WALL-E: poesia visual

Extraído da edição 109 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Há 14 anos, em junho de 2008, a animação WALL-E estreava nos cinemas. Fui conferir a contragosto, afinal não me interessava muito por animações e, principalmente, vivia o apogeu da insolência adolescente. Aos 16 anos, somos todos intragáveis.

Havia ganhado ingresso porque participava de um projeto (na antiga Gazetinha, suplemento infantojuvenil da Gazeta do Povo) no qual estávamos aprendendo – e escrevendo – sobre cinema. Assim, compareci à sessão do filme dirigido por Andrew Stanton, com roteiro de Stanton e Jim Reardon.

Rabugento e com as expectativas baixas, eu não poderia ter me surpreendido mais. WALL-E é uma produção encantadora, capaz de desmontar qualquer guarda alta. Porém, eu nunca havia revisitado essa obra da Pixar enquanto adulto, e só o fiz, sem qualquer motivo específico, na última semana.

Pois bem, com grande satisfação (e certo alívio), renovei minha apreciação – novamente cético, novamente cínico, pois apenas um lunático é capaz de confiar nas impressões de sua versão de 16 anos.

A sequência inicial de WALL-E é famosa, não por acaso. Não há qualquer diálogo por 22 minutos. Nesse tempo, conhecemos Wall-E, um robô senciente compactador de lixo. Solitário em uma Terra abandonada – e repleta de seu material de trabalho –, ele mantém hábitos, objetos e gostos humanos no ano 2805. E uma barata.

Wall-E até dispõe de contemplação estética, assistindo a filmes (e reproduzindo seus movimentos) por meio de fitas coletadas em seu ofício. O enredo se desenvolve a partir da chegada de EVA, outro robô – muito mais moderno e funcional – enviado pela nave habitada pelos seres humanos para procurar algum resquício de vida no planeta. Androides sonham com paixões elétricas?

Diante do silêncio, portanto, a narrativa avança pelos movimentos dos personagens e pelo primor de caracterização. De cara, WALL-E se apresenta como uma mistura de 2001: Uma Odisseia no Espaço com Charles Chaplin e/ou Buster Keaton (inspirações explícitas dos produtores).

Os movimentos, roteirizados e executados com maestria, preterem o uso de palavras, o que confere certa universalidade – e atemporalidade – ao longa-metragem. Por sua vez, a caracterização não seria um problema para a Pixar, estúdio devidamente capacitado para criar fofuras das mais diversas formas.

Assim, logo nos apegamos a Wall-E e permanecemos instigados por aquele contexto pós-apocalíptico. Quando os dois protagonistas encontram os seres humanos de 2805 (spoilers?) na nave Axiom, estes são… talvez irreconhecíveis não seja a melhor palavra. Mas engordaram a ponto de perder os movimentos – locomovem-se em cadeiras flutuantes – e não conseguem resolver problema algum por conta própria. Estão sempre conectados.

É claro que o filme carrega uma mensagem (e que a Enclave odeia mensagens), mas vamos lá. Primeiro, a obra se sustenta por si só, uma vez que o drama do apaixonado Wall-E é suficientemente estimulante.

Segundo, dentro da mensagem explicitamente ecológica – que, né… digamos que tenha um ponto –, há outra sutileza singela. Despreocupado em moralizar e ensinar de forma tão direta, WALL-E não retrata os seres humanos como perversos, mesquinhos, monstros indomáveis. O longa sequer se preocupa em detalhar a trajetória da Terra até o estado apresentado.

Isso porque a animação representa o ser humano não como porco, mas apenas… distraído. À medida que se afasta da dependência da tecnologia, que enfrenta os próprios problemas com diligência e procura atentar-se aos dilemas que o afetam, o indivíduo desperta.

Um filme lindíssimo – elegante, comovente e bem-humorado –, que certamente exigiu um enorme conhecimento de humanidade para nos entregar um amável robô compactador de lixo apaixonado por um iPad voador.

Mission Hill

Extraído da edição 45 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Mission Hill
Mission Hill: tão legal que não foi pra frente. Ou legal porque não foi pra frente?

Mission Hill foi uma animação produzida pela Warner Bros entre 1999 e 2000 por Bill Oakley e Josh Weinstein (não aquele Weinstein…), ambos promissores roteiristas de Os Simpsons à época. A série retratava o cotidiano de um grupo de amigos num bairro de uma metrópole norte-americana indefinida – uma mistura de Nova York, Boston, Portland e San Francisco. Lá, rejeitados sociais, figuras caricatas e esquisitos em geral vivem em relativa harmonia.

Os protagonistas são Andy, um jovem cartunista frustrado e despreocupado que passa seus dias bebendo, trabalhando num emprego sem perspectiva numa loja de colchões e recebendo cartas de rejeição de revistas por seus quadrinhos. Kevin é seu irmão mais novo, um gênio completamente caxias que se muda para a cidade para viver com seu irmão e sonha em entrar nas melhores universidades do país enquanto termina seus estudos numa escola onde ninguém, nem os professores, se importa com nada.

A casa onde moram ainda conta com Jim, amigo de Andy, tão doidão e folgado quanto ele, com a diferença de ter um emprego promissor enquanto jovem cool em uma empresa de publicidade. Além dele, lá vivem Posey, a amiga esotérica de yoga, massagem e vegetais orgânicos (Phoebe Buffay?) e Stogie, cachorro de infância dos dois irmãos, sequelado após anos lambendo cervejas e cigarros caídos no chão. Na vizinhança do prédio estão um casal judaico-latino de artistas ativistas com seu bebê e um casal gay tão adorável quanto briguento, dono de uma lanchonete local.

Mission Hillera diferente por representar e escarniar a contracultura e tratar com franqueza de assuntos pouco abordados em outras animações, especialmente Os Simpsons. Na maioria dos desenhos, os problemas aparecem, se desenvolvem e são resolvidos no espaço de 30 minutos, enquanto em Mission Hill os personagens se encontram em cenários sem solução clara, com angústias típicas dessa fase de transição entre a escola/faculdade e a vida adulta. Temáticas “reais demais” para os Simpsons, por exemplo.

Outro detalhe é que na animação de Matt Groening não havia personagens com idade entre crianças e adultos, e os poucos adolescentes (Jimbo e seus amigos) raramente tinham importância no enredo das histórias. Mission Hill falava a língua dos jovens esquisitos e dos descolados – e tirava onda com hipsters antes disso se tornar a thing. Continha referências diversas e sutis – de Beck a Kafka ao Plano 9 do Espaço Sideral –, além de ser visualmente muito bonita. A trilha de abertura era da banda Cake.

Mission Hill
Esteticamente, a série também fugia do padrão, com uma paleta de cores fluorescentes e contornos maldefinidos.

Mesmo com tudo isso, a série não durou nem um ano, sendo cancelada antes mesmo de completar uma temporada. Então o que deu errado? Os produtores Oakley e Weinstein culpam a Warner: na época, o canal ainda buscava uma identidade e, na tentativa de brigar com os concorrentes, colocou Mission Hill no horário nobre, junto de programas como The Jamie Foxx Show e The Steve Harvey Show, que em nada se assemelhavam ao humor absurdo e melancólico da animação.

Com audiência péssima para o horário, foi rápida e completamente descartada: a série foi cancelada antes de terminar a produção de sua primeira temporada, e antes mesmo de serem exibidos todos os episódios que haviam sido produzidos. (À Firefly!

Todos queriam ter seu próprio Simpsons, e com isso a Warner Bros ignorou a proposta de Mission Hill de ser uma alternativa à família amarela, e não um competidor. A série só voltou à TV anos depois, com o bloco de desenhos-que-não-são-para-crianças Adult Swim, onde de fato se encaixava. No Brasil, foi transmitida no Adult Swim pelo Cartoon Network entre 2005 e 2008, junto de outras animações excêntricas como OblongsClone HighHarvey, O Advogado e Os Universitários.

Atualmente, é fácil encontrar todos os 13 episódios no Youtube – aqui ou aqui –, e assim Mission Hill sobrevive com seu pequeno culto de seguidores. Legal, honesto, diferente demais para seu tempo, uma joia que não teve sua chance de brilhar, mas que permanece ainda mais especial por conta disso.