Dias Perfeitos: em que consiste uma vida bem vivida?

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Dias Perfeitos: em que consiste uma vida bem vivida?

Como essas coisas que não valem nada

e parecem guardadas sem motivo

(alguma folha seca… uma taça quebrada…)

eu só tenho um valor estimativo. [1]

Wim Wenders produziu grande beleza, e dessa vez em Tóquio. Este alemão é o diretor de Paris, Texas (1984) e de outros quatro filmes que seu amigo formado em Cinema te recomendou à toa (incluindo O Sal da Terra). Sua última obra, Dias Perfeitos (2023), acompanha um zelador japonês a viver uma rotina mundana — o que, logo questionaremos, talvez não seja um pleonasmo.

Hirayama, o protagonista (Koji Yakusho no mais alto nível), limpa banheiros. Com esmero, capricho, atenção. Ele acorda sempre do mesmo jeito; toma o mesmo café da manhã; locomove-se da mesma forma; mantém os mesmos hábitos (fotografia, jardinagem); descansa na mesma praça; banha-se no mesmo lugar; bebe o mesmo highball. Suas tecnologias já pararam no tempo, o que não demove seu prazer, uma vez que ele permanece entusiasta dos alimentos da alma, como música e literatura. [2]

Ao sair do cinema – pela primeira vez, pois acabei reassistindo dois dias depois –, os pômulos tremendo na contenção de lágrimas, retomei alguns questionamentos a que recorro com frequência. Isto é, sabendo que nosso tempo é finito, por que fazemos o que fazemos? O que significa aproveitar a vida?

Em outras palavras, em que consiste uma vida bem vivida? Algumas alternativas óbvias e cumulativas: viajar pelo mundo. Conhecer um grande amor (ou vários). Conquistar poder. Acumular dinheiro.

Qualquer indivíduo que já tenha vivido mais de meia hora neste planeta tem a humildade de não subestimar nenhum desses fatores e, ao mesmo tempo, reconhece que acima de todos eles reside o bem-estar volátil, intempestivo e eternamente angustiado de cada um. Viajar pelo mundo com um grande amor e muito dinheiro certamente ajuda, mas não garante satisfação alguma — não para sempre. Se Anthony Bourdain se matou, por que eu não me mataria?

Com maestria técnica e, principalmente, uma sensibilidade absurda, Dias Perfeitos nos permite absorver como “felicidade” é uma ideia complexa, contraditória e transitória. Mais que isso – a beleza se encontra em dois opostos complementares: (1) a repetição consciente e (2) a quebra inesperada, isto é, aquilo que não pode nunca ser planejado, esperado, calculado (seja o efeito do vento nas folhas, seja o frescor do contato com alguém indiferente às convenções sociais). Abraçar o primeiro ajuda a saborear o segundo.

Não se trata de um filme sobre “a beleza das pequenas coisas”, algo assim. Seu grande mérito é expressar de maneira tão singela como a alegria está contida na tristeza e vice-versa. Não há nada além do agora – o que não é uma frase motivacional, apenas descritiva – e nada existe além da nossa tão esquecida atenção.

E afinal, em que consiste uma vida bem vivida? Por ora, paramos para um interlúdio.

Interlúdio: sobre a redução da ética de trabalho

Aqui, vale mais do que nunca lembrar a anedota do pescador e do estudante de MBA, com tradução via DeepL e revisão nossa. A versão original dessa historinha partiu de outro alemão (!), Heinrich Böll. [3]

Um empresário americano estava no píer de uma pequena vila costeira mexicana quando um pequeno barco com apenas um pescador atracou. Dentro do pequeno barco havia vários atuns albacora grandes. O americano elogiou o mexicano pela qualidade do peixe.

O MBA americano de Harvard: quanto tempo você levou para pegá-los?

Pescador mexicano: só um pouco.

MBA: por que você não fica mais tempo fora e pega mais peixes?

Pescador: tenho o suficiente para atender às necessidades imediatas de minha família.

MBA: mas o que você faz com o resto do seu tempo?

Pescador, respondendo com um sorriso: durmo até tarde, pesco um pouco, brinco com meus filhos, tiro uma siesta com minha esposa, Maria, passeio pelo vilarejo todas as noites, onde tomo vinho e toco violão com meus amigos.

MBA, interrompendo impacientemente: olhe, eu tenho um MBA de Harvard e posso ajudá-lo a ser mais lucrativo. Você pode começar pescando várias horas a mais todos os dias. Depois, você pode vender os peixes extras que pescar. Com o dinheiro extra, você pode comprar um barco maior. Com a renda adicional que esse barco maior trará, em pouco tempo você poderá comprar um segundo barco, depois um terceiro, e assim por diante, até ter uma frota inteira de barcos de pesca.

Orgulhoso de seu raciocínio aguçado, ele elaborou com entusiasmo um grande esquema que poderia trazer lucros ainda maiores:

— Então, em vez de vender seu pescado para um intermediário, você poderá vender seu peixe diretamente para o processador, ou até mesmo abrir sua própria fábrica de conservas. Eventualmente, você poderia controlar o produto, o processamento e a distribuição. Você poderia deixar esse pequeno vilarejo costeiro e se mudar para a Cidade do México, ou até mesmo para Los Angeles ou Nova York, onde poderia expandir ainda mais seu empreendimento.

Pescador: mas, señor, quanto tempo isso vai levar?

MBA, após um rápido cálculo mental: provavelmente cerca de 15 a 20 anos, talvez menos se você trabalhar muito duro.

Pescador: e depois, señor?

MBA, rindo: essa é a melhor parte. No momento certo, você anunciaria uma IPO (Oferta Pública Inicial), venderia as ações da sua empresa ao público e ficaria muito rico, ganharia milhões.

Pescador: milhões, señor? E depois?

MBA, lentamente: depois, você se aposentaria. Aí se mudaria para uma pequena vila costeira de pescadores, onde dormiria até tarde, pescaria um pouco, brincaria com seus filhos, tiraria uma siesta com sua esposa, passearia pela vila à noite, onde poderia tomar um vinho e tocar violão com seus amigos.

Criado via Bing/CoPilot.

Assombrados

Morrer de trabalho, como sugere a anedota acima, é apenas um dos caminhos. A verdade é que desperdiçamos a vida em jogos de vaidades, travamos diante do risco e congelamos por medo de aceitação. Por fim, preenchemos a existência com ruído e feiura. [4]

Não existe fórmula, tampouco algo mais solúvel que “felicidade”. [5] O que diabos é a felicidade? Quem disse que devemos perseguir felicidade? A vida é o que é, os seres humanos são humanos e fazemos o que fazemos — simplesmente. A magia acontece nas pequenas e inesperadas fissuras, nas grandes sensações de momentos discretos, minúsculas quebras da nossa percepção viciada. Repetição e rotina – seja para o zelador de Dias Perfeitos, seja para o editor do RelevO – não são um problema, e definitivamente não são o problema. Toda concentração traduzida em movimento é bela, e o que nos mata é a falta de atenção.

Eis algumas premissas pessoais para tentar, afinal, responder à pergunta principal deste texto. Adoraria “conhecer o mundo”, já uma simplificação (é possível conhecer o mundo?), e certamente associaria esse traço a uma vida bem vivida. Por lógica, isso significa que alguém imóvel leva uma vida menos interessante? Não necessariamente. Vastidão não implica profundidade.

É perfeitamente possível estar em outro lugar e não se submeter a nenhuma ruptura (o famoso brasileiro no estrangeiro procurando churrascaria). É perfeitamente possível se arriscar em uma novidade e continuar apenas um mala em diferentes continentes.

Mas esses são só dois exemplos. Estar em outro lugar favorece pequenas e grandes rupturas, e rupturas em geral favorecem a sensação de estar vivo – o que, por fim, favorece crer que não desperdiçamos a vida. É perfeitamente possível ter rupturas no próprio bairro onde se vive (e, claro, ir para longe tende a refrescar nossa visão local). A mera ideia de experiência já foi tão commoditizada que, por si só, cada um só pode ser seu próprio avaliador de genuinidade.

Como no poema de T.S. Eliot, “o fim de toda nossa exploração será chegar ao ponto de partida”. [6] Explorar o mundo externo é ótimo, mas e aí? Há todo um universo interior para cavucar. Encarar o banquete de consequências é duro porque nossas vidas intrinsecamente carregam um conjunto de vidas não vividas. O que nos aflige são as portas não abertas, principalmente aquelas já trancadas – ainda mais quando vemos outros abrirem. Somos assombrados por elas todos os dias.

Aceitar isso é, de fato, complicadíssimo. Se fosse fácil estar em paz consigo mesmo, não existiria… na verdade, não existiria muita coisa – quase nada! O que cabe a nós é não desperdiçar a nossa atenção, externa e interna. Preparar o café da manhã; limpar o banheiro; conversar com um desconhecido; fundar uma empresa; escalar uma montanha: não se trata do que fazer, mas como. Dias Perfeitos enriquece esse impasse.

De banheiro em banheiro – sem respostas –, seguimos.

Notas

[1] “A imagem perdida”, Mário Quintana.

[2] Aqui, o parágrafo inteiro do editorial: “O RelevO, este zelador sensível que chora de alegria sozinho no carro e de tristeza ao abraçar a família, sabe que a alegria reside na tristeza; e a tristeza, na alegria. Não somos os anjos de Asas do Desejo que leem pensamentos e se solidarizam com a melancolia humana — somos banalmente humanos e periódicos. Não há muito o que fazer além de, bom, continuar fazendo. Afinal, nosso tempo é finito: por que fazemos o que fazemos? O que significa aproveitar a vida? Em que consiste uma vida bem vivida?”.

[3] Somando com Wim Wenders, eis a agradável surpresa de que ao menos dois alemães parecem compreender que a vida é mais que eficiência.

[4] Compartilhamos o Universo com aberrações como museus de cera; bonecos Funko Pop; Blink 182; programas de auditório de TV aberta e memes corporativos.

[5] What is happiness? It’s a moment before you need more happiness.

[6] Aqui a versão traduzida por Ivan Junqueira.

Cowboy Bebop

Extraído da edição 90 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Deve fazer dez, onze ou nove anos que me mandaram assistir a Cowboy Bebop (1998-1999) pela primeira vez. Àquela altura, portanto, já não seria um exagero definir a animação de Shinichirō Watanabe como um clássico. Entretanto, só fui me dedicar à série em 2020.

Para quem nunca ouviu falar ao longo desses 23 anos, Cowboy Bebop é um anime de ficção científica – com diversos elementos western e outros tantos noir – que acompanha uma tripulação de caçadores de recompensa viajando pelo espaço (uma premissa que Firefly repetiria pouco tempo depois). São apenas 26 episódios, cada qual com 24 minutos, incluindo introdução e encerramento (ambos fantásticos).

Cowboy Bebop funciona porque, emprestando palavras de Raymond Chandler, permite “saborear estilo, caracterização, reviravoltas de enredo”. Não há nada mais cativante que personagens bem construídos, e essa regra atinge não só os integrantes de tripulação, mas também vilões e demais elementos passageiros.

Melancólica, porém engraçada, essa série japonesa consegue tratar de miséria existencial, responsabilidade humana e tédio em um universo imaginativo e visualmente estimulante, com acenos a culturas diversas (inclusive a brasileira, e de forma explícita). É difícil não se apegar.

Por sua vez, a música não é um detalhe, mas um pilar criativo (bebop, oras). A trilha sonora da obra, um primor, foi composta por Yoko Kanno e executada pelos Seatbelts.

Tudo em Cowboy Bebop exala maturidade, capricho, poesia: isso de maneira alguma impede sua leveza. Impede, no entanto, que percebamos os 23 anos de distância entre seu lançamento e 2021. Não envelhece.

Por aqui, houve apenas um ano de contato. Podiam ter sido dez, onze ou nove, se eu tivesse dado atenção mais cedo. Para não repetir minha prevaricação (!), registro esse alerta. Cowboy Bebop cria um canto de carinho na cabeça e ali se assenta. Bang!

Walking tours

Extraído da edição 64 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Viajar (do Brasil) ao Japão é caro, muito caro. Passagem, hospedagem, câmbio, escalas, comida: há diversos estímulos ao desestímulo. Àqueles que não dispõem do orçamento necessário para essa locomoção resta o YouTube, onde é possível vivenciar as ruas de alhures com imagem, som e movimento em alta definição.

Refiro-me à quantidade crescente de walking tours disponível no YouTube. Neles, alguém caminha pela cidade portando uma câmera e captura o som ambiente do trajeto. Ao longo do caminho, não há qualquer intervenção, interação ou interatividade em geral: o transeunte anda; nós assistimos.

Deixar esse tipo de vídeo na televisão se tornou um hábito pessoal há tempos. Descobri a prática com o canal hongkongmap, em que um sujeito munido de boa vontade trafega por Hong Kong. Não há imersão maior para um vídeo, e os walking tours – espalhados pelo mundo inteiro – permitem sentir uma cidade distante com o encanto de seu movimento orgânico.

Rambalac talvez seja o mais conhecido em relação ao Japão, onde também vale acompanhar o Nippon Wandering TV (por exemplo, no popular Kabukicho). São diversos os contextos, mas me apetecem particularmente as caminhadas noturnas. A imagem de abertura foi retirada deste vídeo aqui, em Shibuya (Tóquio).

Em Singapura, há o Discovery Walking Tours TV. Por sua vez, o POPtravel surge em diversos países europeus, bem como o LivingWalks. De Nova York, conheço o IURETA e. O Nomadic Ambience acumula material (muito bem gravado) do mundo inteiro.

Como um irmão do ASMR, esse gênero de vídeo oferece uma contemplação relaxante; a passividade agradável de acompanhar com os olhos, converter a falta de letramento (de ideogramas, por exemplo) em recepção estética e escutar aquilo que a distância – com ou sem quarentena – não deixa alcançar.

Melancolia mortal da trilha sonora infantil

Extraído da edição 54 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Na infância, é improvável que consigamos mapear exatamente aquilo que nos cativa em um filme ou personagem. Nossa rede de conexões é confusa; nosso vocabulário, limitado. Talvez por isso mesmo aquilo que nos cativa cedo seja tão direto, instintivo e marcante; talvez, ao contrário, por isso seja mais frágil – não tenho ideia.

De todo modo, houve um momento do ano passado em que minhas emoções me pegaram de surpresa. Comia (um prato executivo de arroz, feijão, frango e salada) durante meu intervalo de almoço e utilizava meu fone de ouvido para gastar tempo no YouTube.

Levado pelo algoritmo, revi determinada cena de um desenho muito querido em razão do apego emergido e consolidado na infância. Ao assisti-la, subitamente senti aquele amortecimento dos pômulos que denuncia o despertar das glândulas lacrimais: eu estava segurando choro. O que não era ou é comum, muito menos diante de um prato de frango grelhado, em público, às 12h30.

A cena provinha de Cavaleiros do Zodíaco (Saint Seiya, 1986-1989), anime muitíssimo popular entre as crianças brasileiras dos anos 1990. Não lembrava sequer a última vez que havia visto qualquer coisa relacionada com a franquia, e ainda assim aquilo me derrubou de imediato.

Para quem não conhece ou não se recorda, Cavaleiros do Zodíaco, criação de Masami Kurumada (1953-), é puro melodrama. Os cavaleiros em questão usam armaduras e lutam em defesa da reencarnação da deusa Atena. A todo momento, os protagonistas, órfãos e irmãos de criação, precisam superar adversários mais fortes em seu caminho de sangue, suor e lágrimas.

Um amigo apanha pelo outro, sacrifica-se pelo outro, tenta (ativamente, às vezes comicamente) morrer pelo outro. Todos se motivam e lutam por uma causa maior, e no fim o personagem principal (Seiya), após ser surrado feito purê, sempre resiste e vence.

O universo da narrativa consiste em uma mistura desenfreada de mitologia greco-romana e nórdica, cristianismo e budismo, astronomia e astrologia a partir da qual uma molecada se estoura na porrada usando armaduras caprichosamente desenhadas – até porque boa parte do apelo da série vinha, ou melhor, ainda vem, da venda de bonecos.

Por fim, a cena que me comoveu era a de Hyoga, um cavaleiro de bronze, derrotando o próprio mestre, Camus de Aquário. Se essa sequência de palavras não lhe diz nada, não há problema, pois a trama não será relevante aqui. (Mas o nome “Camus” é sim uma homenagem explícita ao autor d’A Peste.)

O fato é que, naquele momento, meu cognitivo finalmente ligou os pontos – e só precisou de vinte anos para fazê-lo. O que impulsionava a comoção súbita era, além do melodrama usual das mortes do anime, sua trilha sonora, sempre sinfônica e melodiosa.

É típica da produção. Nos momentos dramáticos de Cavaleiros do Zodíaco, não raro um acompanhamento vocálico se junta à orquestra. ‘Inside a dream‘ é um exemplo clássico; ‘Sad brothers‘, outro. ‘Aria of the three‘ toca na cena mencionada.

Até então, essas melodias marcantes não me apontavam nome ou rosto. Mas o responsável pelas trilhas sonoras é – era – Seiji Yokoyama. Não sei quão comum é ou era compor sinfonias tão completas para animes; conheço pouco sobre este universo. No entanto, é certo que as composições de Yokoyama – ora épicas, ora suaves, sempre com belos arranjos –, não contêm nada de intrinsecamente infantil.

Seiji Yokoyama morreu de pneumonia em 2017, aos 82 anos. Não sabia quem ele era, portanto não pude lamentar. Sua música comoveu minha infância e, de forma contraintuitiva, hoje parece comover ainda mais. Ao identificar seu valor, descobri uma lembrança de morte que continuará comigo.

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City pop

Extraído da edição 50 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

City pop album cover by Hiroshi Nagai

City pop: uma nomenclatura tão vaga, genérica e imprecisa que não chega perto de contemplar a especificidade do gênero em questão. Trata-se de um pop japonês com cara, cheiro e gosto de algo perdido entre os anos 1970 e 80, com influência explícita do que se consagrava nas rádios dos Estados Unidos daquela época, e não só de lá.

Tem um pouco de soul; um pouco de funk; um pouco de fusion; um pouco daquilo que você ouve na recepção do dentista (em Curitiba, a Ouro Verde FM) – mas em japonês. É leve, muito leve. Talvez porque o Japão ainda aproveitava os efeitos de seu milagre econômico.

A atração começa com ‘Plastic love‘, de Mariya Takeuchi. Embala-se com Tatsuro Yamashita, não por coincidência marido de Takeuchi. Aí surgem Miki Matsubara, Junko Yagami, Tomoko AranToshiki Kadomatsu… você caiu no vórtice e já confere os covers, mashups e que tais.

O algoritmo do YouTube providencia tudo. Um mix atrás do outro te mergulha em um gênero acessível, irresistível e indecifrável – isso porque o city pop parece cativar principalmente aqueles desprovidos de qualquer relação com o país asiático. Seu apelo mundial deriva da internet e foi exponenciado pela plataforma de compartilhamento de vídeos.

Basta rolar pelos comentários da supracitada ‘Plastic love’, pináculo do gênero – só aquele link inserido já acumula mais de 20 milhões de visualizações –, para compreender a sensação compartilhada pelos ouvintes. O que os une é o sentimento de nostalgia por algo não vivido, as saudades de um passado fictício. (Sabemos exatamente quão corno isso soa, mas a reação comum é inegável a quem trafegar pelo YouTube e observar o padrão temático dos milhares de comentários espalhados.)

O city pop é, acima de tudo, um mundo que não existiu. Como um Homem do Castelo Alto às avessas, oferece o otimismo cósmico a partir do qual a vida é uma Califórnia japonesa, e você, o condutor em uma estrada ensolarada, espaçosa, despreocupada. Ouça e adentre essa rota livre de tensão: um, dois, três; ichi, ni, san.

Um caminho pelo qual o mundo não só não enveredou como jamais poderia enveredar. Há uma razão, portanto, para soar tão corno: alguns clichês são tão gastos que não poderiam se desfazer de sua condição de verdade implacável. O mundo não é a estrada vazia de uma Califórnia sinalizada em kanji; o tempo não passa onde ele não pode existir.

Esse apelo tão irrestrito, afinal, só poderia receber um nome vago, genérico e impreciso: city pop.

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A imagem utilizada no texto foi ilustrada por Hiroshi Nagai, o cartaz do city pop. Muitas capas da época são dele; algumas recentes também – como a de Pacific Breeze (2019), compilação da americana Light in the Attic Records já projetada em um mundo nem utópico nem distópico, mas cheio dus tópico, tá ligado. Ouça aqui.

Essa mesma gravadora também lançou – pela primeira vez fora do Japão – alguns discos de Haruomi Hosono, líder do magistral Yellow Magic Orchestra e grande fonte de influência para o city pop. Mas o YMO é um capítulo à parte e um dia certamente voltaremos ao grupo: Ryuichi Sakamoto que nos aguarde.

Ukiyo-e

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A gravura é a arte de impressão que surge na China no século 9 (e você ainda achava que o primeiro livro impresso do mundo tinha sido a Bíblia de Gutemberg…) e marca a Idade Média no Ocidente. Feita pela criação de uma matriz única, cria a possibilidade de cópia em grande escala, funcionando como um grande carimbo. Entre as inúmeras técnicas de gravura, a primeira a ser desenvolvida foi a xilogravura.

A xilogravura é a arte de trabalhar com a madeira, primeiro lhe entalhando e em seguida passando camadas de tinta no alto relevo produzido, que ao ser prensado sobre um papel transmite a imagem “desenhada” na matriz. Cada cor a ser usada deve ser passada separadamente para o papel, o que, junto do tempo de espera da secagem de cada mão, torna grande o tempo gasto com cada trabalho.

No Ocidente, o maior exemplo que temos de gravura japonesa é certamente a Grande Onda de Kanagawa:

 

Essa xilogravura é uma ukiyo-e e foi criada em torno de 1833. Foi gravada por Katsushika Hokusai e faz parte de uma série de 36 obras que representam o Monte Fuji. Hokusai demonstrava um grande amor pela paisagem japonesa e criou centenas de ukiyo-e nesta temática.

Ukiyo-e, em português “Retratos do Mundo Flutuante“, são xilogravuras feitas no Japão do período Edo – marcado pelo isolamento drástico do Japão ao resto do mundo e que serviu para o aprimoramento e desenvolvimento de novas técnicas artísticas. As ukiyo-e geralmente representavam a beleza da mulher, momentos históricos, o teatro Kabuki, paisagens, enfim, o cotidiano japonês deste período. Por mais que hoje sejam exibidas em belas exposições nos mais importantes museus ao redor do mundo, quando surgiram eram comuns e de fácil acesso, muitas vezes servindo como papéis bonitos para enrolar peixe.

A beleza desta arte está dividida em muitas partes, literalmente, pois não era feita por um único par de mãos, mas por várias pessoas trabalhando juntas. Pelo menos três: o artista, o talhador e o impressor. Essa técnica se tornou um dos mais famosos estilos artísticos japoneses e muitos historiadores da arte chegam a descrever a história da arte do Japão com base unicamente no estudo das ukiyo-e, o que, claro, corresponde a um reducionismo.

Mesmo assim, o papel dessas xilogravuras na identidade artística nacional é tamanho que as ukiyo-e foram a principal referência estética do japonismo, tendência na pintura europeia do século 19 em que artistas, sobretudo impressionistas franceses como Degas e Monet, se inspiraram nas cores vivas e no movimento da arte japonesa para compor suas obras e para estudar. Van Gogh, por exemplo, copiou diverssos trabalhos de Hiroshige e pintou árvores que claramente homenageiam as cerejeiras nipônicas. Outros pintores, como Felix Valloton, Paul Gauguin e Edvard Munch, chegaram a experimentar com essa técnica diretamente e foram precursores de seu uso no Ocidente. Já quase no século 21, a obra de Hokusai ainda é fonte de releituras, como em Uma Súbita Rajada de Vento, do fotógrafo canadense Jeff Wall.

Outra curiosidade sobre as ukiyo-e é que elas são as responsáveis pelo surgimento dos mangás. E o precursor dessa ideia foi o próprio Katsushika Hokusai. Em 1814, ele desenhou uma série de 15 ukiyo-e, as encadernou e batizou de Hokusai Manga, ou “esboços de Hokusai”. Nela estão cenas do dia a dia, paisagens, estudos sobre animais, plantas e também histórias de fantasmas.

Para ler mais a respeito, admirar e até participar de leilões de ukiyo-e originais, visite o site da Fuji Arts — e nos agradeça depois!

[por Flávia Rhafaela]