Diamond Dogs

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Há quanto tempo não falamos do nosso aclamado David Bowie!

Uma descoberta acidental nos trouxe de volta ao Starman. Atentem-se, numerólogos, pois o disco Diamond Dogs completa 47 anos no fim de maio. Este foi lançado em 1974. Por sua vez, Bowie nasceu em 1947. E Diamond Dogs foi baseado no romance 1984, escrito em 1948 (mas, lamentavelmente, publicado em 1949).

DD é um discaço, talvez um pouco ofuscado pela sonoridade ainda um tanto parecida com a de Ziggy Stardust (1972), embora não possamos chamá-lo de subestimado.

A começar pela capa, desenhada pelo belga Guy Peellaert (1934-2008). Se sua parte frontal já fornece traços esquisitos, possivelmente grotescos, a contracapa nos presenteia com um cão-Bowie… em todos os seus membros. Polêmica, ela seria reeditada para cobrir o falo canino (ah, a pureza de um mundo pré-internet).

O álbum, enfim, abre com uma introdução falada, situando este universo orwelliano (não licenciado, pois Sonia Orwell, viúva de George, não permitiu a adaptação teatral que Bowie tanto almejava). Ouvimos sobre pulgas do tamanho de ratos e ratos do tamanho de gatos na pós-apocalíptica Hunger City.

A partir disso – “this ain’t rock and roll, this is genocide!” –, a faixa-título joga tudo para cima, levantando cães e mullets coloridos.

E então, Diamond Dogs contém um de meus momentos favoritos em toda a carreira de Bowie: o tríptico formado pelas faixas 3, 4 e 5, isto é, ‘Sweet Thing’, ‘Candidate’ e ‘Sweet Thing (reprise)’, respectivamente (as três juntas aqui).

Essa beleza expressa um decadentismo megalomaníaco que ora se acalma, ora cresce com metais e uma das grandes exibições vocais do inglês: ele desce muito baixo e voa muito alto ao longo da tríade. Um fone de ouvido utilizável ajuda a capturar as sutilezas da produção, a qual tem o toque de Tony Visconti, que viria a trabalhar com Bowie basicamente para sempre.

Talvez por essa execução primorosa, tão caprichada – ou talvez pelo mero desgaste –, a faixa seguinte, ‘Rebel Rebel’, soe como uma aporrinhação infantil. Eis um dos raros casos em que Bowie conseguiu ser chato (quem discorda que pinte um raio na testa…). Sem brigas, amigos, pois assim acaba o lado A.

O lado B não decepciona, longe disso. Com um adicional: nele, David Bowie já insere elementos que permeariam seu trabalho seguinte, Young American (1975), imerso no soul e afastado do glam rock pelo qual a fase Ziggy Stardust é conhecida. (Os mais afundados no Bowieísmo devem ouvir esta versão de ‘1984/Dodo’ e assistir a isso aqui.)

Como sempre, as letras são evocativas o suficiente para gerar uma experiência estética, mas vagas a ponto de não se fecharem em um só caminho.

Os discos conceituais de Bowie são assim: muito menos narrativas estruturadas, com início, meio e fim, e muito mais imagens, cenários, descrições capazes de fazer sentido, mas que exigem do ouvinte uma ligação de pontos. Trata-se de uma vagueza poética que trabalha para o artista. Por isso mesmo, as temáticas funcionam de forma tão atemporal.

De uma ponta à outra, Diamond Dogs é um trabalho incrível, capaz de abraçar o épico, executá-lo com maestria e não dar a mínima. Na discografia de qualquer outro indivíduo, seria o apogeu absoluto; na de Bowie, é apenas mais um momento incandescente.

Gang of Four e a morte discreta de Andy Gill

Extraído da edição 71 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

(Photo by Ebet Roberts/Redferns)

Semana passada, tratamos da música brasileira na primeira metade dos anos 1970 (na verdade, nos primeiros seis anos, antes que alguém nos corrija…). Hoje, lembramos um personagem da geração diretamente influenciada por aquele período musical brasileiro.

Andy Gill (1956-2020) foi guitarrista do Gang of Four, banda ícone do pós-punk, gênero/movimento em que jovens universitários descobriram sons de origem latina e/ou africana. Basta ouvir meio disco dos Talking Heads para compreender o que estou apontando (e melhor do que a minha explicação atenciosa possibilitaria).

Não à toa, David Byrne (Talking Heads) foi responsável direto pela propagação de músicos brasileiros (e não só) para grandes centros – Tom Zé talvez como o caso mais emblemático. A história pormenorizada do pós-punk foi costurada por Simon Reynolds no livro Rip it up and start again.

Mas voltando ao Gang of Four. A banda de Leeds (Inglaterra) lançou Entertainment!, seu álbum de estreia, em 1979. Esse debut é tranquilamente um dos discos mais influentes da história, ou então entre pessoas que usam guitarras, ou no mínimo entre indivíduos que compram e discutem a perenidade de discos.

Lembro perfeitamente meu primeiro contato com Gang of Four. Foi por meio de um CD gravado por um tio (e espécie de farol estético). Portanto, ainda quando se gravavam CDs. Eu tinha 14, 15 anos. Naquele CD-R havia uma espécie de guia do que eu deveria escutar ou já deveria ter escutado.

Da banda, constavam “Natural’s not in it” e “At home he’s a tourist”, e ambas me marcaram. O Gang of Four dispunha de verve, angústia política e originalidade estética. Em Entertainment!, tudo é conscientemente rústico e encaixado: trata-se de um trabalho tão próximo do disco como da poesia – isso apenas com a formação tradicional de quarteto (voz, guitarra, baixo, bateria).

Entertainment! é, acima de qualquer letra crítica ao capital, dançante; o protagonismo do baixo na estrutura de suas músicas – uma refrescante marca do pós-punk – atestava isso. E Andy Gill, de quem ainda falaremos, conseguiu desdobrar sua guitarra brilhantemente a partir disso.

A magia se repetiu – com menos efeito, mas ainda inegável qualidade (e talvez alguma inflação por parte da crítica) – em Solid Gold (1981), segundo álbum.

Conforme o tempo passava, no entanto, a banda perdia a capacidade de unir forma e conteúdo. Por fim, os discos posteriores aos dois primeiros passaram a soar cada vez mais datados, esquecíveis – e não há lista de Pitchfork que redima o mediano Songs of the free (1982), terceiro do catálogo. Seus membros pouco a pouco se dispersavam.

Com o julgamento distante, o Gang of Four parece um atacante que, depois de uma temporada extraordinária em time médio, nunca conseguiu se impor em palcos maiores (nesse caso, literalmente; que tal essa metáfora dentro de uma analogia?).

Em que pese o letramento dos integrantes, sua angústia política – a começar pelo nome, alusão à Camarilha dos Quatro da Revolução Cultural Chinesa – não se sobressaiu para além de uma revolta no mínimo mal aproveitada. (Essa é a interpretação bondosa; a maldosa veria a banda como críticos de DCE cuja fachada escondia um notável vazio.)

Então chegamos em Andy Gill. Ele chegou a produzir o primeiro álbum do Red Hot Chili Peppers ainda em 1984, e longe de mim agradecê-lo(s) por isso. Entre outras produções, reuniu-se com Jon King, vocalista original do Gang of Four, para uma retomada no início da última década.

Em 2011, lançaram um disco; em 2015, já sozinho novamente, Gill lançou outro. Finalmente, 2019 marcou seu último álbum. São todos discos decentes, e não há por que não reconhecer o mérito banhado em alívio daquilo que poderia ter sido muito pior (e, novamente, talvez tenha havido certa inflação por parte da crítica, provavelmente por gratidão, visto que o crítico musical padrão cresceu tarado por Gang of Four).

Em maio, escrevemos sobre as mortes de Aldir Blanc, Tony Allen e Florian Schneider. E simplesmente não sabíamos, àquela altura, que Andy Gill havia morrido. Com ele, o Gang of Four – em definitivo.

Oficialmente, Gill, 64, morreu de pneumonia e falência múltipla dos órgãos. O problema: ele esteve na China em novembro e começou a apresentar sintomas hoje associados à Covid-19 em dezembro. Sua esposa, a jornalista Catherine Mayer, escreveu um relato detalhado a respeito da situação. Também é possível escutá-la falar sobre o doloroso desfecho à BBC.

Os sintomas acompanharam o círculo imediato do casal e da banda – a ponto de o gerente de turnê ser internado com crise respiratória logo após retornar à Inglaterra –, porém antes de a Europa identificar esses problemas como algo novo. “É possível que nunca saibamos se a Covid-19 matou Andy, mas eu sempre saberei, em detalhes indeléveis, como ele morreu”, registrou Meyer.

Tardiamente, registramos nossa homenagem ao responsável direto por no mínimo um dos melhores discos de um período interessantíssimo da música no século 20. Muita coisa aconteceu e ainda acontece a partir do Gang of Four, cuja verve inicial transforma qualquer cínico no adolescente que abre um CD gravável pela primeira vez e, sem saber o que lhe espera, reage estupefato.

Brasil 1970-75, um guia musical

Extraído da edição 70 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Que a música brasileira é mundialmente reconhecida, qualquer um sabe. Mas nós nunca tínhamos nos dado conta da proporção de qualidade concentrada na década de 1970, especialmente até 1975.

Havia uma mistura bastante talentosa de talentos e contextos: veteranos da bossa nova; herdeiros da bossa nova; gente de saco cheio da bossa nova; tropicalistas; clássicos do samba; samba rock; geração dos festivais televisivos de música; guitarra elétrica; passeata contra a guitarra elétrica; eruditos; empíricos; gente que viajou pelo mundo; gente que nunca saiu do Brasil; repressão e tensão política; cultura hippie; o Hermeto Pascoal.

Os frutos são incríveis. A partir deles, concluímos que, àquela época, o Brasil dispunha do apogeu da música mundial. Sem nenhum traço de saudosismo – porque não vivemos essa época –, tampouco de ufanismo – porque é brega. Trata-se de uma afirmação bastante razoável de defender.

Pensando nisso, listamos todos os álbuns de que gostamos após ouvir, pesquisar e reescutar. Não são todos extraordinários, o que seria impossível, mas há discos soberbos entre eles. Todos têm pontos altos; nenhum é fraco. Ficam as nossas sugestões para que esta lista seja lida e relida (como uma porta de entrada ou fonte de discórdia).

Todos os álbuns mencionados estão disponíveis no Spotify, exceto quatro, que sinalizamos e apontamos para o YouTube. No Spotify, você também pode acompanhar nossa playlist querida, melhor degustada na ordem aleatória – exatamente como o Brasil.


Playlist: Brasil 1970-1975 era o apogeu da música mundial [Spotify]

1970
Antonio Carlos & Jocafi – Mudei de Ideia
Egberto Gismonti – Sonho 70
Elis Regina – …Em Pleno Verão
Gal Costa – Legal
Jorge Ben Jor – Força Bruta
Milton Nascimento – Milton
Os Mutantes – A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado
Paulo SérgioPaulo Sérgio vol. IV
Roberto Carlos – Roberto Carlos (1970)
Rosinha de Valença – Rosinha de Valença apresenta o Ipanema Beat
Taiguara – Viagem
Tom Jobim – Stone Flower
Tom Jobim – Tide
Toquinho – Toquinho (1970)

1971
Chico Buarque – Construção
Erasmo Carlos – Carlos, Erasmo
Evinha – Cartão Postal
Jorge Ben Jor – Negro é Lindo
Maria Bethânia – A Tua Presença
Roberto Carlos – Roberto Carlos (1971)
Sílvio César – Sílvio César (1971)
Vinícius de Moraes – Como Dizia o Poeta
Wilson Simonal – Jóia, Jóia

1972
Caetano Veloso – Transa
Elis Regina – Elis
Gilberto Gil – Expresso 2222
Hermeto Pascoal – Hermeto [YouTube]
Jards Macalé – Jards Macalé
Luiz Bonfá – Introspection
Maria Bethânia – Drama
Milton Nascimento & Lô Borges – Clube da Esquina
Novos Baianos – Acabou Chorare
Paulinho da Viola – Dança da Solidão
Roberto Carlos – Roberto Carlos (1972)
Tom Jobim – Matita Perê
Toni Tornado – Toni Tornado (1972)

1973
Arthur Verocai – Arthur Verocai
Eumir Deodato – Prelude
Eumir Deodato – Deodato 2
Eumir Deodato – Os Catedráticos 73
Hermeto Pascoal – A Música Livre de Hermeto Pascoal [YouTube]
Ivan Lins – Modo Livre
João Donato – Quem é Quem
João Gilberto – João Gilberto [YouTube]
Luiz Melodia – Pérola Negra
Marcos Valle – Previsão do Tempo
Milton Nascimento – Milagre dos Peixes
Nelson Cavaquinho – Nelson Cavaquinho (1973)
Novos Baianos – Novos Baianos F. C.
Raul Seixas – Krig-Ha, Bandolo
Secos e Molhados – A Volta de Secos & Molhados
Sérgio Sampaio – Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua
Taiguara – Fotografias
Tim Maia – Tim Maia (1973)
Tom Zé – Todos os Olhos
Trio Mocotó – Trio Mocotó

1974
Adoniran Barbosa – Adoniran Barbosa
Airto Moreira & Eumir Deodato – Deodato/Airto in Concert [YouTube]
Benito Di Paula – Um Novo Samba
Cartola – Cartola
Egberto Gismonti – Academia de Danças
João Donato – Lugar comum
Jorge Ben Jor – A Tábua de Esmeralda
Jorge Mautner – Jorge Mautner (1974)
Martinho da Vila – Martinho da Vila
Nelson Gonçalves – Passado e Presente
Raul Seixas – Gita
Roberto Carlos – Roberto Carlos (1974)
Vinícius de Moraes & Toquinho – Vinícius & Toquinho

1975
Airto Moreira – Identity
Alcione – A Voz do Samba
Azymuth – Azimüth
Bebeto – Bebeto
Clara Nunes – Claridade
Di Melo – Di Melo (1975)
Hyldon – Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda
Lula Côrtes & Zé Ramalho – Paêbirú
Nelson Gonçalves – Nelson de Todos os Tempos
Tim Maia – Racional (vol. 1)
Waltel Branco – Meu balanço

Vamos lá. Listas, assim como goleiros e revisores de texto (e os Correios), são avaliadas a partir de suas falhas: o que esquecemos?

Ademais, quais são os melhores, mais influentes, mais marcantes, crème de la crème, apogeu do apogeu? Quais são seus favoritos? Se o editor tivesse de morrer abraçado com um, seria o Clube da Esquina.


  • Em 1976, já temos África Brasil (Jorge Ben Jor), Cartola (1976), Estudando o Samba (Tom Zé) e Alucinação (Belchior), entre outros. Mas quem sabe uma segunda lista…
  • Já a década de 1980…

Experimento de Rosenhan: louco, eu?

Extraído da edição 67 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

O experimento de Rosenhan, de David Rosenhan, é certamente um dos mais curiosos estudos entre publicações científicas sérias. Isso porque o trabalho, divulgado em 1973 sob o título Sobre ser são em ambientes insanos, apresentou um método bastante direto de questionar a própria validade do diagnóstico psiquiátrico.

Para tanto, oito pessoas – Rosenhan incluso –, foram aceitas em 12 manicômios diferentes nos Estados Unidos após simularem alucinações auditivas de vozes que proferiam palavras vagas. Entre profissionais da área e gente nada relacionada, nenhum continha histórico de distúrbios mentais, e todos usaram pseudônimos. A instrução para o experimento era clara: uma vez dentro, todos se comportariam da maneira mais normal, saudável possível, desde cedo alegando não ouvir mais voz alguma. O diagnóstico caberia às instituições.

Essas instituições, demograficamente variadas, levaram de sete a 52 dias para liberar todos os pseudopacientes, gerando média de 19 dias de estada. Todos foram devolvidos à sociedade com o diagnóstico de esquizofrenia em remissão, fato utilizado para Rosenhan argumentar como doenças mentais são tratadas como irreversíveis e estigmatizantes. Nenhum dos infiltrados foi descoberto, ainda que tenha havido suspeitas (por parte de outros pacientes, e não de funcionários). O autor não poupou críticas ao tratamento recebido pelos internados.

No ambiente do manicômio, segundo Rosenhan, é impossível distinguir o são do insano. Verdade ou não, a relação do ser humano com a validação subjetiva certamente ficou um pouco mais exposta.

(O artigo inteiro, em inglês.)

[Publicado originalmente na edição #21, em outubro de 2015]

666, o número do… Vangelis

Extraído da edição 52 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

“QUALQUER UM COM INTELIGÊNCIA PODE INTERPRETAR O NÚMERO DA BESTA. É O NÚMERO DE UM HOMEM. ESTE NÚMERO É 666.” (RecordMecca)

O grego Vangelis (leia-se vanguélis, não vângelis) é um músico consagrado, consagrado demais. Ele é responsável pelas trilhas sonoras de Carruagens de Fogo (1981) e Blade Runner (1982), por exemplo.

Prolífico, onipresente e longevo, é natural que Vangelis tenha assinado inúmeros materiais para contextos diversos. Dessa forma, seu catálogo contempla desde música oficial de Copa do Mundo (2002) até a série Cosmos (1980), de Carl Sagan, que utilizou algumas de suas composições antes da popularização extrema do artista.

Dependendo da boa vontade, este grego pode ser visto como um mago do sintetizador e engenheiro da música eletrônica; também pode ser visto como um chato de new age ou sinônimo de composições datadas – ou tudo isso junto. (Estamos mais inclinados à primeira interpretação.)

E quem é jovem – como todo o corpo maciço da Enclave, composta de millennials que não coexistiram com a Iugoslávia – não teve acesso ao que Vangelis fez antes de ser o Vangelis, isto é, quando Evángelos Odysséas Papathanassíou era apenas um compositor/tecladista grego com um nome tipicamente grego tocando em uma banda grega.

A banda atendia por Aphrodite’s Child, e seu último disco é uma obra-prima.

Essa informação pode soar quase ofensiva aos mais velhos, pois a Aphrodite’s Child atingiu um sucesso notável na década de 1960, e seu vocalista, Demis Roussos (1946-2015), tornou-se uma estrela mundial. Roussos se apresentou diversas vezes no Brasil e, reza a lenda, lotou um Maracanã com capacidade para 150 mil pessoas – informação que não conseguimos confirmar em nenhuma fonte confiável.

(O fato é que Demis Roussos, notabilizado pelo figurino criativo e pela obesidade gradativa, foi um fenômeno setentista; se você, colega millennial, não o conhecia, é possível que seus pais ou avós o conheçam. Por sua vez, se você viveu o ápice da Aphrodite’s Child, muito obrigado por ler a Enclave e contorcer nossa demografia limitada – compartilhe sua memória conosco.)

Os dois primeiros discos, aos quais não nos atentaremos, são leves, agradáveis, certinhos. ‘Rain and tears‘, do primeiro, e ‘It’s five o’clock‘, do segundo, representam bem a combinação de arranjos limpos e voz angelical que caracterizava os filhos de Afrodite.

Mas o terceiro, meu amigo, o terceiro é obra do próprio Satã.

Gravado em 1970-71 e lançado em 1972 – quando a banda já havia acabado –, 666 (The Apocalypse of John, 13/18) é uma obra épica e intensa cuja qualidade se sobressai tranquilamente a seu nicho. Isto é, não é necessário apreciar discos conceituais de rock progressivo ou ataques de megalomania da contracultura para compreender por que 666 é tão… bestial.

Todas as músicas foram compostas por Vangelis; e todas as letras, pelo diretor Costas Ferris. Juntos, eles elaboraram o conceito do disco, e as aspas a seguir derivam deste texto robusto de Mairon Machado, cuja leitura recomendo aos interessados.

“Costas [Ferris] escreveu um livro conceitual para o álbum, 666 (The Apocalypse of John, 13/18), e a ideia era simples: um grande circo com acrobatas, dançarinos, elefantes, tigres e cavalos mostrando um espetáculo referente ao fim do mundo. Enquanto o show ocorre com diversos efeitos de luz e som, algo estranho começa a acontecer fora do circo, que é a revelação da destruição do planeta Terra. O público acredita que o que acontece fora do picadeiro faz parte do show, mas o narrador começa a alertar a plateia que aquilo é real. Então, uma imensa e densa batalha entre o bem e o mal passa a ser travada, até que um deles vença!”

666 contou com o retorno do guitarrista Silver Koulouris, que havia deixado a Aphrodite’s Child em razão do alistamento obrigatório. E guitarra era justamente o que faltava para o Pandemônio ser tão expressivo. Com metais, flautas e outras adições variadas, a proposta da banda ficou completa: a melhor maneira de degustar essa empreitada ocorre com ‘All the seats were occupied‘, penúltima faixa do disco, uma porrada de quase 20 minutos que basicamente repassa o álbum inteiro.

Ao contrário de tantas iniciativas de rock progressivo, que às vezes se perdem dentro da própria bunda, 666 não deixa a peteca cair em momento algum. As composições de Vangelis conseguem transitar por gêneros, arranjos e ideias. Basta ouvir ‘Babylon‘, ‘The four horsemen‘, ‘The beast‘, ‘The wedding of the lamb‘ e ‘‘ para testemunhar tamanho alcance – esta última consiste basicamente na obtenção de um orgasmo, o que não poderia ser menos Carruagens de Fogo.

Quem associa Vangelis à tranquilidade da new age ou Demis Roussos à candura de suas canções pode se surpreender ao deparar com uma combinação tão expressiva de fim de mundo, blasfêmia e orgia. Não pela surpresa, mas pela execução, 666 é um discaço e, como o próprio Apocalipse, não envelheceu nada.

***
  • 666 inteiro no YouTube e no Spotify.
  • Vangelis é o diminutivo de Evángelos. Por sua vez, o nome completo de Demis era Artemios Ventouris-Roussos.
  • Por onde começar com Vangelis? See You Later (1980). A faixa ‘Memories of green’ seria (muito bem) reaproveitada na trilha sonora de Blade Runner.
  • Aliás, fãs de Blade Runner devem ter percebido (ou estranhado) ao longo do texto: o Aphrodite’s Child lançou ‘Rain and tears‘ em 1968; Vangelis, ‘Tears in rain‘ com o filme. A música acompanha o monólogo final e foi reutilizada por Hans Zimmer em Blade Runner 2049 (2017).
  • Demis Roussos no Jô Soares; Demis Roussos com Hebe Camargo.
  • ‘The friends of Mr. Cairo’, de Vangelis e Jon (Anderson, do Yes) contém uma riqueza intertextual tão grande que será tema de alguma Enclave futura. Aqui, o clipe. Aqui, a versão completa (12 minutos).
  • Demis Roussos já foi refém do Hezbollah após sequestro do voo TWA 847 em Atenas. Ao longo dos cinco dias de sequestro, o cantor completou 39 anos. “Eles me deram um bolo de aniversário e um violão para cantar. Foram bastante educados conosco”.

City pop

Extraído da edição 50 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

City pop album cover by Hiroshi Nagai

City pop: uma nomenclatura tão vaga, genérica e imprecisa que não chega perto de contemplar a especificidade do gênero em questão. Trata-se de um pop japonês com cara, cheiro e gosto de algo perdido entre os anos 1970 e 80, com influência explícita do que se consagrava nas rádios dos Estados Unidos daquela época, e não só de lá.

Tem um pouco de soul; um pouco de funk; um pouco de fusion; um pouco daquilo que você ouve na recepção do dentista (em Curitiba, a Ouro Verde FM) – mas em japonês. É leve, muito leve. Talvez porque o Japão ainda aproveitava os efeitos de seu milagre econômico.

A atração começa com ‘Plastic love‘, de Mariya Takeuchi. Embala-se com Tatsuro Yamashita, não por coincidência marido de Takeuchi. Aí surgem Miki Matsubara, Junko Yagami, Tomoko AranToshiki Kadomatsu… você caiu no vórtice e já confere os covers, mashups e que tais.

O algoritmo do YouTube providencia tudo. Um mix atrás do outro te mergulha em um gênero acessível, irresistível e indecifrável – isso porque o city pop parece cativar principalmente aqueles desprovidos de qualquer relação com o país asiático. Seu apelo mundial deriva da internet e foi exponenciado pela plataforma de compartilhamento de vídeos.

Basta rolar pelos comentários da supracitada ‘Plastic love’, pináculo do gênero – só aquele link inserido já acumula mais de 20 milhões de visualizações –, para compreender a sensação compartilhada pelos ouvintes. O que os une é o sentimento de nostalgia por algo não vivido, as saudades de um passado fictício. (Sabemos exatamente quão corno isso soa, mas a reação comum é inegável a quem trafegar pelo YouTube e observar o padrão temático dos milhares de comentários espalhados.)

O city pop é, acima de tudo, um mundo que não existiu. Como um Homem do Castelo Alto às avessas, oferece o otimismo cósmico a partir do qual a vida é uma Califórnia japonesa, e você, o condutor em uma estrada ensolarada, espaçosa, despreocupada. Ouça e adentre essa rota livre de tensão: um, dois, três; ichi, ni, san.

Um caminho pelo qual o mundo não só não enveredou como jamais poderia enveredar. Há uma razão, portanto, para soar tão corno: alguns clichês são tão gastos que não poderiam se desfazer de sua condição de verdade implacável. O mundo não é a estrada vazia de uma Califórnia sinalizada em kanji; o tempo não passa onde ele não pode existir.

Esse apelo tão irrestrito, afinal, só poderia receber um nome vago, genérico e impreciso: city pop.

***

A imagem utilizada no texto foi ilustrada por Hiroshi Nagai, o cartaz do city pop. Muitas capas da época são dele; algumas recentes também – como a de Pacific Breeze (2019), compilação da americana Light in the Attic Records já projetada em um mundo nem utópico nem distópico, mas cheio dus tópico, tá ligado. Ouça aqui.

Essa mesma gravadora também lançou – pela primeira vez fora do Japão – alguns discos de Haruomi Hosono, líder do magistral Yellow Magic Orchestra e grande fonte de influência para o city pop. Mas o YMO é um capítulo à parte e um dia certamente voltaremos ao grupo: Ryuichi Sakamoto que nos aguarde.

Brando!

Extraído da edição 14 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Quando Al Pacino recusou o papel de protagonista em Apocalypse Now (1979), sua justificativa para o diretor Francis Ford Coppola foi bastante simples: “já sei como vai ser. Você vai subir em um helicóptero e me falar o que fazer, enquanto eu estarei lá embaixo, num pântano, por cinco meses”.

Mal sabia ele, muito menos Coppola, que as gravações durariam dezesseis meses. Esse é apenas um dos famosos problemas que perseguiram a criação da película, cujas infinitas tretas são devidamente relatadas no documentário Hearts of Darkness 1991 — o filme, pois, adaptou o romance Coração das Trevas (1899), de Joseph Conrad, ao contexto da Guerra no Vietnã).

Visto que sequer teríamos tempo para relatar muitos perrengues – que vão de incêndio a ataque cardíaco –, destaquemos Marlon Brando, sobre quem já escrevemos na Enclave #6 (especialmente diagramada aqui, p. 14). Brando, afinal, não participou dos 16 meses de filmagem de Apocalypse Now. Para o astro, foram reservadas apenas seis semanas no set construído nas Filipinas, de 2 de setembro a a 11 de outubro de 1976.

Se sua obrigação era chegar em forma, com a leitura de Coração das Trevas realizada e suas falas na ponta da língua, o Corleone sênior encontrou Coppola já surpreendentemente gordo, sem ter lido o romance de Conrad e tampouco o roteiro — isso segundo o diretor.

No papel do Coronel Kurtz, enigmático personagem que o protagonista tanto persegue, Marlon Brando dá as caras em apenas 15 dos 153 minutos de filme. O que não evitou problemas. Ah, não mesmo. Ele, que havia recebido um milhão de dólares antecipadamente, negou-se a seguir o roteiro, ameaçou deixar a produção e ficar com o dinheiro.

No fim das contas, improvisou boa parte de seu diálogo, além de um falatório magistral de dezoito minutos, dois dos quais sobreviveram à versão final. Coppola estava tão farto de lidar com a situação que entregou as cenas do ator a Jerry Ziesmer, assistente de direção. Brando também detestava Dennis Hopper, rejeitando compartilhar o set com o colega em questão.

As “brandices” geraram outras consequências técnicas: para não expor sua forma física distante do que se imaginaria para Coronel Kurtz, Marlon Brando foi filmado no escuro, escondido entre sombras, raras partes de seu corpo à mostra. Sua recusa ao sobrenome Kurtz – “não soa americano” – fez com que o personagem tivesse o nome alterado.

Essa recusa, porém, foi reconsiderada por ele mesmo após finalmente ler Coração das Trevas. Entretanto, menções ao personagem já haviam sido gravadas por outros atores, o que exigiu redublagem na pós-produção. (Isso pode ser verificado claramente na cena em que Harrison Ford interage com Martin Sheen, ainda no início da película).

No fim das contas, todas as cenas com o ator são inegavelmente marcantes, e se tornam ainda mais curiosas quando sabemos de todos os problemas que as circundam. Mas recentemente, como um Deus ex machina, acrescentamos que Susan Mizruchi, autora de uma biografia sobre Brando, defende como as afirmações de Coppola sobre o descompromisso de Marlon Brando são redondamente falsas.

Segundo ela, as cartas entre diretor e astro deixam claro como Brando não só foi às Filipinas completamente preparado como ajudou no roteiro por pura dedicação à sua arte.