharia em uma década com o estipêndio desejado por seu pai. Em 1520, matriculou-se como estudante em Pavia. Pouco depois, começou a escrever sua teoria das apostas.¹

Fiódor Dostoiévski era viciado em roleta. E embora perder R$ 60 numa aposta sobre número de escanteios num Avaí x Londrina não faça de nenhum de nós um Dostoiévski, é interessante pensar que a mente capaz de produzir Os Irmãos Karamázov carregou vícios semelhantes aos de, bom, quem assiste a (e perde dinheiro com) um Avaí x Londrina. Somos todos humanos, portanto escorregamos.

O gênio russo era tão enroscado com as apostas que, famosamente, escreveu O Jogador (1867) em menos de um mês para sanar – entre vários outros problemas financeiros – dívidas de jogo.

Para obter o dinheiro de que precisava com urgência, Dostoiévski assinou um contrato draconiano em que se comprometia a entregar um romance, com um número determinado de páginas, até o dia de 10 de novembro de 1866. Caso contrário, os direitos de todos os seus livros posteriores passariam ao editor por nove anos. Para piorar, todo o dinheiro que recebeu ao assinar esse contrato acabou perdido, logo depois, justamente numa viagem alemã de Wiesbaden, famosa por seus cassinos.²

Em primeira pessoa, O Jogador acompanha Alexei Ivanovich, tutor apaixonado que logo se vê, previsivelmente, enroscado com o cassino. O romance ficou mais famoso por este paratexto do que por seu conteúdo, mas se sustenta com as próprias pernas (e, bom, sofre por existir entre Crime e Castigo [1866] e O Idiota [1869]).

De Dostoiévski ao primo que vive em função de cartões amarelos na segunda divisão finlandesa, por que apostar é tão divertido? Duas explicações nos satisfazem:

Pesquisas com macacos descobriram que não é realmente o prazer que estimula a liberação de dopamina, mas a incerteza da recompensa. Quanto mais incerta a recompensa, mais dopamina é liberada em antecipação. Supõe-se que isso explique o vício em jogos de azar, e agora é de conhecimento geral que os feeds de mídia social foram criados com base nesse conceito.

(…)

Um artigo de 2016 que examina as causas estruturais do problema do jogo observa que: “… a participação em jogos de azar também é uma resposta à experiência de ser marginalizado. Para esses grupos, o jogo representa uma das poucas ações que eles podem tomar para lidar com a falta de oportunidades e liberdades que experimentam

Na visão deste humilde editor, o segundo parágrafo não poderia encaixar mais com o brasileiro – que, não por acaso, lidera com folga o ranking mundial de acessos a sites de apostas. Via de regra, somos um povo de fodidos sem oportunidade [eu e você, muito provavelmente, somos exceções]. Como não se empolgar com a possibilidade de conseguir um atalho em meio a uma selva de atrasos?⁴

Complementando o viés desse argumento:

Vindo de uma cidade que tinha mais casas de apostas do que livros (para roubar uma frase do falecido Nick Tosches) e onde as oportunidades de progressão eram tão cinzentas e imutáveis como o horizonte, apostar representava uma forma de um trabalhador ganhar alguma coisa com a sua inteligência, instintos e finesse, em vez de apenas com a força dos seus braços e a durabilidade das suas costas.⁵

Se a loteria é “um imposto sobre as pessoas ruins em matemática”, como definia Ambrose Bierce (1911), as apostas parecem fornecer uma recompensa – dopaminérgica – para a esperteza. E quem é que não se considera mais esperto que a média?

Prompt: “Um Dostoiévski furioso apostando num cassino colorido (representado por Jans van Eyck)” — DALL-E.

Algumas odds

Em uma ponta, observamos cidadãos viciados – isto é, clinicamente, sem margem de dúvida – arruinando a própria vida com apostas. Eles sempre estiveram entre nós, é claro. Porém, a facilidade de entrar na brincadeira, a miríade de opções (de sites, de modalidades, de variáveis dentro de um mesmo jogo), o encurtamento do intervalo entre estímulo e resposta: tudo isso tem transformado a aposta esportiva na “nova oxicodona”.

Em outra ponta, profissionais que já vivem o sonho, com anos à frente para fazerem o que amam, na curva ascendente da vida, tornam-se engrenagens desse casamento nefasto (mas intenso, cheio de paixão…) entre dopamina e esperteza. O primeiro grupo parece mais compreensível – ou já nos acostumamos com exemplos de autodestruição –, mas e o segundo?

Sobre arriscar tudo por muito pouco

Nos surpreendemos com jogadores de futebol de elite envolvendo-se com apostas tão trambiqueiras – não por uma questão ética, mas financeira. Afinal, estamos habituados com “pilantragem, estelionato ou apenas uma inocente carraspana” em nossa cultura quilingue, porém assusta saber que algum indivíduo com salário de três dígitos possa pôr tudo a perder por uma recompensa proporcionalmente tão baixa.

Por que um atleta se submete ao risco de arruinar a própria carreira, perder qualquer credibilidade, dever para criminosos – em caso de insucesso do acordo, por incompetência individual ou por algum infortúnio da partida –, trair os próprios companheiros e comprometer a instituição que paga seu salário (provavelmente, o maior de sua vida)? Vamos confabular por aqui, sem qualquer critério ou metodologia.

É famoso um discurso em que John Bogle, fundador do Vanguard Group (maior gestora de fundos de investimento do mundo), relembra um diálogo entre Kurt Vonnegut e Joseph Heller:

Numa festa oferecida por um bilionário em Shelter Island, o falecido Kurt Vonnegut informa a seu amigo, o escritor Joseph Heller, que o anfitrião, um gestor de fundos de investimento, ganhou mais dinheiro num único dia do que Heller ganhou com o seu popular romance Ardil-22 durante toda a sua história. Heller responde: “Sim, mas eu tenho algo que ele nunca terá… O suficiente”.

Morgan Housel⁶ resgata o discurso de Bogle como gancho para duas histórias de ruína: a de Rajat Gupta e a de Bernie Madoff. O primeiro, multimilionário após uma carreira como CEO na McKinsey – e já aposentado, com cargos na ONU e no Fórum Econômico Mundial, fazendo filantropia com Bill Gates –, jogou tudo no lixo ao se utilizar de informações privilegiadas para comprar ações do Goldman Sachs (que ele, justamente por conta dessas informações, sabia que logo estourariam). Terminou preso.

O segundo, talvez o maior trambiqueiro da história, realmente dispensa apresentações. Mas vale o registro de que, antes de comandar o maior esquema de pirâmide do planeta, Madoff já era extremamente bem-sucedido (de forma legítima, sem qualquer asterisco).

Warren Buffett, talvez o sujeito mais entediante do Ocidente inteiro (e, justamente por isso, um dos mais sábios), sintetizou: “nada justifica arriscar algo que você já tem e do qual precisa por algo que você não tem e do qual não precisa”. Estamos falando de multimilionários – letrados, calejados, espertos – que fizeram o extremo oposto.

A partir disso, bifurcamos o raciocínio:

  1. A ganância é um vício que o dinheiro não necessariamente cura.
  2. Se um multimilionário é capaz de arriscar décadas de trabalho e reputação por muito pouco, por que um atleta sem formação, instrução ou assessoria (sentido amplo), ainda embalado pela tolice da juventude, provavelmente sustentando meia ou uma dúzia de familiares, não faria algo parecido – por uma recompensa até proporcionalmente maior?
    1. Ademais, se pensarmos em elencos de 30 jogadores, são 600 atletas na Série A nacional. Quantos foram sondados e receberam propostas? Quantos recusaram? Esse número dificilmente será estimável. O ponto é que, de todo modo, não serão 600 os irresponsáveis, e um número de 10% (60), embora chocante, ainda é uma minoria restrita. (Lembrando que estamos falando da divisão de elite. O absurdo é exponencial – não há nada chocante em projetar acordos espúrios em jogos de série D, por exemplo, pois o contexto do atleta, muito mais próximo do chão de fábrica do que do Neymar, é completamente diferente).
    2. Me pergunto do fundo do coração se a maioria desses jogadores sabe que é rica. No sentido de ter noção concreta de que, se ele recebe R$ 50 mil por mês (e um atleta de primeira divisão tende a receber muito mais), isso já o coloca no topo do topo do topo do país, em que pese a não linearidade (e a brevidade) de sua carreira. Afinal, para alguém criado com muito pouco, talvez R$ 50 mil seja só um número alto – que muitas vezes precisa ser usado, não guardado, seja por compensação psicológica, seja por falta de instrução, seja por penduricalhos humanos que agora o cercam como abutres.

Com esses pontos, longe de defender a postura dos jogadores – que, acima de tudo, cometeram uma estupidez sem tamanho e provavelmente jogarão suas carreiras já curtas no lixo –, procuro tentar compreender suas motivações. Muitas vezes, elas nem são tão complexas (as nossas são?). Cada um de nós guarda uma interseção nebulosa entre o ético, o prático e o moral, tudo isso temperado com (i)legalidade.

Afinal, digamos que você tenha a chance de ser recompensado por fazer algo ilegal, mas esse ato ilegal prejudique apenas, hm…, o Detran (talvez você faça mesmo sem a recompensa). Agora digamos que este mesmo ato ilegal prejudique de alguma forma seus melhores amigos. Obviamente, você encararia a oferta de outra forma. (E se prejudicar os colegas de trabalho? E se prejudicar os colegas de trabalho, mas você odeia seus colegas de trabalho? And so it goes).

Enfim, são apenas hipóteses para testar o raciocínio. Longe de almejar um raciocínio inédito, o ponto é: pessoas fazem merda o tempo todo. Acontece. Eu, você, Bernie Madoff e o lateral Pedrinho temos gatilhos e motivações duvidosas; não necessariamente racionais, não necessariamente razoáveis. Alguns testes de força com indivíduos distintos em ambientes diversos gerarão resultados improváveis, curiosos – nos quais nem um adicto supersticioso teria arriscado seu dinheiro.


¹ Mlodinow, Leonard. O Andar do Bêbado, 2008. Zahar (2018).

² Dostoiévski, Fiódor. O Jogador, 1867, Penguin-Companhia (2017). Apresentação e tradução de Rubens Figueiredo. A citação que abre este texto também pertence à edição (p. 30).

³ Meadows, Jesse. Dopamine: The Self-Improvement Mythos Of Our Age. Sluggish, 2023. Destaques nossos. Sobre o segundo ponto, é impressionante a relação com esta outra pesquisa aqui, que relaciona como, contraintuitivamente, fumantes pobres se importam menos com o aumento do preço do cigarro. “Mas a maioria dos participantes (de ambos os sexos, especialmente os mais velhos, os desempregados e os que moram sozinhos) também afirmou que o cigarro preenche um vazio em sua vida cotidiana: Eles fumam porque não têm mais nada para fazer, porque é a única atividade de lazer que podem pagar (paradoxalmente, alguns fumantes acreditam que economizam dinheiro fumando); por outro lado, lembraram que costumavam fumar menos quando tinham um emprego; eles também fumam porque se sentem solitários, para compensar um rompimento emocional ou uma demissão, ou para aliviar os sintomas de abstinência depois de parar de usar ‘drogas pesadas’. Em outras palavras, muitos fumantes entrevistados consideravam que fumar era ‘tudo o que lhes restava.” Esta e outras traduções do texto partiram do Deepl.

⁴ Vale lembrar que “Nas décadas de 1930 e 1940, o Brasil viveu a era de ouro dos cassinos. No auge, funcionavam mais de 70 casas de apostas no país — do Rio, capital da República, à minúscula São Lourenço, no sul de Minas. Nos salões, homens de terno e mulheres de longo apostavam dinheiro nas roletas e nas cartas de baralho. O fervilhante negócio dos cassinos ruiu repentinamente. Em 30 de abril de 1946, três meses depois de assumir a Presidência da República, o general Eurico Gaspar Dutra pegou o país de surpresa e, com um decreto-lei, ordenou o fim dos jogos de azar”. Fonte: Agência Senado.

⁵ Bevan, Thomas J. On Gambling. The Commonplace, 2020.

⁶ Housel, Morgan. A Psicologia Financeira, 2020. HarperCollins (2021). Capítulo 3: “Nada é o suficiente”.

Swing de amor nesse planeta: os trinta anos da maior banda brasileira

Extraído da edição 115 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

por Marceli Mengarda, a Burocrata — publicado na edição de abril do Jornal RelevO, com diagramação especial (de Marceli Mengarda, a Burocrata).

Tem uma teoria sobre a popularidade do reggae em São Luís, capital do Maranhão e considerada por muitos a “Jamaica brasileira”, segundo a qual o ritmo emplacou especialmente nas periferias após chegar aos dials ludovicenses pelas ondas de rádio AM de estações caribenhas, que percorrem distâncias bem mais longas que a FM. Se foi isso mesmo ou se na verdade algum marinheiro só largou um vinil do Bob Marley ali no porto, pouco importa. Este texto é sobre o Skank, então uma imagem envolvendo reggae, rádios e situações em que ninguém apostaria serve bem demais para ser desperdiçada.

Se você tinha ouvidos funcionais e um aparelho de rádio nos anos 1990, é absolutamente impossível não ter ouvido a voz do psicólogo Samuel Rosa de Alvarenga em algum momento. O Skank é talvez a banda que chegou mais perto da unanimidade em território brasileiro e, enquanto comemora trinta anos do lançamento de seu primeiro disco, está fazendo uma turnê de despedida dos palcos. Antes de nos perdermos pensando em por que todas as coisas boas sempre têm um fim, cabe um exercício afetivo de elencar, com razões aleatórias e mais ou menos cronológicas, por que esta coisa (a banda Skank) é tão boa.

De início, bem, é uma banda mineira: Samuel Rosa, Henrique Portugal, Lelo Zaneti e Haroldo Ferretti estavam todos em Belo Horizonte, o que já desperta a maior das simpatias. Impossível imaginar o pessoal comendo um espaguete no Bolão, em Santa Tereza, e não ser tomado por uma vontade de chegar junto, pedir uma dose de cachaça e perguntar se o Lô Borges não vai aparecer por lá nessa noite. A banda surgiu em 1991, mas o primeiro disco, Skank, saiu só em 1993. A ideia era trazer referências do dancehall jamaicano ao pop brasileiro, e o CD foi lançado e distribuído, no início, de maneira independente. Começou a fazer tanto sucesso que chamou atenção da gravadora Sony Music e o que se seguiu foi contrato, relançamento, tudo oficializado e nos conformes. Neste disco, tem uma versão de ‘I want you’, do Bob Dylan, com uma batida dub e uma letra muito bonita falando em realejos ancestrais e dândis de paletó chinês, que ficou melhor que a original – o prêmio para quem é ousado a ponto de unir os Bobs e colocar um pouco de Marley no Dylan. O som desse primeiro disco é cru e bastante regueiro, mas as letras estão vários níveis acima do que se ouve em música reggae normalmente: não há uma menção sequer à cor verde ou à planta que nasce da terra, e talvez esse seja exatamente o caminho. Emplacar uma banda cujo nome é uma variedade de maconha e não precisar mais tocar nesse assunto.

Em 1994, veio o Calango: uma capa com tipografia inegavelmente noventista e um pé ainda no dancehall, mas um pé que dança com muito mais desenvoltura, misturando com mais elegância as referências musicais (um dos melhores exemplos é juntar o tema do Peter Gunn a ‘É proibido fumar’, por sinal mais uma música que fala de maconha sem precisar falar de maconha). Discaço. Tem ‘O beijo e a reza’, que manda um “o sol na nuca e o corpo dela ofusca a luz do sol”, algo que o Milton Nascimento diria se tivesse escrito um reggae dub. Tem uma variedade musical mineira, o calango (han, han), que é recuperada em ‘A cerca’: o estilo é uma espécie de desafio verbal, um repente entre caipiras, mas musicalmente também vai até Recife, beija Chico Science e volta a Minas Gerais pelo Grande Sertão. No fim do disco, tem uma ‘Let ‘em in’ incidental em ‘Pacato Cidadão’ que já dá uma pista dos rumos McCartneyanos pelos quais a banda ia enveredar mais pra frente.

Calango tinha vendido um milhão de cópias e o Brasil todo dançava e cantava os hits dos mineiros, mas ainda não havia resposta para uma dúvida muito importante, que era a questão de a bola na trave alterar ou não o placar. Aí, em 1996, veio O samba poconé, começando com uma das dobradinhas de riff de guitarra + hey mais conhecidas da música brasileira em ‘É uma partida de futebol’, para responder: não, bola na trave não altera o placar. O disco de 1996 vendeu dois milhões de cópias e encapsula a Fase Seios do Skank: tanto na capa do disco quanto no videoclipe de ‘Garota nacional’, o mamilo feminino foi libertado sem reservas e sem incorrer em cancelamentos (sequer pelo revisionismo, o que é curioso). ‘Garota nacional’ foi a música mais tocada nas rádios brasileiras em 1994, liderou as paradas espanholas (!) por três meses e foi a única brasileira escolhida pela Sony Music para uma coletânea de comemoração do centenário da gravadora. A batida alegre e funky, aliada a um refrão chicletíssimo, é indefectível e explica o alcance inimaginável da canção – uma anedota bastante pessoal que ajuda a colocar as coisas em escala é a forte lembrança dessa música começando a tocar no som mecânico da festa de quinze anos de minha irmã mais velha, num salão de igreja de uma cidade do interior de Santa Catarina, e a emoção que tomou conta de todos os adolescentes noventistas lá presentes. Hoje, se você olhar em um serviço de streaming como o Spotify, vai ver que ‘Garota nacional’ tem menos da metade dos plays de ‘Sutilmente’, por exemplo, então entendemos o quão difícil é explicar esse tipo de coisa à juventude streamer, mas aconteceu demais.

Um videoclipe pra lá de seios.

Há quem, depois de fazer muito sucesso, não sabe direito o que fazer com isso e perde oportunidades, abandona a chance de alçar voos ainda mais altos e fica no patamar onde está (ou, pior, tropeça e cai). O Skank sempre bancou o sucesso de forma aparentemente muito tranquila e segura. O Samba Poconé já teve mixagem em um estúdio de Nova Iorque e parceria com Michael Fossenkemper (que divide os créditos por ‘Tão seu’), além de três músicas com feat de Manu Chao e uma viagem completa pela América, do funk norte-americano à já tradicional mistura caribenha ao pop-rock latinoamericano que estava quebrando tudo. Enquanto o trabalho e as parcerias se profissionalizavam cada vez mais, o produto permanecia acessível – pop fino, bem trabalhado e que respeita o ouvinte. Poucas bandas conseguem manter esse equilíbrio com essa consistência, e os três primeiros do Skank consolidaram tanto a proposta quanto o conceito. Acertadamente, em 2018 a banda lançou uma série de EPs ao vivo chamada Os três primeiros – com mais músicas dos dois últimos, como deve ser. Tática esperta, defendida por teóricos sérios da música e corroborada por aqui, que poderia ser aplicada até a um Black Sabbath da vida (mas, aí, contando os quatro primeiros).

Em 1998, no Siderado, a batida dub já é um eco distante, mas há grooves finíssimos e verdadeiras joias do ar soprado por entre tubos de metal, como ‘Saideira’, a música que encerra o disco (e que, depois, ganhou um cover de Carlos Santana). A cota de música de festinha é atendida com glórias por ‘Mandrake e os cubanos’ – canção que ensaiou um revival nos convescotes de jovens descolados no fim dos anos 2010, sendo interrompida abruptamente pelas restrições pandêmicas –, parceria de Samuel Rosa com Chico Amaral, saxofonista que divide a composição de tantas outras canções. Outra parceria que está ali e vai frutificar ainda mais nos anos seguintes é a de Nando Reis, que presenteou o Skank com ‘Resposta’, uma das mais lindas letras de término do cancioneiro popular, feita para Marisa Monte – a despeito de os Titãs todos ficarem de cara, porque a música fez um sucesso danado. Às vésperas do novo milênio, em 2000, Maquinarama vem para completar a transição do som que passou a ter referências cada vez mais britpop beatlemaníacas – anunciadas, de alguma maneira, com aquela parte do desejo e o destino brigando como irmãos em ‘Três lados’, um claro aceno ao Oasis que só não vê quem não quer. Sem brincadeira, essa letra: “somos dois contra a parede / e tudo tem três lados / e a noite arremessará outros dados”. Né. ‘Balada do amor inabalável’ completa a cota de música que tocou em novela – outra das bem-sucedidas táticas de distribuição da banda, que emplacou 23 músicas em trilhas sonoras de telenovela, oito delas só em Malhação. ‘Canção noturna’, quase o que seria uma saga de Castañeda mas com mais romance e num deserto um pouco mais andino, é outra das excelentes composições do disco (aliás, descobrindo agora: um dervixe é um tipo de monge muçulmano, seja lá o que isso signifique. A gente também acredita em tanta coisa que não vale nada).

O carinho da torcida com o cover guitarrado de ‘Saideira’

O disco Skank (ao vivo), gravado em Ouro Preto em 2001, conseguiu outro feito admirável: ‘Acima do Sol’, uma música ainda inédita (e que não foi lançada em nenhum outro disco posteriormente), alcançou o topo das paradas, porque o pessoal estava querendo diversificar essa coisa de topo das paradas para ganhar também de modos menos convencionais. Nesse disco, tem ainda ‘Estare prendido en tus dedos’, uma versão em espanhol de uma música do The Police, mais uma generosidade da banda em fazer um cover melhor que o original, seguida por um novo arranjo para ‘Tanto (I want you)’ bem menos dub que a do primeiro disco. O novo milênio chegou e muitas coisas estavam mudando com o advento da tecnologia e essas frases feitas para falar dos impactos da internet que se popularizava e da telefonia celular se imiscuindo sorrateiramente em nossos bolsos e em nossas vidas. O Skank conseguiu fazer uma boa leitura da conjuntura toda, talvez também por estar numa transição sonora muito particular e específica – e, claro, respaldados pela consistência de uma carreira de dez anos sendo honestos e, para usar uma expressão contemporânea, entregando tudo.

Um cruzeirense absolutamente transtornado na vitória do cabuloso sobre o Huracán. Sai daí, Samuel, é perigoso!

Cosmotron, de 2003, foi uma espécie de divisor de águas. Ricardo Alexandre, no livro Cheguei bem a tempo de ver o palco desabar, de 2006, tem um capítulo dedicado às relações dos mineiros com os fãs, outros músicos e a imprensa musical brasileira. Uma reunião da banda com os executivos da gigante Sony durante a mixagem do Cosmotron fecha o capítulo e é ilustrativa dessa natureza muito particular do Skank. Por ter chegado na gravadora já com um disco independente que vendeu muito bem, e por ter somado a ele dois discos que venderam bizentos milhões de cópias, a banda pôde ocupar uma posição muito mais independente do que se acredita possível nesses contratos. Assim, enquanto o pessoal ouvia o disco, os integrantes defendiam (com ‘simpatia e cordialidade’, segundo Alexandre) que o primeiro single do disco, antes do inegável single ‘Vou deixar’, deveria ser ‘Dois rios’. Funcionou: a música mais pianera-Paul-McCartney – uma das músicas mais bonitas de todos os tempos, inclusive –, foi lançada como o primeiro single, fazendo muito sucesso, e logo depois deixaram que ‘Vou deixar’ chegasse varrendo o Brasil numa catarse que só os grandes hits enérgicos para cantar a plenos pulmões são capazes de suscitar.

‘Vou deixar’ inaugura também uma categoria muito específica de Efeito Mandela, que é o de estar nas lembranças de todo mundo tendo sido a trilha sonora de formaturas que aconteceram antes mesmo de seu lançamento. Apesar de ter tocado à exaustão, perigando enjoar todo mundo com tamanho alto-astral, é engraçado que ela só tenha surgido só no sétimo disco da banda, já que é um dos momentos mais enérgicos das apresentações ao vivo da banda. Outra questão importante sobre o Skank: há muitas bandas que entregam uma boa performance ao vivo, animando o mar de gente que se posiciona ali e espera pular, levantar os braços e dar uns gritos em algum momento. Há muitas bandas que entregam composições complexas, letras que te fazem refletir mas que não necessariamente te fariam pular. Uma coisa não tem que, necessariamente, pressupor a outra: dá pra pular com uma letra que diga apenas “vamo pular” e dá para sentar e ouvir as mais poéticas do Milton Nascimento sem que essas experiências sejam diminuídas. Mas, quando uma banda junta as duas coisas, é preciso reconhecer o quanto isso é especial. Não por acaso, o pessoal do fã-clube – um produto extremamente noventista, assim como a rádio FM – estará lá, em quantos últimos-shows-da-última-turnê houver.

Em 2004, veio Radiola, uma coletânea dos maiores sucessos focada em Maquinarama e Cosmotron, trazendo também ‘Vamos fugir’, versão da maravilhosidade de Gilberto Gil que, segundo consta nas fontes, foi gravada para uma campanha publicitária da Rider (não lembrava, mas então tá). Dois anos depois, foi lançado Carrossel, com hits como ‘Uma canção é pra isso’ e ‘Mil acasos’ e diferentes tentativas de incorporar as novas tecnologias. A melhor de todas talvez tenha sido a banda ganhar, após um sem-número de discos de ouro, o primeiro Celular de Ouro do Brasil, por ter lançado o álbum Carrossel em formato digital em parceria com a Sony Ericsson – o modelo W300 vinha com todas as músicas do disco (lembra quando o U2 fez isso e todo mundo odiou e só queria saber como fazia pra deletar aquele álbum do iTunes?). Na toada tecnológica, teve ainda votação para escolher single de disco no site da banda (no álbum seguinte, com ‘Sutilmente’) e asseguram eles que ‘Vou deixar’ foi o ringtone com mais downloads no país.

O disco Estandarte, lançado em 2008, trouxe os últimos grandes hits inéditos: ‘Sutilmente’, uma parceria com Nando Reis (e uma música inegavelmente nandorrêica), e ‘Ainda gosto dela’, com participação de Negra Li que, salvo engano, é a primeira contribuição feminina numa gravação deles (esperando ser um engano mesmo; de todo modo, apesar da demora, a escolha foi muitíssimo acertada). Em 2010, veio o Multishow ao vivo, gravado no Mineirão. Foi uma despedida do estádio antes da reforma para a Copa do Mundo, não sem antes Samuel Rosa chamar a Máfia Azul para sacudir o gigante da Pampulha durante ‘É uma partida de futebol’. Essa música, a propósito, já é uma parceria com Nando Reis – reza a lenda que eles se conheceram no Rock Gol MTV, onde o Skank participou uma porção de vezes, consolidando também a posição de banda mais boleira do Brasil. Outro destaque do Ao vivo no Mineirão é a capa do disco, a partir de uma foto real, antiga e lindíssima da inauguração do estádio, em 1965, feita pelo fotógrafo Paulo Albuquerque.

Um trem bonito desses rebenta com nóis tudo.

Em 2011, teve mais um disco ao vivo, agora no Rock in Rio; em 2012 teve um revival do reggae com o Skank 91 e, em 2013, uma compilação dos #1 Hits com 25 canções entre os maiores hits (o famoso ‘só as boas’). Velocia, o disco de 2014, tem um tanto de parcerias com Nando Reis e uma pedrada para tocar fogo em todas as Babilônias com a ajuda de BNegão. Dali até 2019, quando anunciaram um hiato por tempo indeterminado e uma turnê de despedida, teve ainda a supracitada gravação dos três primeiros. Muitas coisas complicadas aconteceram nesse tempo todo e a relação do Skank (e da música pop como um todo) com a rádio FM parece acompanhar essa dinâmica.

Uma busca pelas músicas mais tocadas nas rádios brasileiras a cada década dá uma boa visão do fenômeno. Nos anos 1990, havia um equilíbrio entre os artistas internacionais – um tanto de R&B, um tanto de pop pós-roqueiro – e bandas nacionais de estilos diversos, desde o próprio Skank e os outros mineiros ilustres do Só pra Contrariar ao pop-guitarrado-creuzebeck dos Mamonas Assassinas, com algumas aparições do sertanejo hoje clássico, com duplas como Leandro e Leonardo. Nos anos 2000, o pop seguiu dominando as listas, agora com alguma expressividade de divas pop internacionais e um ensaio do que aconteceria uma década depois no estouro do sertanejo misturado ao pop, com artistas como Michel Teló e Victor e Léo – nessa década, o Skank ainda seguia lá, com músicas como ‘Sutilmente’ e ‘Vou deixar’. De 2010 para a frente, é muito difícil encontrar qualquer música que não tenha menção a cerveja ou motel no título ou que não seja de um cantor com letra duplicada no nome (numerologia, a grande parceira do famoso brasileiro desde sempre); uma dupla usando chapéu e cinto com fivelas exorbitantes sobre calças skinny ou mesmo uma mulher, desde que esteja cantando também sobre litrão e adultério. O agronejo, popnejo ou funknejo (diferentes digievoluções, que requerem alguém mais estudioso do tema para explicar) tomaram de assalto os dials das rádios FM brasileiras, complementando locutores que ficaram cada vez mais confortáveis para falar todo tipo de descalabro e, hoje, têm como única disputa à altura as rádios evangélicas (embora a real salvação seja mesmo a Antena 1, mas isso não vem tanto ao caso agora).

Como acontece com tudo que é bonito e complexo, não dá para afirmar categoricamente se a onda chorumosa que tomou este país é uma causa ou uma consequência de não termos mais hits inéditos do Skank. O que dá para afirmar – e, caso não tenha ficado claro nessa exposição extremamente puxa-saco – é que a banda se despede consolidada com um trabalho que fala por si e a coloca em posição de destaque seja qual for o critério de comparação. Um ponto fora da curva na música popular brasileira (e na música pop brasileira também), elaborado e acessível, com a antropofagia de sons e referências que só o brasileiro é capaz de engendrar. Já sabemos que vai ter um lugar diferente lá depois da saideira; não sabemos se vai ser bom mas, por enquanto, nesta última rodada, vamos brindar ao Skank.

Em defesa de Babilônia

Extraído da edição 114 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Batalhão do RelevO descendo para defender Babylon (2022, frame do filme).

Sábado à tarde, sol e… shopping. O cenário do inferno: poucos contextos são tão desprazerosos e te despertam tanto para os males da sociedade quanto um shopping lotado. Tudo é brega, triste e, principalmente, cheio. Até o estacionamento é caro – e árduo. Todos os olhares compõem antíteses de beleza, uma atrás da outra.

Era a única sessão de Babilônia restante em Curitiba, e eu já chegava à sala parcialmente arrependido. Ademais, sabia que permaneceria mais de três horas naquele lugar, portanto o custo de oportunidade era muito alto (deslocamento + estacionamento + ingresso + desgosto + tempo).

Então Babilônia começou – a primeira das duas vezes em que eu me submeteria àqueles mágicos 189 minutos.


É época de Oscar (acho eu, recebendo gotas do tema após este cair com peso na piscina aberta, respingando nos inocentes ao redor), um dos assuntos mais desinteressantes da civilização. Importar-se com o Oscar é por si só uma postura tão entediante que este enclave sequer procurará argumentar sua posição.

Paralelamente, ou por outro lado, ou de forma contraditória, adoramos virar os olhos para a crítica, esse Leviatã imaterial maníaco-depressivo eternamente atrapalhado pela própria miopia. É divertido, embora angustiante, indignar-se com o louvor a algum produto medíocre, questionar ferramentas (os tomates, os bots, o rabo preso) ou defender ferrenhamente uma injustiça, imaginando-se à frente de seu tempo – sem se levar muito a sério, por favor.

Enfim, tentar compreender os mecanismos de raciocínio que elevam ou repudiam uma obra (seja musical, seja audiovisual, seja gastronômica) é um baita exercício de compreensão da cultura, da sociedade e de comportamentos miméticos.

Também já é senso comum estabelecer a fase melancólica de Hollywood – e, vale registrar, não necessariamente do cinema (injusta sinédoque…) –, escrava de franquias mastodônticas, reciclagens extremas, algoritmos famintos e, queiramos ou não, esterilidade de produções tão politicamente corretas (outro subtópico que não temos interesse em desenvolver).

Pois bem, queremos filmes mais originais, autorais, cujos diretores (simbolicamente) nos estapeiem e proclamem “cala a boca, eu sei o que tô fazendo”. Ao menos dizemos isso em voz alta. Para nossa sorte, recebemos um destes com Babilônia (2022), de Damien Chazelle (Whiplash, La La Land, First Man).

Babilônia é uma pedrada épica cujos vários atos retratam a passagem do cinema mudo para o sonoro, partindo de 1926. O filme tem muito de Era uma vez na América (1984); Boogie Nights (1997); Eyes Wide Shut (1999); A Grande Beleza (2013); O Grande Gatsby (2013); Lobo de Wall Street (2013) e Era uma vez em Hollywood (2019) – e talvez por ter um tanto de tudo, sem recortes, tenha chegado a seus 189 minutos.

  • Era uma vez na América: crescimento de um grupo; música-tema em variações; melancolia do tempo e suas mudanças; longa duração.
  • Boogie Nights: por dentro de uma indústria; ascensão e decadência dos envolvidos nessa indústria; produções e vaidade.
  • Eyes Wide Shut: um dos capítulos, especialmente, é 100% De Olhos Bem Fechados.
  • A Grande Beleza: festa; glamour; decadência; beleza vs. vazio.
  • O Grande Gatsby: período parecido, euforia parecida; Tobey Maguire. Muito superior, Babilônia é o que Baz Luhrmann gostaria de ter feito com seu Gatsby.
  • Lobo de Wall Street: gente rica se drogando; apogeu e queda; euforia.
  • Era uma vez em Hollywood: os filmes por dentro; passado de Hollywood; Margot Robbie e Brad Pitt.

No entanto, Babilônia teve uma recepção crítica… morna, no mínimo. “Polarizada”. Acreditamos que o Leviatã míope se arrependerá dentro de alguns anos, portanto registramos nossa breve defesa (sem spoilers).

  1. O ato inicial do filme, uma festa megalomaníaca (à Grande Beleza), é um pináculo de montagem, edição e figurino sozinho mais interessante que a maioria das produções de grande orçamento a terem saído do papel. Há camadas e camadas e camadas: ao público basta perder-se e admirar a sequência.
  2. A trilha sonora é monumental, praticamente um personagem. Quem assina é Justin Hurwitz, também encarregado da função em Whiplash, La La Land e First Man. Tal entrosamento justifica como Chazelle consegue potencializar o trabalho de seu escudeiro por meio de uma edição, then again, primorosa. A estratégia Morricônica de estabelecer um tema e desenvolvê-lo em variações seguindo o desenvolvimento dos personagens encaixa precisamente com a filme.
    1. Mais sobre a trilha aqui.
  3. Os atores estão voando. Entre os protagonistas, Margot Robbie impressiona no papel de Nellie, a estrela selvagem adentrando um novo universo de glamour, cocaína, sujeira e vaidade. Diego Calva nos cativa como Manny Torres, o imigrante ligeiro. Brad Pitt faz o que sempre fez e, justamente, quando se precisa de um personagem-Brad-Pitt na tela, ele ainda é o mais indicado. Menções honrosas a Jovan Adepo (trompetista Sidney) e Jean Smart, cuja personagem representa, vejam só, a crítica.
    1. Aqui uma relação entre os personagens e suas contrapartes históricas.
  4. Há um desenvolvimento concreto, progressivo e realista dos personagens – o que justifica e faz valer os 189 minutos. Trata-se de épocas diferentes, cenários distintos, mudanças drásticas e desfechos variados: não teria graça pincelar tudo isso. Sob a perspectiva de Manny, Babilônia é praticamente um Bildungsroman. A virada de chave do cinema mudo elevou e derrubou muita gente. Absorvemos isso testemunhando o contexto inicial com calma. Nos situamos, então realmente enxergamos o impacto da mudança. Da mesma forma, a produção não fecha os olhos para a diversidade sociocultural da época e seus respectivos preconceitos. Só não o faz com o didatismo enfadonho com que muitos filmes-massa-amorfa parecem dirigir-se ao Twitter.
  5. Todas as cenas retratando produções cinematográficas – isto é, a dificuldade técnica de gravá-las cem anos atrás, em cenários externos ou internos – são extraordinárias, sem tirar nem por. O silêncio, o improviso, a magia. Esses momentos complementam a conclusão anterior: entendemos a magia, portanto, depois disso, a mudança nos afeta e conseguimos sentir os personagens.
  6. A cena final (novamente, sem spoilers) é um derretimento imperdível; o dedo médio de confiança absoluta do diretor; a autoria em seu êxtase. O fim que merecemos depois de uma jornada divertida, melancólica, megalomaníaca, engraçada, trágica, bela. De chorar. De chorar. Quem se rendeu não esquece.

Convenhamos, nenhum desses argumentos é grande coisa (“show, don’t tell”). Assista ao filme com som alto e coração limpo, depois diga-nos o que achou (por favor!). Três horas não são nada. Por fim, se quiser argumentos ainda piores, saiba que Babilônia foi indicado a três categorias do Oscar. Viva o Oscar!

1962: um bom ano para gênios

Extraído da edição 113 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

E, aliás, que seria de mim, que seria de nós, se não fossem três ou quatro ideias fixas?! Repito: não há santo, herói, gênio ou pulha sem ideias fixas. Só os imbecis não as têm.

Nelson Rodrigues

Pois bem.

Se na Enclave #112 tentamos analisar a interseção entre a Lolita (1955) de Vladimir Nabokov (1899-1977) e sua correspondente de Stanley Kubrick (1928-1999) – lançada em 1962 –, hoje derretemos o tema de forma breve e superficial, mas satisfatória para nos acalmarmos e finalmente mudarmos de assunto.

Voltemos àquele ano, o eixo comum entre nossos quatro personagens desta edição. Crise dos mísseis, Copa do Mundo, Don Draper bebendo e traindo.

Conforme comentamos, já lidamos com dois gênios em estágios diferentes da vida. Em 1962, ano de lançamento de Lolita (o filme), Nabokov vivia seu ápice – escritores não são jogadores de futebol, portanto 63 anos parece a idade certa para começar a colher frutos. Recém-mudado para a Suíça (onde viveria até seus últimos dias), ele lançaria nada menos que Fogo Pálido, outra obra-prima, para suceder Lolita.

Por sua vez, Stanley Kubrick, um nome promissor, sem dúvidas ainda não era Stanley Kubrick. Essa virada de chave aceleraria com seu trabalho seguinte, Dr. Strangelove (1964), e se consolidaria com o pináculo 2001: Uma Odisseia no Espaço, talvez o filme mais impressionante da história. No lançamento de Lolita, o jovem Kubrick estava prestes a completar 34 anos.

  • O que queremos dizer com impressionante? A definição mais pura e simples possível, o fator “wow!”, a indignação de “meu Deus, como eles fizeram isso?! E como fizeram isso na década de 1960?”.
  • Outro fator a motivar este texto foi a leitura do ótimo livro de Michael Benson. Recomendamos com ênfase a qualquer interessado por 2001.

Porém, entre os vários gênios daquela década, dois eram, além de indiscutivelmente gênios, indiscutivelmente brasileiros. Estamos falando, é claro, de Edson Arantes do Nascimento, o Pelé (1940-2022), e de Antonio Carlos Brasileiro (!) de Almeida Jobim, o Tom (1927-1994). Para eles, 1962 foi um ano de decolagens.

Constelação brasileira, aparentemente em 1966.

Como a Coreia do Sul hoje, o Brasil vivia seu ápice de popularidade. Era o sujeito descolado da escola, aquele cuja confiança os outros tentam emular sem sucesso. Bossa nova, Copa do Mundo, Juscelino, Maria Esther Bueno, Garrincha, Clarice, Guimarães Rosa, João Gilberto etc. – até Palma de Ouro. Seus movimentos vingavam em diversas frentes e, àquela altura, parecia que a coisa ia.

Não se trata de saudosismo (nunca), e sim de constatar o óbvio. A confiança é subjetiva e imensurável, e é provável que toda a minha geração morra sem conhecer um país confiante. (O que será que aconteceu logo depois, naquela mesma década, para frear tudo isso? 😒)

Pelé, nosso maior símbolo mundial, havia conduzido a seleção a seu primeiro título mundial em 1958, antes mesmo de completar 18 anos.

Na Copa seguinte, aos 22 – idade ótima para um atleta, péssima para um escritor – embora estivesse voando, machucou-se no segundo jogo, um empate em 0x0 contra a Tchecoslováquia. Foi substituído por Amarildo e viu Garrincha brilhar na campanha do bicampeonato, encerrada contra a mesma Tchecoslováquia (3×1).

No mesmo ano, ele ainda seria campeão paulista, brasileiro (então Taça Brasil), da Libertadores e Intercontinental (mundial). Neste último, destruiu com três gols o Benfica de Eusébio lá em Portugal (2×5).

Vale lembrar que Pelé só disputou três Libertadores: ganhou duas e parou em uma semifinal. Àquela época, era mais vantajoso fazer excursões mundiais – o Santos era praticamente um circo itinerante – do que se enlamear na competição continental, ainda sem transmissão televisiva.

1962 também foi um ano definidor para Tom Jobim por ao menos dois motivos. Primeiro, a histórica sequência de shows com João Gilberto, Vinicius de Moraes e Os Cariocas no restaurante Au Bon Gourmet, em que lançaram, entre outras joias, ‘Garota de Ipanema’. Depois, o absolutamente caótico show em Nova York que apresentou diversos músicos brasileiros a jazzistas de primeira linha dos EUA.

Separando apenas esses dois eventos, já encadeamos o sucesso posterior de Jobim. Em 1967, a consagração mundial viria após a parceria com Frank Sinatra. Ao longo de sua carreira, Tom viveria entre Rio de Janeiro e Nova York gravando obras-primas muito além de bossa nova, como Stone Flower (1970) e Matita Perê (1973).

  • É natural que nenhum brasileiro sinta vontade de escutar ‘Garota de Ipanema’, afinal qualquer superexposição dessacraliza. Isso nos afasta de uma beleza ímpar, mas, principalmente, nos faz esquecer o feito que constitui tamanho sucesso mundial.
  • The Girl From Ipanema is a far weirder song than you thought”.

Então voltamos a 1962, ano em que filtramos gênios. À Enclave, hoje interessam esses quatro – poderiam ser tantos outros e tantas outras, poderiam ser outras épocas. Tudo é recorte, e pensar num mundo com Nabokov, Jobim, Kubrick e Pelé em ação traz o tipo de melancolia alegre que nos satisfaz para iniciar a semana.

Lolitas de Nabokubrick

Extraído da edição 112 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Lolita (1955), de Vladimir Nabokov, é o melhor livro que este editor leu em 2022, ainda que dezembro inteiro possa surpreendê-lo. Não esperava menos. Quem já teve contato com qualquer coisa escrita por Nabokov entende que o sujeito era basicamente um ET. Ademais, esse clássico contemporâneo dispensa apresentações, em que pese o fato de sua temática por si só ter-lhe fomentado a fama.

Por fim, quem também já teve contato com qualquer coisa dirigida por Stanley Kubrick entende que se trata de outro ET, talvez literalmente. E um jovem Kubrick, após o épico Spartacus (1960), assumiu a tarefa ingrata, hercúlea, espinhosa de adaptar Lolita (1962, hoje disponível no HBO Max). Por sua vez, a Enclave é basicamente uma newsletter sobre adaptações (releituras, reinterpretações, deslocamentos). Concluímos que o encontro Nabokubricko é um prato cheio.

Premissas

Muito já se falou – escreveu, argumentou, esmiuçou – sobre Lolita, em ambientes muito mais confiáveis que este. Porém, vale listar algumas considerações que elucidem, do nosso ponto de vista, por que esse romance é tão desgraçado. A despeito de detalhes muito conhecidos, principalmente para quem leu, partiremos de um leitor menos familiarizado (ou lembrado).

Lolita acompanha as memórias de Humbert Humbert, professor de meia-idade, em uma história já encerrada no momento da narração. Chegamos a ela por meio de um (fictício) editor de livros de psicologia. Nas mãos erradas, metalinguagem pode ser uma bomba de tédio; para Nabokov, é sempre um tempero. “Humbert Humbert” já é um pseudônimo dentro da história.

A partir disso, acompanhamos a trajetória e os devaneios de Humbert, um narrador absolutamente não confiável. Este é um dos cernes do livro: Lolita é, essencialmente, uma história que contém tudo aquilo que conhecemos dentro da perspectiva de seu maior infrator, e apenas dele.

Para tanto, está em boas mãos – nas melhores possíveis. Nabokov transformaria uma história de bingo na igreja na narrativa mais interessante do planeta se a mediasse por um narrador padre inseguro.

Pois bem, assim conhecemos a menina Dolores Haze, “Lolita” apenas na mente torpe de Humbert. Ou melhor, tentamos, pois tudo que ela pensa, sente ou executa nos é relatado pelo narrador que por ela se apaixona e que dela abusa. Não detalharemos o enredo em si.

Mas Lolita, o romance, nos oferece algumas surpresas; não por acaso é tão aclamado. A primeira delas, talvez menos lembrada: como qualquer obra-prima, o livro contém lampejos brutais de humor. Há duplos sentidos, jogos de palavras, azedumes do narrador – rimos dele, não com ele –, xadrez verbal com camadas de interpretação (Nabokov era um estrangeiro nos Estados Unidos e, naturalmente, na língua inglesa, na qual escreveu o livro). Ao longo da jornada de Humbert e Dolores pelo país, há inúmeros códigos à disposição do leitor-desbravador.

E aos poucos, Dolor’osamente (tssssc), nos apegamos ao narrador, um pedófilo manipulador, cretino e triste. Esse é o grau de qualidade da escrita da Nabokov, que brinca com sua arte, esfregando na nossa cara que conseguiria ganhar uma Libertadores com um time da Copa Kaiser. É como se ele nos desafiasse, provocando: “qual é a maneira mais difícil de eu te convencer? Um pedófilo neurótico professor de literatura é o suficiente para vocês? Pois bem”.

Parece piada, mas é bem provável que esse tenha sido o ponto de partida do escritor, um estudioso dos problemas de xadrez.

Ao fim de Lolita – emocionados, frustrados, raivosos, confusos –, experienciamos o suficiente para compreender com um só golpe a beleza da palavra escrita.

Adaptando o inadaptável

Which is why adaptar Lolita é uma tarefa tremendamente estúpida. Kubrick já sabia disso, vide o próprio cartaz da produção:

“Como foi que fizeram um filme de Lolita?”; fotografia de Bert Stern.

Afinal, estamos falando de uma suprassumo da palavra escrita. O que acontece na narrativa é menos esteticamente relevante que o efeito da narração. Como transportar esse efeito para o cinema (ou transformá-lo em outra coisa)? E, principalmente, por quê? Ademais, como expor o relacionamento de um marmanjo com uma garota de 12 anos?

Stanley Kubrick também gostava de um desafio – e de xadrez.

You’re gonna take my queen”, antecipa Charlotte, mãe de Dolores.

O responsável pelo roteiro é o próprio Kubrick, que editou pesadamente o material de Nabokov (ainda que este o assine). Sua Lolita pode ser classificada como uma comédia – a presença do gênio Peter Sellers, capaz de roubar qualquer cena, corrobora essa mudança de ênfase.

No longa-metragem, famoso pela iconografia consagrada no cartaz – isto é, o pirulito e o óculos (que sequer aparece no filme) –, Dolores tem mais que os 12 anos do romance. Ela também é chamada de “Lolita” pelos demais personagens, não só Humbert, e dispõe de uma malícia da qual devemos desconfiar plenamente no livro, afinal só a acessamos via Humbert.

Sue Lyon, aos 14 anos no início das gravações, faz um trabalho extraordinário como enfant terrible, para desespero da mãe, Charlotte (Shelley Winters). E para desespero de Sue Lyon, que nunca conseguiu se desvencilhar “do filme que causou minha destruição como pessoa”.

Dessa combinação emerge a ideia de “lolita” na cultura popular, isto é, da jovem adolescente sedutora – uma figura injusta em relação ao romance.

Por fim, Kubrick sabiamente inverte a ordem (ou o foco) dos acontecimentos – também não detalharemos –, dando muito mais destaque ao personagem de Peter Sellers. O diretor omite qualquer relação explícita entre Humbert e Dolores, promovendo apenas sinais indiretos, embora suficientemente claros.

Ao assistir a Lolita, não lembrava que o filme havia sido gravado em preto e branco. Essa não era uma condição em 1962, mas uma preferência de boa parte dos diretores porque a tecnologia colorida ainda não era tão sólida. Com isso em mente, chama atenção (para surpresa de ninguém) como Kubrick aproveita o máximo de cada quadro, com tomadas longas e diversas camadas visuais em perspectiva. Por exemplo, a cena do baile na escola ou as cenas nos quartos de hotel, com janelas ao fundo.

A trilha sonora de Nelson Riddle (que alguns anos depois faria os arranjos de The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim, segundo disco de Tom, que por sua vez recusaria compor a trilha de A Pantera cor-de-rosa [1963], que por sua vez consagraria mundialmente Peter Sellers como o inspetor Jacques Clouseau, um ano depois de brilhar em Lolita… [que por sua vez, 10 anos depois, declararia seu amor à música de Jobim no Sunday Times]) e, pera lá, só um momento, nos perdemos tentando conectar os pontos do planeta, afinal esta seção se chama hipertexto.

A trilha sonora de Nelson Riddle, marcada pela música-tema da protagonista, é por si só um sopro de ar fresco que converge com o tom da obra: Lolita é um filme mais leve, muito menos desafiador que o livro. Esse traço não é um intrinsecamente um defeito, embora exponha a dificuldade de lidar com um material tão complexo. Diante do desafio – e segurando as expectativas –, o resultado surpreende.

All in all, o romance é uma obra-prima, a quinta-essência de sua mídia. O longa-metragem é um bom filme nas mãos de um gênio ainda em desenvolvimento (pois não é nem o quinto em sua essencial filmografia). O encontro Nabokubricko não corresponde ao suprassumo de ambos, mas, não tendo anulado um ao outro, é suficiente para se sustentar. Ler Lolita é uma experiência extraordinária; assistir, no mínimo, vale a pena.

David Bowie: caos e transcendência

Extraído da edição 111 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

No set de The Man Who Fell to Earth (1976) — David James/Taschen.

É impossível não pensar em David Bowie: sensações após Moonage Daydream, um não documentário totalmente Bowiecêntrico.

Era noite de sexta-feira (16/09) quando cheguei ao Imax para assistir a Moonage Daydream (2022), documentário de Brett Morgen dedicado a David Bowie. Com descrição pretensiosa (“não é um documentário, mas uma odisseia, uma jornada etc.”), mentes cínicas poderiam torcer o nariz se diante deste mesmo nariz uma tela gigantesca não entregasse belas e raras cenas dos anos 1970 acompanhadas pelo remix de ‘Hallo Spaceboy‘ dos Pet Shop Boys em decibéis ensurdecedores.

A brincadeira era coisa séria.

Ao longo das pouco mais de duas horas seguintes, ouvimos, assistimos e acompanhamos Bowie – e tão somente ele. Sem talking heads (o recurso, não a banda… mas também sem a banda), sem informações, sem dados, sem capas, sem vendas, sem comitivas.

Não aprendemos absolutamente nada sobre qualquer disco, músico, gravação. Não escutamos qualquer anedota sobre um baixista de 1969, tampouco vemos algum vizinho octogenário descrever o pequeno David Jones. No máximo, descobrimos algo sobre o meio-irmão, Terry, e sobre a segunda esposa, Iman – sempre e tão somente a partir do próprio Bowie.

Ninguém fala, a não ser David Bowie (e alguns fãs, na década de 1970, à beira de um AVC por êxtase). Não se trata de um documentário informativo, malemal de um documentário. A execução conquistou o direito à pretensão: que odisseia fantástica; basta sentar-se e absorver.

Me obriguei a assistir outra vez, já na quarta-feira (21), lamentavelmente o penúltimo dia de exibição no Imax de Curitiba. Poderia reassistir outras tantas vezes com a mesma leveza. Dias depois, não consigo parar de ouvir a trilha sonora, relembrando cena por cena – outros amigos vivem a mesma situação.

Se a dimensão visual do filme oferecesse apenas uma tela preta, já valeria o ingresso. Algumas músicas de Bowie ganharam uma mixagem especial para o longa – outras simplesmente estão limpas e altas o suficiente –, e escutá-las no Imax foi uma experiência fantástica. É impressionante, no sentido mais puro e literal da palavra, como o áudio envolve e permite um contato renovado com o material.

  • Nunca havia realmente gostado de ‘The Jean Genie‘, ‘Aladdin Sane‘ e ‘Cracked Actor‘, por exemplo, na intensidade trazida por Moonage Daydream. Possibilitar essa revisão (e renovação) da experiência é encantador por si só.

Ademais, o trabalho de mixagem é primoroso ao trazer fluidez. Músicas diferentes, sons e falas se misturam em um só rio de imersão. A quem não assistiu no cinema, sugerimos com ênfase a experiência num sistema de som decente – nada de ver no notebook.

Por sua vez, as imagens intercalam entrevistas antigas, shows, clipes, filmes e bastidores de todos estes, além de nos mostrarem diversas referências abraçadas por Bowie ao longo da vida. Brett Morgen separou oito semanas para organizar o material que tinha em mãos; naturalmente, o processo levou dois anos – e um infarto. A família do músico inglês colaborou integralmente com o projeto.

Para um nerdalhaço em Bowieismo – que já tenha chegado ao nível de gravações descartadas e documentários perdidos –, talvez não haja tantos momentos inéditos, muito menos informações novas. O que absolutamente não é o ponto, tampouco a tentativa.

Primeiro, pagamos pelo recorte, isto é, a arte suprema é a colagem, não o papel colado. Segundo, pouco interessa quem trocou as cordas do baixo quebrado em 1981 ou se o artista almoçou bife com fritas antes de gravar um single na Tunísia. Informações estão disponíveis e catalogadas em décadas de material produzido sobre David Bowie: já há diversos livros e documentários cobrindo fatos, aspectos técnicos, curiosidades e a mera punhetagem.

O que Moonage Daydream oferece é uma leitura da cosmovisão de Bowie – e sua maturação – a partir da melhor experiência sensorial possível. Acompanhamos o artista, já calibrado pelo Budismo, trafegando pela Ásia (em especial as cenas noturnas, estonteantes); ouvimos esse indivíduo ao mesmo tempo tão exposto e impenetrável discorrer sem pressa sobre a vida. Testemunhamos suas referências e nos deliciamos com elas.

Então, choramos ou seguramos lágrimas (na chuva!) com o fim – de Bowie, do filme, da nossa própria existência. Ambicioso, experimental e conceitual sem abandonar o palatável, esse não documentário inclassificável é a cara de David Robert Jones.

Arte sem artista, imaginação praticada

Extraído da edição 110 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

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Essa é uma pintura de Edward Hopper no Rio de Janeiro, embora Hopper (provavelmente) nunca o tenha visitado, muito menos retratado. Para criá-la, precisei digitar uma frase e clicar em um botão.

Empolgado, fiz Hopper ir a Tóquio e recriar seu ‘Nighthawks’ lá. Por fim, ele precisou reproduzir a obra em uma estação espacial.

 

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Aí a coisa começou a ficar séria. Subitamente, me senti movido por aquela inquietação primal diante da infinidade de escolhas. Havia um universo de possibilidades à minha frente, à minha disposição. Bastava eu brincar.

E se Canaletto pintasse Hong Kong? E se também pintasse o Rio de Janeiro?

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E se Francisco de Goya retratasse uma casa de ópio?

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A partir daí, misturei diversos temas que já passaram por este enclave (“E, aliás, que seria de mim, que seria de nós, se não fossem três ou quatro ideias fixas?!”, Nelson Rodrigues).

Obriguei Umberto Boccioni a retratar uma partida de futebol; e Pieter Jansz Saenredam, o Maracanã. Fiz os astecas derrotarem os conquistadores espanhóis com um auxílio cyberpunk; depois, fiz Picasso estar lá para imortalizar o momento. Então, vi a gloriosa Tenochtitlán ser invadida pelas criaturas alienígenas de Guerra dos Mundos.

Eu poderia passar horas nisso sem piscar. Caravaggio recriando Blade Runner; Syd Mead desenhando um Honda Civic 2000; Arnold Böcklin retratando o ritual de Eyes Wide Shut; a Xangai futurista de Hieronymus Bosch; Pieter Bruegel pintando a colonização de Marte.

Bruegel e a colonização de Marte <beta.dreamstudio.ai>

A partir do DreamStudio, como outras ferramentas já fazem (DALL-E 2, a mais famosa delas), eu estava concretizando sonhos, devaneios, fantasias e demais ocupações lúdicas da mente – sem dispor de nenhuma técnica para tal. A inteligência artificial, nesse estado tão desenvolvido quanto acessível (de graça), já é capaz de produzir arte sem o artista. Que troca fabulosa!

Claro, podemos estender uma discussão semântica para o conceito de “artista”: serão os programadores? Seremos nós, meros usuários? Porém, não vamos estender essa discussão (não hoje). Afinal, diante de ferramentas como o DreamStudio, a própria função [artista] se torna dessacralizada – sem abandonar a beleza da criação [arte] em si.

E aí, quem sabe, isso nos trará algum tipo de crise existencial (não será a primeira; não será a única). Quem sabe banalizaremos qualquer elemento belo gerado sem nenhum esforço. Quem sabe isso não será problema, diante da breguice em escala industrial. Vale lembrar que estamos em um planeta cheio de bonecos funko pop – e que eles custam caro.

Enquanto isso não acontece, vale deliciar-se com a novidade de terceirizar a execução da própria imaginação. Em algum momento, é inevitável que a mesma brincadeira não se aplique à música, se é que isso já não existe.

Isto é, em uma mera página do navegador – carregando uma infraestrutura inimaginável há 20 anos –, que eu possa solicitar e gerar um álbum colaborativo entre Tom Jobim e David Bowie com um clique, pedir a música X com o arranjo de Y ou consiga produzir faixas drum & bass do Geraldo Vandré.

O texto é uma mídia mais acessível: o gerador de pós-modernismo, por exemplo, data de 1996 (!). Da mesma forma – mas com um funcionamento mais complexo –, hoje alguns chatbots até conseguem sustentar uma conversa (às vezes, às vezes).

Quem sabe um dia, com ainda mais processamento, dados etc., eu não consiga gerar um longa-metragem (“O Homem que Copiava by Stanley Kubrick”), e até lá a noção de artista, autoria e atribuição já tenha se diluído de tal forma a nos aperfeiçoarmos nos verdadeiros desafios imutáveis da sociedade, como inserir anúncios na Lua e impedir os sem-teto de dormir confortavelmente.

Já vivemos num mundo onde a Magalu quer ser sua melhor amiga e um rapper virtual assina um contrato, depois é demitido por negligência racial (FNMeka: seu TikTok, cujo apelo me foge, já tem 10 milhões de seguidores). A inteligência artificial também já pode corrigir sotaques – atenção às aspas, mesmo sem aspas – para call centers e identificar você, seus amigos, sua família em fotografias pessoais.

Por ora, a Enclave segue apaixonada por qualquer ferramenta que lhe proporcione inserir o ‘Caminhante sobre o mar de névoa’ em Júpiter.

<beta.dreamstudio.ai>

WALL-E: poesia visual

Extraído da edição 109 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Há 14 anos, em junho de 2008, a animação WALL-E estreava nos cinemas. Fui conferir a contragosto, afinal não me interessava muito por animações e, principalmente, vivia o apogeu da insolência adolescente. Aos 16 anos, somos todos intragáveis.

Havia ganhado ingresso porque participava de um projeto (na antiga Gazetinha, suplemento infantojuvenil da Gazeta do Povo) no qual estávamos aprendendo – e escrevendo – sobre cinema. Assim, compareci à sessão do filme dirigido por Andrew Stanton, com roteiro de Stanton e Jim Reardon.

Rabugento e com as expectativas baixas, eu não poderia ter me surpreendido mais. WALL-E é uma produção encantadora, capaz de desmontar qualquer guarda alta. Porém, eu nunca havia revisitado essa obra da Pixar enquanto adulto, e só o fiz, sem qualquer motivo específico, na última semana.

Pois bem, com grande satisfação (e certo alívio), renovei minha apreciação – novamente cético, novamente cínico, pois apenas um lunático é capaz de confiar nas impressões de sua versão de 16 anos.

A sequência inicial de WALL-E é famosa, não por acaso. Não há qualquer diálogo por 22 minutos. Nesse tempo, conhecemos Wall-E, um robô senciente compactador de lixo. Solitário em uma Terra abandonada – e repleta de seu material de trabalho –, ele mantém hábitos, objetos e gostos humanos no ano 2805. E uma barata.

Wall-E até dispõe de contemplação estética, assistindo a filmes (e reproduzindo seus movimentos) por meio de fitas coletadas em seu ofício. O enredo se desenvolve a partir da chegada de EVA, outro robô – muito mais moderno e funcional – enviado pela nave habitada pelos seres humanos para procurar algum resquício de vida no planeta. Androides sonham com paixões elétricas?

Diante do silêncio, portanto, a narrativa avança pelos movimentos dos personagens e pelo primor de caracterização. De cara, WALL-E se apresenta como uma mistura de 2001: Uma Odisseia no Espaço com Charles Chaplin e/ou Buster Keaton (inspirações explícitas dos produtores).

Os movimentos, roteirizados e executados com maestria, preterem o uso de palavras, o que confere certa universalidade – e atemporalidade – ao longa-metragem. Por sua vez, a caracterização não seria um problema para a Pixar, estúdio devidamente capacitado para criar fofuras das mais diversas formas.

Assim, logo nos apegamos a Wall-E e permanecemos instigados por aquele contexto pós-apocalíptico. Quando os dois protagonistas encontram os seres humanos de 2805 (spoilers?) na nave Axiom, estes são… talvez irreconhecíveis não seja a melhor palavra. Mas engordaram a ponto de perder os movimentos – locomovem-se em cadeiras flutuantes – e não conseguem resolver problema algum por conta própria. Estão sempre conectados.

É claro que o filme carrega uma mensagem (e que a Enclave odeia mensagens), mas vamos lá. Primeiro, a obra se sustenta por si só, uma vez que o drama do apaixonado Wall-E é suficientemente estimulante.

Segundo, dentro da mensagem explicitamente ecológica – que, né… digamos que tenha um ponto –, há outra sutileza singela. Despreocupado em moralizar e ensinar de forma tão direta, WALL-E não retrata os seres humanos como perversos, mesquinhos, monstros indomáveis. O longa sequer se preocupa em detalhar a trajetória da Terra até o estado apresentado.

Isso porque a animação representa o ser humano não como porco, mas apenas… distraído. À medida que se afasta da dependência da tecnologia, que enfrenta os próprios problemas com diligência e procura atentar-se aos dilemas que o afetam, o indivíduo desperta.

Um filme lindíssimo – elegante, comovente e bem-humorado –, que certamente exigiu um enorme conhecimento de humanidade para nos entregar um amável robô compactador de lixo apaixonado por um iPad voador.

Lágrimas na chuva

Extraído da edição 108 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Vangelis Papathanassiou morreu aos 79 anos, vítima de insuficiência cardíaca (movida, aparentemente, por Covid-19; “aparentemente” porque, até o momento, nada foi esclarecido por completo).

Sua popularidade mais estrondosa pode ter vindo com Carruagens de Fogo (1981), aquela melodia incrustada de tal forma na cultura popular que não se desassocia mais das próprias paródias, mas o catálogo de Vangelis oferece diversas outras camadas.

A começar pelo que fez antes mesmos de suas incursões pelas grandes trilhas sonoras. Já escrevemos sobre 666 (1973), o sensacional disco da Aphrodite’s Child, banda grega que reuniu Vangelis e o popularíssimo Demis Roussos. Ali, o grupo tocou o terror com um rock esotérico viril incapaz de envelhecer.

Porém, Vangelis jamais ficou conhecido por qualquer “rock viril”. Ao contrário: sua imagem ficou bem mais ligada ao new age, à calmaria constante. Essa versatilidade – a caixa de ferramentas inesgotável, do rock progressivo ao acompanhamento de meditação – o preparou para produções tão reconhecidamente cósmicas a partir de seus sintetizadores.

E cosmicidade é o que não falta na trilha sonora de Blade Runner (1982), um álbum extraordinário por si só – e componente indissociável do filme, outra obra-prima. Sem Vangelis, Blade Runner não é Blade Runner. Nessa obra, o grego “f*d* o tecido do tempo” engendrando uma nova estética de futuro.

  • Discorrer sobre Blade Runner é chover (ou chorar) no molhado, portanto apenas acrescentamos que a trilha sonora foi complementada em 2007, com dois discos adicionais (o lançamento original tem apenas 57 minutos, expressivamente menos que o composto para o filme).
  • Volta e meia essas faixas bônus aparecem no YouTube, mas nem sempre de maneira organizada. Por algum motivo, a edição é rara na internet. Por ora – enquanto não derrubam –, encontramos algo próximo a isso (2009, lançamento privado) aqui.
  • Há diversos bootlegs com lançamentos não oficiais. O mais interessante para iluminar cantos esquecidos do filme é a Esper Edition.

De todo modo, Vangelis não só usa, mas também gasta, estende, expande seus sintetizadores. O resultado é um pináculo, um dos melhores discos de música eletrônica de todos os tempos. A verve da cidade futurista hiperpopulosa está ali; o quarto escuro e solitário também – a belíssima ‘Memories of Green‘ já havia sido lançada em See You Later (1980).

See You Later, por sinal, talvez seja a melhor maneira de encapsular Vangelis em 40 minutos. O disco – um tanto esquecido – é experimental, porém melódico; eletrônico, porém orgânico. ‘Multi-track suggestion‘ demonstra essa abordagem emergente entre o pós-punk e o disco. Colaboram Jon Anderson (do Yes), Peter Marsh e Cherry Vanilla.

Por sua vez, The Friends of Mr. Cairo (1981), agora também assinado com Jon (“Jon & Vangelis”), é divertido pela megalomania oitentista. Já havíamos comentado, no texto sobre 666, como a música-título “contém uma riqueza intertextual tão grande que será tema de alguma Enclave futura”.

Pois bem, a longa faixa (12 minutos) navega pelo livro/filme Maltese Falcon/Relíquia Macabra, como um pastiche do cinema americano dos anos 1940, incluindo imitações de Humphrey Bogart e Jimmy Stewart.

  • Aqui, o clipe. Aqui, a versão completa. Mr. Cairo é, naturalmente, personagem do livro de Dashiell Hammett, interpretado no filme pelo marcante Peter Lorre.
  • O álbum ainda contém ‘State of independence‘, que viria a estourar no ano seguinte, com Donna Summer (produzida por Quincy Jones).

Na outra ponta, temos a trilha sonora L’Apocalypse des animaux (1973), de quando ele ainda estava na Aphrodite’s Child. Gravado em 1970, esse curto disco – que acompanhava uma série documental francesa e não contempla tudo que Vangelis compôs para a produção – tem como fio condutor a leveza sublime. Basta ouvir ‘Le singe bleu‘ para flutuar nessa sutileza.

  • Mencionamos cosmicidade: não à toa, Carl Sagan utilizaria ‘Création du monde‘ justamente na sua série Cosmos (1980), anos depois.

Se existe um além, Vangelis não fará uma estreia, mas um reconhecimento. Se existe um ser maior, este ser lhe perguntará: “como cara***s você já expressava tudo isso aqui com um teclado?”. Que nosso grego favorito descanse em paz.

Nossos cinco favoritos:

Shibumi!

Extraído da edição 107 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Shibumi (1979), de Trevanian (Rod Whitaker), é um livro esquisito. Não necessariamente pela forma atípica ou por um conteúdo extravagante, mas existe algo inerentemente curioso nesse romance de espionagem.

A começar por seu autor. “Mas quem diabos é ‘Tre-va-nian’? ‘Tre-va-ni-an‘?” foi minha reação ao deparar de algum modo – não lembro qual – com a recomendação de Shibumi pela internet. Quem confiaria em um escritor de um nome só?

Rod Whitaker (1931-2005), a despeito de uma carreira acadêmica regular nos Estados Unidos, não só vendeu, mas também vendeu bastante assinando como Trevanian, um pseudônimo/heterônimo/alterego misterioso que só viria a ser desvendado alguns anos antes da morte da pessoa física.

Whitaker publicou seu primeiro romance – já sob o heterônimo Trevanian, uma homenagem ao historiador G. M. Trevelyan (1876-1962) – em 1972. The Eiger Sanction (Escalada Mortal) logo viria a ser adaptado (e estrelado) por Clint Eastwood, em 1975, para desaprovação do escritor, incomodado com a miopia interpretativa de quem não identificou os tons satíricos da obra.

  • Escalada Mortal acompanha um professor de arte-alpinista-assassino-mercenário (não dá para desconfiar de imediato? Professor de arte não completa uma volta no Parque Barigui, oras).

Mas é aí que as coisas começam a ficar mais interessantes. Porque, considerando o que lemos em Shibumi – e Escalada Mortal (ed. Landscape, 2007) já foi devidamente comprado para a biblioteca Enclave –, Trevanian produz muito mais que apenas paródia.

Afinal, Shibumi é sim um livro esquisito. Também é um baita romance. A narrativa acompanha Nicholaï Hel, nascido de uma aristocrata russa com um alemão e crescido em uma Xangai ocupada pelos japoneses – sem conhecer o pai, praticamente sem a mãe –, depois no próprio Japão (Heru), por fim no Japão ocupado por americanos, após o fim da Segunda Guerra.

Apaixonadamente multicultural e com um explícito viés antiamericano, o universo de Shibumi se estende ao País Basco, onde mora Hel (e onde morou Whitaker), agora um assassino aposentado, embora ainda temido. Também se passa em Londres e em Washington, de onde a CIA alinha suas operações com a Matriz, uma corporação gigantesca e sem rosto controlando o planeta a partir do petróleo e de suas calculadas motivações políticas.

Já em seus cinquenta anos, Hel mora num castelo sem energia elétrica, explora cavernas, joga Go, pratica jardinagem japonesa, é capaz de matar qualquer um com qualquer instrumento (“a fucking pencil…”) e conseguiria entregar prazer a qualquer mulher por uma eternidade. Hel fala quase dez línguas e desenvolveu um senso de proximidade com o qual detecta não só aproximações físicas, mas seu aspecto anímico.

Um James Bond cavaleiro do zodíaco. Hel é o homem, uma máquina, uma besta enjaulada com ódio – apenas à procura de viver com shibumi, uma perfeição espontânea. E, claro, algo o fará voltar ao jogo.

Se os elementos são nitidamente exagerados, para não dizer escrachados, acontece que Trevanian consegue trafegar entre a paródia pornográfica de 007 (um dos personagens se chama D.I.L.D.O!) e o romance de desenvolvimento lento, disposto de enorme caracterização, com maestria – a maestria de quem domina a técnica e se vê forçado a brincar.

Ademais, o livro antecipa diversos tópicos em voga hoje, como inteligência artificial, ecologia, interferências de política externa e a ubiquidade de instituições dúbias. Trevanian aproveita para espalhar seu veneno em vários (vários!) tópicos, da CIA à pop art, todos com a rabugentice fundamentada de que gostamos. Há um senso de humor preciso.

Com a imagem do herói silencioso multicultural de origem misteriosa lutando contra organizações onipresentes, Shibumi inspirou a divertidíssima franquia John Wick – no primeiro filme, até vemos um personagem segurando o livro. Inclusive, Chad Stahelski, o diretor, adaptará o romance para o cinema em algum momento.

Como esta é uma newsletter, grosso modo, de adaptações e intertextualidade, pensemos em alguns pontos aqui.

  • Pela natureza longeva da narrativa, que abrange muitas décadas, será uma tarefa difícil.
  • O antiamericanismo em Shibumi, obra de um americano que adora o Japão, certamente será diluído.
  • Torço para manterem a pluralidade linguística – do russo ao basco –, agora que esse povo finalmente descobriu as legendas.

John Wick, por ora, sobrevive bem à superexposição (já são três filmes, rumo ao quarto), provando que filmes de ações não precisam ser estúpidos. Ou melhor, que podem até ser simplistas, desde que a ação em si seja vistosa, coreografada, bonita.

Afinal, ninguém se importa com explosões sequenciais e cortes indecifráveis, mas é possível aproximar uma luta armada de um balé – e incrementá-la com luzes, trajes e objetos cativantes. John Wick sabe fazer isso (como o primeiro Kingsman também fez).

Mais do que isso – e é aqui que a franquia realmente captura parte do apelo de Shibumi (como o primeiro Kingsman também capturou) –, essas narrativas temperam nossas vidas entediantes com um “e se?” lúdico, constante na infância, mas adormecido na rotina amorfa da vida.

“E se esse vendedor fosse um espião procurando informações?”; “e se essa porta trancada levasse a um porão da máfia?”; “e se esse prédio fosse um centro de comunicação de uma agência secreta?”; “e se esse corredor…”. O universo pelo qual transita o interminável Keanu Reeves carrega todo o ethos do romance – quem o ler logo identificará.

Por fim, ecos de Shibumi atravessam mídias: no videogame, a saga de Metal Gear parece ensopada de Trevanian, ao passo que desbravadores de Mass Effect reconhecerão Thane Krios como um Nicholai Hel alienígena.

Excelente para um livro esquisito: quem duvidaria de um escritor de um nome só?

Adaptando o beco escuro

Extraído da edição 106 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

O americano William Lindsay Gresham publicou O Beco das Ilusões Perdidas em 1946, aos 37 anos. Seu romance de estreia lhe rendeu algum dinheiro – e uma adaptação para o cinema (O Beco das Almas Perdidas) logo no ano seguinte.

A década de 1950 seria um tanto mais volátil. Casado com a poeta Joy Davidman, Gresham a trairia diversas vezes, algumas delas até sóbrio. A gota d’água, quando se envolveu com a prima da esposa, acolhida pelo casal enquanto Joy estava na Inglaterra para visitar ninguém menos que C. S. Lewis, com quem trocava correspondências.

Ela voltaria a Nova York para dar um basta no constrangimento, e, em um cenário ainda mais embaraçoso, os três morariam juntos por um tempo. Então, Joy retornaria em definitivo à Inglaterra – agora com os dois filhos do casal –, e Gresham se casaria com Renée, isto é, a prima dela. Este seria seu quarto e último casamento.

Por sua vez, na Inglaterra, Joy se casaria com C. S. Lewis em 1956, o que parece ter sido uma grande evolução (e um grande alívio) para sua vida. Infelizmente, ela morreria de câncer poucos anos depois, em 1960.

Lewis adotaria seus dois filhos, o que Gresham constatou quando foi visitá-los, após a morte da ex-mulher. Também escreveria A Grief Observed, publicado sob o pseudônimo N.W. Clerk.

Em 1962, depois de descobrir um câncer na língua, um Gresham já sóbrio e bem menos problemático se hospedou em um hotel em Manhattan e se matou com uma overdose de remédios, aos 53 anos.

  • Às vezes acredito que, se tenho algum talento, não é literário, mas um talento puro de sobrevivência. Sobrevivi a três casamentos quebrados, perda dos meus filhos, guerra, tuberculose, marxismo, alcoolismo, neurose e anos de escrita freelance. Sou apenas malvado e teimoso demais para matar, creio eu.[1]

Interessado por espiritualismo (não necessariamente Espiritismo), ilusões, charlatanismo e psicologia social, Gresham trabalhou todos esses temas – mais o alcoolismo – n’O Beco das Ilusões Perdidas, recentemente adaptado para o cinema outra vez, agora pelas mãos de Guillermo del Toro. Hoje, o filme está disponível no Star+.

O Beco do Pesadelo (2021), pois, é um belíssimo filme. Situada no final dos anos 1930 e início dos anos 1940, a narrativa acompanha Stan Carlisle (Bradley Cooper), um jovem esperto com tendências à picaretagem que tenta voar perto demais do Sol ao se envolver com a psiquiatra Lilith Ritter (Cate Blanchett). Eis uma história noir de desgraçamento, território bem conhecido por Gresham.

Curioso, decidi ler O Beco das Ilusões Perdidas (publicado no Brasil pela editora Planeta, 2021) assim que saí do cinema, depois de assistir a Beco do Pesadelo. Ou melhor, no dia seguinte, após confirmar que o filme havia ganhado espaço na minha mente.

Comparando as duas obras – isto é, considerando suas diferentes mídias, mas não a noção tão tola quanto ingênua de “fidelidade” –, fica claro como del Toro potencializou seu texto-fonte para criar beleza.

Nighmare Alley, o filme, é um primor audiovisual (que, no momento, concorre ao Oscar de Melhor Fotografia). Quem recebe esse mérito é o dinamarquês Dan Laustsen, com quem del Toro já havia trabalhado nA Forma da Água (2017).

Sua homenagem à estética noir é explícita, porém a obra vai além do pastiche seguro para trabalhar suas cenas com um encanto estonteante. Há muita chuva, muitas luzes e, principalmente, muita escuridão. A união entre esses elementos, pincelada com carinho em cada frame, potencializa a narrativa.

Nighmare Alley, o livro, é cativante, mas limitado. Outrora chocante, seu impacto já perde força, apesar de a temática permanecer atual, tendo em vista a atemporalidade do charlatanismo (que existirá enquanto o ser humano pisar na Terra).

Obviamente, não podemos exigir que um livro seja um primor audiovisual. Entretanto, podemos sempre debater seu devido nível e compará-lo com sua contraparte de outra mídia. Nesse caso, há uma discrepância entre o romance e o longa-metragem, e o mérito fica com os responsáveis pelo segundo.

Isso porque, em que pese o apelo (e a autenticidade) da narrativa de Gresham, ela é um tanto unidimensional. Seus personagens, caricatos e/ou pouco surpreendentes, perdem espaço em um desenvolvimento cuja previsibilidade não é o maior problema. Voltaremos a esse ponto.

Novamente, não se trata de um romance ruim, ainda mais se ele carrega algum valor 76 anos depois de sua publicação. Porém, creio que Gresham sequer discordaria de uma avaliação mais criteriosa de seu livro, que não se destaca por estilo, enredo ou caracterização.

  • Não tenho ilusões sobre mim como um ‘autor’ – sou um escritor de aluguel que aborda a escrita como um ofício tal qual a marcenaria. Dei muitas aulas sobre a escrita de contos; os alunos provavelmente aprenderam muito pouco, mas eu sempre aprendi muito, ouvindo a mim mesmo falar sobre como a ficção curta deve ser montada.[2]

À época, O Beco das Ilusões Perdidas foi reconhecido pela maneira como trabalhou o vocabulário daquele contexto nem rural nem urbano dos circos itinerantes. O prefácio de Nick Tosches, contido na edição da Planeta, contextualiza esses méritos (que podem se perder na tradução).

Se até o momento tratamos apenas das competências audiovisuais do filme de del Toro, também precisamos registrar – e gostaria de fazê-lo de forma mais elegante, em vez de dizer isso – como uma adaptação pode elevar os méritos e amenizar os aspectos mais fracos de um texto-fonte.

O Beco do Pesadelo faz isso por meio de cortes conscientes, que removem o subenredo de líder religioso do protagonista e não elucidam seu passado. Com menos, faz-se mais. O filme também consegue mostrar os truques de Stan para “ler mentes”, ou seja, sem precisar explicá-los (nas descrições meio técnicas, meio rocambolescas que compõem um ponto baixo do livro).

Depois da limpeza, enfim, o tempero: inserções simbólicas como a do bebê Enoque engrandecem a narrativa, amarrando-a.

Por último, mas não menos importante, Rooney Mara. Ou melhor, sua personagem, Molly, crucial para o enredo. No romance, testemunhamos uma mulher tão frágil quanto estúpida, limitada a suplícios e angústias infantilizados. O longa-metragem enobrece sua vulnerabilidade e, a partir disso, permite um envolvimento muito maior.

Já me estendi demais neste texto, pelo qual devo pedir perdão, não tendo mais tempo de abreviá-lo. Na pior das hipóteses, O Beco do Pesadelo é, literalmente, espetacular. Deve ser visto à noite, no escuro e, se possível, com som alto e tela extensa.

007 e o Gângster Ciumento

Extraído da edição 105 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Lana Turner, Johnny Stompanato e Cheryl Crane (1958)

Aqueles familiarizados com a quadrilogia de Los Angeles do escritor James Ellroy (1948) talvez conheçam o protagonista da nossa história de hoje – e não me refiro ao 007.

Vamos ao contexto: entre a segunda metade da década de 1980 e a primeira de 1990, Ellroy resgatou a literatura policial noir e escreveu quatro romances que se passam em Los Angeles, entre 1946 (Dália Negra) e 1958 (Jazz Branco).

Todos misturam pessoas e casos reais com personagens e resoluções fictícias; aquilo que pessoas normais chamam de ficção histórica; e teóricos pós-modernos, de alguma outra coisa.

  • No Brasil, os quatro foram publicados na Coleção Negra da Record, facilmente encontráveis em sebos. O editor se encontra no terceiro (e a-man-do). Acima de tudo, trata-se de obras com caracterização invejável: amamos acompanhar seus personagens extremamente falhos.
  • Terceiro, por sinal, adaptado no filmaço Los Angeles: Cidade Perdida (1997). No momento, disponível no Prime Video.
  • Quem já jogou L.A. Noire também conhece boa parte desse universo, considerando como o jogo se inspirou na literatura noir e, especificamente, no trabalho de Ellroy.

Pois bem, assim chegamos em Johnny Stompanato, um gângster com nome de caricatura. Stompanato serviu à Marinha Americana no Japão durante a Segunda Guerra, converteu-se ao Islamismo para se casar com uma turca, teve um filho com ela, abandonou ambos e rumou a Los Angeles em 1947. Então viveu, ou melhor, correu por um outro casamento, que durou três meses.

Stompanato se estabeleceria como proprietário de uma humilde loja de cerâmica e esculturas em madeira, mas, sabe-se lá como, manteria um vínculo com o poderoso gângster Mickey Cohen, ex-boxeador baixinho (1,65 m) crescido em meio à máfia judaica de Nova York e estabelecido em Chicago – mas já deslocado para Los Angeles.

A partir desse encontro, Stompanato faria algo mais dinâmico que administrar cerâmica, consolidando-se como braço direito, guarda-costas e matador de aluguel de Cohen, líder do crime local. Ambos são figuras frequentes na quadrilogia de James Ellroy, com grande participação no segundo, O Grande Deserto (1988).

A vida de Johnny Stompanato é cheia de histórias curiosas, bem como a sua morte, isto é, esfaqueado pela enteada de 14 anos, que defendia a própria mãe – ninguém menos que Lana Turner – dos ataques do mafioso.

E como um gângster truculento chegaria a namorar Lana Turner, grande estrela da Era de Ouro de Hollywood(land)? Um misto de sorte (azar), oportunidade e decadência da atriz, que, como podemos imaginar, viveu altos e baixos com o sujeito.

Até o momento, nada do que relatamos chega perto de um James Bond, não é mesmo? Pois bem, em 1957 (portanto, para fins cronológicos, anos antes do primeiro filme de 007), Lana Turner gravava Vítima de uma Paixão (Another Time, Another Place) com Sean Connery na Inglaterra.

Stompanato não gostou da ideia de ver sua namorada contracenando com um grandalhão (1,88 m) escocês, muito menos dos rumores de que eles teriam um affair, e fez aquilo que lhe parecia coerente: voou para a Inglaterra armado e ameaçou o ator dentro do set de filmagem, em Hertfordshire. Não sem antes ligar para Turner e ameaçá-la (e, obviamente, ouvir – e ignorar – apelos para que não causasse nada disso).

Acontece que, além de grandalhão (e escocês), Connery era faixa preta em karatê e tinha história como bodybuilder. Stompanato não teve chance: seu braço armado foi torcido pelo futuro James Bond, que, enquanto neutralizava o risco do tiro, desferiu-lhe um soco suficiente para acabar com a brincadeira ali mesmo. A partir daí, a história virou problema da Scotland Yard, que deportou um gângster humilhado.

  • O desempenho de Connery no embate foi tão supremo que o agente Milton Bolotti, estupefato, logo telefonou à Eon Productions e cravou: “temos o nosso protagonista para os romances de Ian Fleming”. Ok, essa parte a Enclave inventou 100%. Não repassar.

Johnny Stompanato seria assassinado logo no ano seguinte, mas Cheryl Crane – a filha de Turner – acabaria inocentada em um caso escandaloso e tremendamente documentado. Mickey Cohen arcou com os custos do funeral e divulgou cartas de amor trocadas entre Lana Turner e seu escudeiro, tentando melhorar a imagem do morto.

Passeio musical de Concorde

Extraído da edição 104 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Há alguns meses, na Enclave #98, fizemos uma digressão a respeito do lançamento de um quarto filme Matrix (que, por sinal – e coincidência –, estreia hoje). Tratamos de “globalização e uma ideia otimista de mundo digital” por meio do músico japonês Towa Tei, mais especificamente na música ‘Technova‘.

Pois bem, achamos ou fomos achados pela globalização otimista absoluta em forma de disco. Refiro-me ao álbum Jet Sounds (2000), do italiano Nicola Conte.

Nele, testemunhamos um europeu fazendo seu acid jazz com influências do mundo inteiro, inclusive – e principalmente – do Brasil. Esse eletrônico suave resgata os anos 1960 (daí a clara influência da bossa nova) e os embebeda em doses eletrônicas de negroni, rusty nail e bloody mary.

Podemos falar em gêneros musicais (acid jazz? Future jazz? Latin jazz? Lounge?), mas é muito mais efetivo tratar de sentimentos.

  • Jet Sounds é uma festa na piscina com gente bronzeada, coquetéis irrestritos, sem celulares e sem fila para qualquer banheiro.
  • Jet Sounds é um clube sofisticado ao qual você não teria acesso na vida real.
  • Jet Sounds é um passeio de Concorde: um sonho encerrado; uma máquina do futuro vivendo no passado. (E adivinha o destino do primeiro voo comercial do Concorde…)
  • Jet Sounds é uma relação tão confusa quanto prazerosa entre espaço e tempo (“chegue antes de partir“).

Próximo dos 30 anos, naturalmente carrego alguma saudade do início dos anos 2000 – até porque, convenhamos, chega de resgatar absolutamente qualquer coisa da década de 1990; está na hora de o passado virar a página.

Esse zeitgeist pré-11 de setembro (de que tratamos na edição 98 e que agora encapsulamos na produção de Nicola Conte) também tem seu apelo por servir como oposto ao sentimento de fronteiras fechadas, desconfiança incessante, polarização política e mal-estar tecnológico com que nos habituamos nos últimos anos, por motivos diversos.

Jet Sounds é a nossa descoberta tardia de 2021 e uma recomendação sólida para o próximo ano. Obrigado por acompanhar a Enclave: nos reencontramos em algumas semanas!


Quando a ficção científica passa do ponto

Extraído da edição 103 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Já tratamos de ficção científica, diretamente ou indiretamente, muitas – várias! – vezes neste enclave. Temos provas.

Resgataremos duas menções específicas, porque elas se unirão.

Recentemente, como boa parte do planeta, assistimos à nova adaptação de Duna, com grande entusiasmo. Relatamos a experiência na Enclave #101. Embalado por isso, este editor deu continuidade à leitura da saga, abrindo o Messias de Duna (1969) – segundo da série – há muito comprado e esquecido na prateleira.

Agora, uma pausa.

Outra de nossas lembranças recentes da ficção científica – gênero que, vale lembrar, adoramos – consiste nas palavras ácidas do sempre azedo (e ébrio) Raymond Chandler, que também adoramos.

Na Enclave #98, graças aos estudos de Bráulio Tavares, descobrimos o escárnio de Chandler em relação à sci-fi. Em uma carta a seu agente literário datada de 1953, o autor criou sua paródia:

Fiz meu checkout com K19 em Adabaran III e atravessei a escotilha de crumalite no meu modelo 22 Sirius Hardtop. Encaixei o timejector em segunda e fui abrindo caminho entre a relva azul de manda. Minha respiração congelou em pretzels cor-de-rosa. Acionei as barras de calor e os Brylls dispararam em cinco pernas usando as outras duas para produzir vibrações de crylon. A pressão era quase insuportável, mas eu detectei a variação no meu computador de pulso através dos cisícitos transparentes. Apertei o gatilho. (…)

Chandler concluiu, incisivo: “Pagam dinheiro vivo por essa porcaria?”.

Agora, de volta a Messias de Duna, de Frank Herbert. Sua missão é difícil, tendo em vista que Duna (1965), o precursor, introduz um universo fascinante, pincelando um futuro interplanetário altamente tecnológico, porém (grosso modo) analógico e feudal. Além disso, o universo contém temáticas de religião, misticismo e substâncias psicotrópicas.

Portanto, muitas peças são necessárias para sustentar essa obra – e não deve ser fácil manter tal equilíbrio, cuja nascente ostenta uma criatividade impressionante. Não é fácil escrever Duna, e não seria fácil escrever Qualquer Coisa de Duna: Herbert desfilou méritos enormes.

Pois bem, na página 110 (ed. Aleph, 2017) de Messias de Duna, lemos o seguinte trecho:

— Eu também trouxe o acessório de pulsossincronização, milorde. — arriscou Korba. Obviamente sentira a tensão cada vez maior entre Paul e Stilgar, e isso o perturbara.

Stilgar balançou a cabeça de um lado para o outro. Pulsossincronização? Por que Paul queria que ele usasse um vibrossistema mnemônico com um projetor de shigafio? Para que procurar dados específicos nas crônicas? Eu trabalho para os Mentats! (…)

Não dá.

Ninguém consegue ser Nabokov o tempo todo, mas… não dá. Stilgar, eu não sei por que Paul queria que você usasse um vibrossistema mnemônico com um projetor de shigafio. Eu também não consigo me importar, Stilgar.

Seja por miopia, seja por pressa, a caricatura e o personagem se encontraram. Eis aí um trecho doloroso, capaz de romper qualquer catarse.

Para ser justo, não é representativo da obra como um todo, embora, a bem da verdade, também não seja tão isolado. De imediato, fez lembrar a patada de Chandler – ele próprio muito mais preocupado com estilo e caracterização.

Já falei que adoramos ficção científica?

Espionagem, traição, adaptação

Extraído da edição 102 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Selo soviético em homenagem a Kim Philby, o traidor (muito) inglês. [WikiCommons]

1. O livro A Spy Among Friends, de Ben Macintyre, vai se tornar uma minissérie estrelada por Guy Pearce (L.A. Confidential; Memento) e Damian Lewis (Billions; Era uma vez em Hollywood).

2. Nunca publicado no Brasil, A Spy Among Friends é um belo livro. Trata do agente duplo Kim Philby (mais sobre ele logo abaixo) e de sua amizade com Nicholas Elliott. Ambos eram espiões do MI6 durante a Guerra Fria. Portanto, a notícia é animadora.

3. Já usamos um trecho de Agente Zigzag, do mesmo autor, na Enclave #78. Este cobre a história de Eddie Chapman, agente duplo durante a Segunda Guerra Mundial – e foi publicado no Brasil pela Record, em 2010. Chapman era um marginal beberrão e picareta extremamente ativo: todas esses traços o transformaram em um grande espião a serviço dos Aliados, enganando o serviço secreto alemão com consistência. Agente Zigzag também é um baita livro de não ficção.

4. Também já tratamos de outro livro de Macintyre na Enclave: Adam Worth: O Napoleão do Crime, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, em 2000. Worth foi um ladrão absoluto – não só o Napoleão, mas também o Pelé do crime. Brilhante, calculista e incrivelmente não violento, ele estendeu seu portfólio de atividades irregulares a diversos países ainda no século 19, inspirando o prof. Moriarty de Arthur Conan Doyle. Detalhamos a trajetória de Adam Worth em duas partes: 1 e 2. Naturalmente, consideramos O Napoleão do Crime outro ótimo livro.

5. Agora sim, de volta a Kim Philby. A sua história é uma das mais espetaculares do século 20, afinal Philby é um dos maiores traidores da história. Também já a detalhamos neste enclave, mais especificamente na edição #15. Com o perdão do autoplágio:

Nascido na Índia quando essa ainda atendia por Índia britânica, Kim Philby foi um espião dos mais altos rankings da inteligência britânica. Não à toa, ele se tornou cavaleiro ao receber um OBE na década de 1940, com apenas 34 anos.

Servindo ao MI6 por décadas, Philby chegou perto de se tornar o diretor da instituição. Problemas internos o fizeram se demitir do serviço de informações em 1951, quando passava por forte investigação por parte de seus colegas, além do MI5. Somente nos anos 1960, foi confirmada a temerosa suspeita de que Kim Philby havia sido, por todo esse tempo, um agente duplo que servia tanto à KGB quanto ao NKVD.

Por décadas, ele comprometeu colegas, missões e supostos amigos.

6. A trajetória de Philby (e dos “Cambridge Five“) exclama por uma adaptação digna. Se a minissérie anunciada dará conta disso, não sabemos; mas o ânimo é justo. Desde que li A Spy Among Friends, torcia para que alguma produtora endinheirada abraçasse a tarefa.

7. Sobre espiões na Guerra Fria, O Espião Inglês (The Courier) foi finalmente lançado este ano, após uma leva de atrasos por conta da pandemia. Dirigido por Dominic Cooke e estrelado por Benedict Cumberbatch, o filme se ancora na história real de Greville Wynne, empresário-tornado-espião que chegou a ser descoberto – e preso – pela KGB. No momento, está disponível no Prime Video. É um belo filme, ao menos para quem se anima com a temática.

8. Curiosamente, O Espião Inglês é o terceiro filme em que Cumberbatch se envolve com espionagem – que eu me lembre. N’O Jogo de Imitação (2014), no qual interpreta Alan Turing, inclusive, há uma mistureba narrativa com os espiões-traidores de Cambridge, nesse caso envolvendo John Cairncross (“mistureba narrativa” porque, ao contrário do que o filme retrata, a relação de Cairncross com os soviéticos só viria a ser descoberta muito depois da Segunda Guerra).

9. O outro filme? Nada menos que O Espião que Sabia Demais (Tinker Tailor Soldier Spy, 2011), uma beleza contemplativa – ou seja, lenta – adaptada do romance homônimo (1974, publicado no Brasil pela Record, 2012) de John le Carré (1931-2020), uma lenda da narrativa de espionagem. Como se sabe, ele próprio foi um agente do MI5 e do MI6 nas décadas de 1950 e 1960. O Espião que Sabia Demais (tanto filme como livro) aborda a espionagem de maneira muito mais realista, característica típica da obra de le Carré.

10. A carreira de John le Carré na espionagem foi destruída por conta da traição de… Kim Philby. A Spy Among Friends deve estrear no segundo semestre de 2022.


Um fato bônus e perifericamente relacionado: encontrei o livro abaixo, de 1946, capa dura, extremamente conservado, por R$ 22,61. W. Somerset Maugham (1874-1965) também trabalhou no serviço secreto inglês, mas ao longo da Primeira Guerra Mundial. O Agente Britânico (Ashenden: Or the British Agent), parcialmente autobiográfico, foi publicado em 1927.