Cowboy Bebop

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Deve fazer dez, onze ou nove anos que me mandaram assistir a Cowboy Bebop (1998-1999) pela primeira vez. Àquela altura, portanto, já não seria um exagero definir a animação de Shinichirō Watanabe como um clássico. Entretanto, só fui me dedicar à série em 2020.

Para quem nunca ouviu falar ao longo desses 23 anos, Cowboy Bebop é um anime de ficção científica – com diversos elementos western e outros tantos noir – que acompanha uma tripulação de caçadores de recompensa viajando pelo espaço (uma premissa que Firefly repetiria pouco tempo depois). São apenas 26 episódios, cada qual com 24 minutos, incluindo introdução e encerramento (ambos fantásticos).

Cowboy Bebop funciona porque, emprestando palavras de Raymond Chandler, permite “saborear estilo, caracterização, reviravoltas de enredo”. Não há nada mais cativante que personagens bem construídos, e essa regra atinge não só os integrantes de tripulação, mas também vilões e demais elementos passageiros.

Melancólica, porém engraçada, essa série japonesa consegue tratar de miséria existencial, responsabilidade humana e tédio em um universo imaginativo e visualmente estimulante, com acenos a culturas diversas (inclusive a brasileira, e de forma explícita). É difícil não se apegar.

Por sua vez, a música não é um detalhe, mas um pilar criativo (bebop, oras). A trilha sonora da obra, um primor, foi composta por Yoko Kanno e executada pelos Seatbelts.

Tudo em Cowboy Bebop exala maturidade, capricho, poesia: isso de maneira alguma impede sua leveza. Impede, no entanto, que percebamos os 23 anos de distância entre seu lançamento e 2021. Não envelhece.

Por aqui, houve apenas um ano de contato. Podiam ter sido dez, onze ou nove, se eu tivesse dado atenção mais cedo. Para não repetir minha prevaricação (!), registro esse alerta. Cowboy Bebop cria um canto de carinho na cabeça e ali se assenta. Bang!

Melancolia mortal da trilha sonora infantil

Extraído da edição 54 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Na infância, é improvável que consigamos mapear exatamente aquilo que nos cativa em um filme ou personagem. Nossa rede de conexões é confusa; nosso vocabulário, limitado. Talvez por isso mesmo aquilo que nos cativa cedo seja tão direto, instintivo e marcante; talvez, ao contrário, por isso seja mais frágil – não tenho ideia.

De todo modo, houve um momento do ano passado em que minhas emoções me pegaram de surpresa. Comia (um prato executivo de arroz, feijão, frango e salada) durante meu intervalo de almoço e utilizava meu fone de ouvido para gastar tempo no YouTube.

Levado pelo algoritmo, revi determinada cena de um desenho muito querido em razão do apego emergido e consolidado na infância. Ao assisti-la, subitamente senti aquele amortecimento dos pômulos que denuncia o despertar das glândulas lacrimais: eu estava segurando choro. O que não era ou é comum, muito menos diante de um prato de frango grelhado, em público, às 12h30.

A cena provinha de Cavaleiros do Zodíaco (Saint Seiya, 1986-1989), anime muitíssimo popular entre as crianças brasileiras dos anos 1990. Não lembrava sequer a última vez que havia visto qualquer coisa relacionada com a franquia, e ainda assim aquilo me derrubou de imediato.

Para quem não conhece ou não se recorda, Cavaleiros do Zodíaco, criação de Masami Kurumada (1953-), é puro melodrama. Os cavaleiros em questão usam armaduras e lutam em defesa da reencarnação da deusa Atena. A todo momento, os protagonistas, órfãos e irmãos de criação, precisam superar adversários mais fortes em seu caminho de sangue, suor e lágrimas.

Um amigo apanha pelo outro, sacrifica-se pelo outro, tenta (ativamente, às vezes comicamente) morrer pelo outro. Todos se motivam e lutam por uma causa maior, e no fim o personagem principal (Seiya), após ser surrado feito purê, sempre resiste e vence.

O universo da narrativa consiste em uma mistura desenfreada de mitologia greco-romana e nórdica, cristianismo e budismo, astronomia e astrologia a partir da qual uma molecada se estoura na porrada usando armaduras caprichosamente desenhadas – até porque boa parte do apelo da série vinha, ou melhor, ainda vem, da venda de bonecos.

Por fim, a cena que me comoveu era a de Hyoga, um cavaleiro de bronze, derrotando o próprio mestre, Camus de Aquário. Se essa sequência de palavras não lhe diz nada, não há problema, pois a trama não será relevante aqui. (Mas o nome “Camus” é sim uma homenagem explícita ao autor d’A Peste.)

O fato é que, naquele momento, meu cognitivo finalmente ligou os pontos – e só precisou de vinte anos para fazê-lo. O que impulsionava a comoção súbita era, além do melodrama usual das mortes do anime, sua trilha sonora, sempre sinfônica e melodiosa.

É típica da produção. Nos momentos dramáticos de Cavaleiros do Zodíaco, não raro um acompanhamento vocálico se junta à orquestra. ‘Inside a dream‘ é um exemplo clássico; ‘Sad brothers‘, outro. ‘Aria of the three‘ toca na cena mencionada.

Até então, essas melodias marcantes não me apontavam nome ou rosto. Mas o responsável pelas trilhas sonoras é – era – Seiji Yokoyama. Não sei quão comum é ou era compor sinfonias tão completas para animes; conheço pouco sobre este universo. No entanto, é certo que as composições de Yokoyama – ora épicas, ora suaves, sempre com belos arranjos –, não contêm nada de intrinsecamente infantil.

Seiji Yokoyama morreu de pneumonia em 2017, aos 82 anos. Não sabia quem ele era, portanto não pude lamentar. Sua música comoveu minha infância e, de forma contraintuitiva, hoje parece comover ainda mais. Ao identificar seu valor, descobri uma lembrança de morte que continuará comigo.

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