City pop

Extraído da edição 50 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

City pop album cover by Hiroshi Nagai

City pop: uma nomenclatura tão vaga, genérica e imprecisa que não chega perto de contemplar a especificidade do gênero em questão. Trata-se de um pop japonês com cara, cheiro e gosto de algo perdido entre os anos 1970 e 80, com influência explícita do que se consagrava nas rádios dos Estados Unidos daquela época, e não só de lá.

Tem um pouco de soul; um pouco de funk; um pouco de fusion; um pouco daquilo que você ouve na recepção do dentista (em Curitiba, a Ouro Verde FM) – mas em japonês. É leve, muito leve. Talvez porque o Japão ainda aproveitava os efeitos de seu milagre econômico.

A atração começa com ‘Plastic love‘, de Mariya Takeuchi. Embala-se com Tatsuro Yamashita, não por coincidência marido de Takeuchi. Aí surgem Miki Matsubara, Junko Yagami, Tomoko AranToshiki Kadomatsu… você caiu no vórtice e já confere os covers, mashups e que tais.

O algoritmo do YouTube providencia tudo. Um mix atrás do outro te mergulha em um gênero acessível, irresistível e indecifrável – isso porque o city pop parece cativar principalmente aqueles desprovidos de qualquer relação com o país asiático. Seu apelo mundial deriva da internet e foi exponenciado pela plataforma de compartilhamento de vídeos.

Basta rolar pelos comentários da supracitada ‘Plastic love’, pináculo do gênero – só aquele link inserido já acumula mais de 20 milhões de visualizações –, para compreender a sensação compartilhada pelos ouvintes. O que os une é o sentimento de nostalgia por algo não vivido, as saudades de um passado fictício. (Sabemos exatamente quão corno isso soa, mas a reação comum é inegável a quem trafegar pelo YouTube e observar o padrão temático dos milhares de comentários espalhados.)

O city pop é, acima de tudo, um mundo que não existiu. Como um Homem do Castelo Alto às avessas, oferece o otimismo cósmico a partir do qual a vida é uma Califórnia japonesa, e você, o condutor em uma estrada ensolarada, espaçosa, despreocupada. Ouça e adentre essa rota livre de tensão: um, dois, três; ichi, ni, san.

Um caminho pelo qual o mundo não só não enveredou como jamais poderia enveredar. Há uma razão, portanto, para soar tão corno: alguns clichês são tão gastos que não poderiam se desfazer de sua condição de verdade implacável. O mundo não é a estrada vazia de uma Califórnia sinalizada em kanji; o tempo não passa onde ele não pode existir.

Esse apelo tão irrestrito, afinal, só poderia receber um nome vago, genérico e impreciso: city pop.

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A imagem utilizada no texto foi ilustrada por Hiroshi Nagai, o cartaz do city pop. Muitas capas da época são dele; algumas recentes também – como a de Pacific Breeze (2019), compilação da americana Light in the Attic Records já projetada em um mundo nem utópico nem distópico, mas cheio dus tópico, tá ligado. Ouça aqui.

Essa mesma gravadora também lançou – pela primeira vez fora do Japão – alguns discos de Haruomi Hosono, líder do magistral Yellow Magic Orchestra e grande fonte de influência para o city pop. Mas o YMO é um capítulo à parte e um dia certamente voltaremos ao grupo: Ryuichi Sakamoto que nos aguarde.