Lolitas de Nabokubrick

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Lolita (1955), de Vladimir Nabokov, é o melhor livro que este editor leu em 2022, ainda que dezembro inteiro possa surpreendê-lo. Não esperava menos. Quem já teve contato com qualquer coisa escrita por Nabokov entende que o sujeito era basicamente um ET. Ademais, esse clássico contemporâneo dispensa apresentações, em que pese o fato de sua temática por si só ter-lhe fomentado a fama.

Por fim, quem também já teve contato com qualquer coisa dirigida por Stanley Kubrick entende que se trata de outro ET, talvez literalmente. E um jovem Kubrick, após o épico Spartacus (1960), assumiu a tarefa ingrata, hercúlea, espinhosa de adaptar Lolita (1962, hoje disponível no HBO Max). Por sua vez, a Enclave é basicamente uma newsletter sobre adaptações (releituras, reinterpretações, deslocamentos). Concluímos que o encontro Nabokubricko é um prato cheio.

Premissas

Muito já se falou – escreveu, argumentou, esmiuçou – sobre Lolita, em ambientes muito mais confiáveis que este. Porém, vale listar algumas considerações que elucidem, do nosso ponto de vista, por que esse romance é tão desgraçado. A despeito de detalhes muito conhecidos, principalmente para quem leu, partiremos de um leitor menos familiarizado (ou lembrado).

Lolita acompanha as memórias de Humbert Humbert, professor de meia-idade, em uma história já encerrada no momento da narração. Chegamos a ela por meio de um (fictício) editor de livros de psicologia. Nas mãos erradas, metalinguagem pode ser uma bomba de tédio; para Nabokov, é sempre um tempero. “Humbert Humbert” já é um pseudônimo dentro da história.

A partir disso, acompanhamos a trajetória e os devaneios de Humbert, um narrador absolutamente não confiável. Este é um dos cernes do livro: Lolita é, essencialmente, uma história que contém tudo aquilo que conhecemos dentro da perspectiva de seu maior infrator, e apenas dele.

Para tanto, está em boas mãos – nas melhores possíveis. Nabokov transformaria uma história de bingo na igreja na narrativa mais interessante do planeta se a mediasse por um narrador padre inseguro.

Pois bem, assim conhecemos a menina Dolores Haze, “Lolita” apenas na mente torpe de Humbert. Ou melhor, tentamos, pois tudo que ela pensa, sente ou executa nos é relatado pelo narrador que por ela se apaixona e que dela abusa. Não detalharemos o enredo em si.

Mas Lolita, o romance, nos oferece algumas surpresas; não por acaso é tão aclamado. A primeira delas, talvez menos lembrada: como qualquer obra-prima, o livro contém lampejos brutais de humor. Há duplos sentidos, jogos de palavras, azedumes do narrador – rimos dele, não com ele –, xadrez verbal com camadas de interpretação (Nabokov era um estrangeiro nos Estados Unidos e, naturalmente, na língua inglesa, na qual escreveu o livro). Ao longo da jornada de Humbert e Dolores pelo país, há inúmeros códigos à disposição do leitor-desbravador.

E aos poucos, Dolor’osamente (tssssc), nos apegamos ao narrador, um pedófilo manipulador, cretino e triste. Esse é o grau de qualidade da escrita da Nabokov, que brinca com sua arte, esfregando na nossa cara que conseguiria ganhar uma Libertadores com um time da Copa Kaiser. É como se ele nos desafiasse, provocando: “qual é a maneira mais difícil de eu te convencer? Um pedófilo neurótico professor de literatura é o suficiente para vocês? Pois bem”.

Parece piada, mas é bem provável que esse tenha sido o ponto de partida do escritor, um estudioso dos problemas de xadrez.

Ao fim de Lolita – emocionados, frustrados, raivosos, confusos –, experienciamos o suficiente para compreender com um só golpe a beleza da palavra escrita.

Adaptando o inadaptável

Which is why adaptar Lolita é uma tarefa tremendamente estúpida. Kubrick já sabia disso, vide o próprio cartaz da produção:

“Como foi que fizeram um filme de Lolita?”; fotografia de Bert Stern.

Afinal, estamos falando de uma suprassumo da palavra escrita. O que acontece na narrativa é menos esteticamente relevante que o efeito da narração. Como transportar esse efeito para o cinema (ou transformá-lo em outra coisa)? E, principalmente, por quê? Ademais, como expor o relacionamento de um marmanjo com uma garota de 12 anos?

Stanley Kubrick também gostava de um desafio – e de xadrez.

You’re gonna take my queen”, antecipa Charlotte, mãe de Dolores.

O responsável pelo roteiro é o próprio Kubrick, que editou pesadamente o material de Nabokov (ainda que este o assine). Sua Lolita pode ser classificada como uma comédia – a presença do gênio Peter Sellers, capaz de roubar qualquer cena, corrobora essa mudança de ênfase.

No longa-metragem, famoso pela iconografia consagrada no cartaz – isto é, o pirulito e o óculos (que sequer aparece no filme) –, Dolores tem mais que os 12 anos do romance. Ela também é chamada de “Lolita” pelos demais personagens, não só Humbert, e dispõe de uma malícia da qual devemos desconfiar plenamente no livro, afinal só a acessamos via Humbert.

Sue Lyon, aos 14 anos no início das gravações, faz um trabalho extraordinário como enfant terrible, para desespero da mãe, Charlotte (Shelley Winters). E para desespero de Sue Lyon, que nunca conseguiu se desvencilhar “do filme que causou minha destruição como pessoa”.

Dessa combinação emerge a ideia de “lolita” na cultura popular, isto é, da jovem adolescente sedutora – uma figura injusta em relação ao romance.

Por fim, Kubrick sabiamente inverte a ordem (ou o foco) dos acontecimentos – também não detalharemos –, dando muito mais destaque ao personagem de Peter Sellers. O diretor omite qualquer relação explícita entre Humbert e Dolores, promovendo apenas sinais indiretos, embora suficientemente claros.

Ao assistir a Lolita, não lembrava que o filme havia sido gravado em preto e branco. Essa não era uma condição em 1962, mas uma preferência de boa parte dos diretores porque a tecnologia colorida ainda não era tão sólida. Com isso em mente, chama atenção (para surpresa de ninguém) como Kubrick aproveita o máximo de cada quadro, com tomadas longas e diversas camadas visuais em perspectiva. Por exemplo, a cena do baile na escola ou as cenas nos quartos de hotel, com janelas ao fundo.

A trilha sonora de Nelson Riddle (que alguns anos depois faria os arranjos de The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim, segundo disco de Tom, que por sua vez recusaria compor a trilha de A Pantera cor-de-rosa [1963], que por sua vez consagraria mundialmente Peter Sellers como o inspetor Jacques Clouseau, um ano depois de brilhar em Lolita… [que por sua vez, 10 anos depois, declararia seu amor à música de Jobim no Sunday Times]) e, pera lá, só um momento, nos perdemos tentando conectar os pontos do planeta, afinal esta seção se chama hipertexto.

A trilha sonora de Nelson Riddle, marcada pela música-tema da protagonista, é por si só um sopro de ar fresco que converge com o tom da obra: Lolita é um filme mais leve, muito menos desafiador que o livro. Esse traço não é um intrinsecamente um defeito, embora exponha a dificuldade de lidar com um material tão complexo. Diante do desafio – e segurando as expectativas –, o resultado surpreende.

All in all, o romance é uma obra-prima, a quinta-essência de sua mídia. O longa-metragem é um bom filme nas mãos de um gênio ainda em desenvolvimento (pois não é nem o quinto em sua essencial filmografia). O encontro Nabokubricko não corresponde ao suprassumo de ambos, mas, não tendo anulado um ao outro, é suficiente para se sustentar. Ler Lolita é uma experiência extraordinária; assistir, no mínimo, vale a pena.

Duna é o espetáculo que Duna merece

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Que saudades de ir ao cinema! À minha direita, um sujeito trata o saco de pipoca como se precisasse nocauteá-lo, então a degusta com a ferocidade de um cão a descobrir um novo osso.

À minha esquerda, um bombonière humano com uma relação infinita de chocolates, todos encapsulados em plástico e guardados em outra sacola plástica, na qual é preciso navegar constantemente à procura do próximo doce.

À minha frente, impulsos assassinos controlados, depois distraídos por uma tela gigantesca a anunciar: “Duna, primeira parte“.

Talvez você já tenha cansado de ouvir sobre Duna; talvez lhe falte um último empurrão para ver o filme com os próprios olhos; talvez você não tenha qualquer interesse no assunto. Mas Duna, do franco-canadense Denis Villeneuve, é o principal assunto do cinema hoje, muito por conta da escassez de lançamentos em função da pandemia.

E Duna (1965), o romance de Frank Herbert que lhe serve como base, é um livraço. Enredos, personagens, conceitos: uma miríade de informações parte de Arrakis, o planeta desértico governado pela Casa Atreides, para compor uma verdadeira picadilha galática.

Tecendo a ficção científica com feudalismo, Herbert misturou tecnologia, transcendência e pluralismo cultural de maneira cativante. Não à toa, esse universo, tão grande como amarrado – a criatividade do autor é puramente invejável –, acarretou uma saga de publicações, e estas inspiraram diversas outras franquias.

Com um parâmetro simplificado, podemos dizer que Duna sempre foi o “Star Wars para adultos” (digo isso de maneira não depreciativa). George Lucas certamente bebeu dessa fonte.

Porém, a adaptação de David Lynch, de 1984, é esquisita (digo isso de maneira depreciativa) por vários motivos, alguns dos quais – não todos – fora do controle do diretor (“Meu, ele mistura muito bem essa coisa do inconsciente, abstrato com essa tecnologia estrambólica, polipotética, parafernálica, meu”).

Por sua vez, o Duna de Alejandro Jodorowsky seria o maior, melhor, mais espetacular, mais incrível filme da história, segundo Alejandro Jodorowsky. Contudo, o projeto acabou engavetado, alimentando o mito acerca do título, que seguia à procura de um filme capaz de traduzir sua devida potência.

E assim chegamos ao Duna a que podemos assistir nos cinemas no fim de 2021. Para fazê-lo, por sinal, não li absolutamente nada sobre o filme; nem uma crítica; zero. Acompanhei a produção anos atrás, então procurei me desinteressar para não criar expectativas – mesmo confiando em Villeneuve, ou melhor, “no De“.

Mais que um excelente filme, Duna é uma experiência cinematográfica incrível. Ideal para grudar os olhos em uma tela gigante, ficar meio surdo e esquecer o indivíduo nefasto amassando uma sacola plástica ao seu lado.

Protagonizada por um monte de ator famoso mais um monte de famoso ator, a obra é expositiva o suficiente para dar conta da parcela do romance a que se propõe. Ainda assim, flui bem o bastante para entregar pancadaria, belas cores, belos cenários, belos trajes e um capricho sonoro capaz de tensionar seus músculos na cadeira.

Duna, finalmente, tem um espetáculo digno de Duna – o melhor blockbuster possível diante de seu texto fonte. Nem fãs nem curiosos se decepcionarão. A segunda parte já foi confirmada para 2023.

Baú: Robert Stam

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A linguagem convencional da crítica sobre as adaptações [de romances ao cinema] tem sido, com frequência, profundamente moralista, rica em termos que sugerem que o cinema, de alguma forma, fez um desserviço à literatura. Termos como “infidelidade”, “traição”, “deformação”, “violação”, “abastardamento”, “vulgarização”, e “profanação” proliferam no discurso sobre adaptações, cada palavra carregando sua carga específica de ignomínia. “Infidelidade” carrega insinuações de pudor vitoriano; “traição” evoca perfídia ética; “abastardamento” conota ilegitimidade; “deformação” sugere aversão estética e monstruosidade; “violação” lembra violência sexual; “vulgarização” insinua degradação de classe; e “profanação” implica sacrilégio religioso e blasfêmia.

Embora o poder persuasivo da suposta superioridade da literatura ao filme possa ser parcialmente explicada pelo fato inegável de que muitas adaptações baseadas em romances importantes são medíocres ou mal orientadas, ele também deriva, eu argumentaria, das pressuposições profundamente enraizadas e freqüentemente inconscientes sobre as relações entre as duas artes. O senso intuitivo da inferioridade da adaptação deriva, eu especularia, de uma constelação de preconceitos primordiais. Em outros textos eu resumi esses preconceitos nos seguintes termos: 1) antiguidade (o pressuposto de que as artes antigas são necessariamente artes melhores); 2) pensamento dicotômico (o pressuposto de que o ganho do cinema constitui perdas para a literatura); 3) iconofobia (o preconceito culturalmente enraizado contra as artes visuais, cujas origens remontam não só às proibições judaico-islâmico-protestantes dos ícones, mas também à depreciação platônica e neo-platônica do mundo da aparências dos fenômenos); 4) logofilia (a valorização oposta, típica de culturas enraizadas na “religião do livro”, a qual Bakhtin chama de “palavra sagrada”dos textos escritos); 5) anti-corporalidade, um desgosto pela “incorporação” imprópria do texto fílmico, com seus personagens de carne e osso, interpretados e encarnados, e seus lugares reais e objetos de cenografia palpáveis; sua carnalidade e choques viscerais ao sistema nervoso; 6) a carga de parasitismo (adaptações vistas como duplamente “menos”: menos do que o romance porque uma cópia, e menos do que um filme por não ser um filme “puro”).

Robert Stam, Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade (2006).