David Bowie: caos e transcendência

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No set de The Man Who Fell to Earth (1976) — David James/Taschen.

É impossível não pensar em David Bowie: sensações após Moonage Daydream, um não documentário totalmente Bowiecêntrico.

Era noite de sexta-feira (16/09) quando cheguei ao Imax para assistir a Moonage Daydream (2022), documentário de Brett Morgen dedicado a David Bowie. Com descrição pretensiosa (“não é um documentário, mas uma odisseia, uma jornada etc.”), mentes cínicas poderiam torcer o nariz se diante deste mesmo nariz uma tela gigantesca não entregasse belas e raras cenas dos anos 1970 acompanhadas pelo remix de ‘Hallo Spaceboy‘ dos Pet Shop Boys em decibéis ensurdecedores.

A brincadeira era coisa séria.

Ao longo das pouco mais de duas horas seguintes, ouvimos, assistimos e acompanhamos Bowie – e tão somente ele. Sem talking heads (o recurso, não a banda… mas também sem a banda), sem informações, sem dados, sem capas, sem vendas, sem comitivas.

Não aprendemos absolutamente nada sobre qualquer disco, músico, gravação. Não escutamos qualquer anedota sobre um baixista de 1969, tampouco vemos algum vizinho octogenário descrever o pequeno David Jones. No máximo, descobrimos algo sobre o meio-irmão, Terry, e sobre a segunda esposa, Iman – sempre e tão somente a partir do próprio Bowie.

Ninguém fala, a não ser David Bowie (e alguns fãs, na década de 1970, à beira de um AVC por êxtase). Não se trata de um documentário informativo, malemal de um documentário. A execução conquistou o direito à pretensão: que odisseia fantástica; basta sentar-se e absorver.

Me obriguei a assistir outra vez, já na quarta-feira (21), lamentavelmente o penúltimo dia de exibição no Imax de Curitiba. Poderia reassistir outras tantas vezes com a mesma leveza. Dias depois, não consigo parar de ouvir a trilha sonora, relembrando cena por cena – outros amigos vivem a mesma situação.

Se a dimensão visual do filme oferecesse apenas uma tela preta, já valeria o ingresso. Algumas músicas de Bowie ganharam uma mixagem especial para o longa – outras simplesmente estão limpas e altas o suficiente –, e escutá-las no Imax foi uma experiência fantástica. É impressionante, no sentido mais puro e literal da palavra, como o áudio envolve e permite um contato renovado com o material.

  • Nunca havia realmente gostado de ‘The Jean Genie‘, ‘Aladdin Sane‘ e ‘Cracked Actor‘, por exemplo, na intensidade trazida por Moonage Daydream. Possibilitar essa revisão (e renovação) da experiência é encantador por si só.

Ademais, o trabalho de mixagem é primoroso ao trazer fluidez. Músicas diferentes, sons e falas se misturam em um só rio de imersão. A quem não assistiu no cinema, sugerimos com ênfase a experiência num sistema de som decente – nada de ver no notebook.

Por sua vez, as imagens intercalam entrevistas antigas, shows, clipes, filmes e bastidores de todos estes, além de nos mostrarem diversas referências abraçadas por Bowie ao longo da vida. Brett Morgen separou oito semanas para organizar o material que tinha em mãos; naturalmente, o processo levou dois anos – e um infarto. A família do músico inglês colaborou integralmente com o projeto.

Para um nerdalhaço em Bowieismo – que já tenha chegado ao nível de gravações descartadas e documentários perdidos –, talvez não haja tantos momentos inéditos, muito menos informações novas. O que absolutamente não é o ponto, tampouco a tentativa.

Primeiro, pagamos pelo recorte, isto é, a arte suprema é a colagem, não o papel colado. Segundo, pouco interessa quem trocou as cordas do baixo quebrado em 1981 ou se o artista almoçou bife com fritas antes de gravar um single na Tunísia. Informações estão disponíveis e catalogadas em décadas de material produzido sobre David Bowie: já há diversos livros e documentários cobrindo fatos, aspectos técnicos, curiosidades e a mera punhetagem.

O que Moonage Daydream oferece é uma leitura da cosmovisão de Bowie – e sua maturação – a partir da melhor experiência sensorial possível. Acompanhamos o artista, já calibrado pelo Budismo, trafegando pela Ásia (em especial as cenas noturnas, estonteantes); ouvimos esse indivíduo ao mesmo tempo tão exposto e impenetrável discorrer sem pressa sobre a vida. Testemunhamos suas referências e nos deliciamos com elas.

Então, choramos ou seguramos lágrimas (na chuva!) com o fim – de Bowie, do filme, da nossa própria existência. Ambicioso, experimental e conceitual sem abandonar o palatável, esse não documentário inclassificável é a cara de David Robert Jones.

Baú: Joaquim Ferreira dos Santos

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Uma das mais deliciosas conversas furadas de 1958 foi o boato de que a carne bovina consumida entre o Rio e Minas Gerais estava contaminada – não por bactérias assassinas como a da vaca louca, muito menos por algum vírus pré-aidético, pois definitivamente os tempos eram mais delicados. A carne dos açougues da época estaria contaminada por enormes porções de uma vacina de hormônios femininos. No panic, gritavam os mais liberais, mas qual!…

Generalizou-se entre os machos cariocas o medo horripilante, não de morrer como os que deglutiram hambúrgueres na Inglaterra nos anos 90, mas de que o até então pacato e viril cidadão, após ingerir um acém, um filé, subitamente adquirisse, ainda na mesa de refeição, alguma característica graciosa da identidade fêmea. Inspirado pelo fait-divers, o trio Paquito, Romeu Gentil e José Gomes compôs, com lançamento no final de 58 para a farra de 59, a marchinha Boi da cara preta, cantada por Jackson do Pandeiro e Almira:

“Coitado do Valdemar
Está dando o que falar
Comeu carne de boi falou fino
E deu pra se rebolar
Mas que azar.”

Já era sofisticado entre os bem-pensantes dizer que a música de carnaval estava em decadência. (…)

Joaquim Ferreira dos Santos, Feliz 1958 (Ed. Record, 1997).