João Gilberto era um vampiro sugador de almas?

Extraído da edição 119 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.


(via DALL-E)

— Então… Quer dizer que você quer se encontrar com João Gilberto?
— É.
— Pois tome cuidado — avisa Menescal.
— Por quê?
— João é perigoso. Tem alguma coisa de sombrio. Ele muda as pessoas com quem tem contato. Capaz de mudar você também.
— Como assim?
— De repente, é capaz de você se tornar um amaldiçoado para todo o sempre.

Faz anos que este humilde editor quer escrever sobre Ho-ba-la-lá – não a música, mas o livro do alemão Mark Fischer (não confundir com Mark Fisher, aquele). Por um motivo ou outro, isso nunca aconteceu, isto é, até agora, quando o universo me forneceu sinais suficientes para retomar o assunto.

Estava em um aniversário (de um grande colaborador do Jornal, inclusive, e que justamente por isso terá sua identidade e credibilidade preservadas), quando me dei conta de que toda a roda, movida por um espírito de esquema de pirâmide (iniciada por mim; o mérito é meu), havia lido Ho-ba-la-lá, um livro esgotado e fora de circulação, portanto caríssimo (apenas quatro edições, preço mínimo R$ 230 na Estante Virtual) e [portanto de novo] obtido apenas por métodos não legais, porém gratuitos1. Ho-ba-la-lá certamente não foi uma bomba, ao menos não em Curitiba, então havia alguma relação de causa e efeito ali.

Pois bem, a premissa do livro é muito simples: Mark Fischer, um alemão, quer porque quer encontrar João Gilberto, o brasileiro, e ouvi-lo tocar ‘Ho-ba-la-lá’, a música. Apenas isso. Porém, qualquer cidadão deste país minimamente cônscio da mitologia nacional sabe que encontrar João nunca foi tarefa fácil ao longo da vida deste gênio. Fischer sabia disso.

Para que encontrar um homem que, evidentemente, não deseja ser encontrado? Para que fazer contato com quem não quer contato nenhum?

Razão nº 1: Porque João Gilberto é um enigma. Porque não está claro o que o instiga, ou se alguma coisa ainda o instiga em seu quarto de hotel — ou onde quer que ele more no momento. Porque circulam histórias estranhas a seu respeito, e não se sabe quais são verdadeiras e quais são estapafúrdias, fantasiosas, inventadas:

Dizem que toca violão o tempo todo, sempre as mesmas canções.

Dizem que conversa com gatos.

Dizem que fala com os mortos.

Dizem que uiva para a lua.

Dizem que, mesmo com os parentes, ele só se comunica por intermédio de bilhetes que lhe são passados por debaixo da porta.

Dizem que, em resumo, ele não se comunica.

Dizem que pratica uma religião estranha.

Dizem que odeia tanto as pessoas que não consegue suportá-las.

Dizem que ama tanto as pessoas que não consegue suportá-las.

Para abordar o problema, Fischer tomou a melhor solução criativa possível. Pois antes de mais nada, o gênero do livro, em sua essência, é um romance policial. Tem o formato, a estrutura, o cheiro. Estruturado em primeira pessoa, tem até um Watson, “que na verdade não se chama Watson coisa nenhuma, e aliás não é homem. Trata-se da minha fiel companheira Rachel, o cão rastreador mais rápido do mundo e a intérprete mais habilitada do Rio de Janeiro, porque, claro, não falo uma palavra de português. É uma judia líbano-brasileira com um diabo tatuado na panturrilha; pesa duas vezes mais que eu, prefere mulheres a homens e desde o primeiro instante eu soube: aí está meu Watson”.

Fischer, que leva a tarefa muito a sério (alemães…) sem se levar muito a sério (cariocas!), oferece-nos uma narrativa deliciosa, extraordinária, entrevistando figuras como João Donato, Miúcha, Marcos Valle, Roberto Menescal e outros indivíduos menos conhecidos, mas ainda mais marcantes. A conversa com o garçom Garrincha – já publicada na Enclave, tal qual o trecho que abre este texto – é surreal e sintetiza a complexidade de tentar decifrar o indecifrável:

Começo de imediato com meu interrogatório:

— Garrincha, por quanto tempo você foi o cozinheiro preferido de João [Gilberto]?

— Pouco mais de cinco anos, mais ou menos.

(…)

— E como era quando João ligava?

— Sempre a mesma coisa. Onze da noite, no Plataforma, o telefone tocava, e João dizia: “Boa noite, Garrincha”. E eu: “Boa noite, João”. Ele: “Como vai, Garrincha?”. “Tudo bem, João.” “E como vai sua esposa, Garrincha?” “Bem também, João.” “E as crianças, como estão?” “Todas bem, João.” “Adriana sarou?” “Sarou, sim. A gripe já passou.” “O que tem hoje no cardápio, Garrincha?” “Acabamos de receber peixe fresco, João. Um bacalhau maravilhoso, servido com legumes e arroz. É muito bom, acabei de experimentar, comi ainda agorinha.” “E o que mais tem, Garrincha?” “O de sempre, João: picanha, churrasco, costelinha, lombo de porco, costeleta de cordeiro, atum, perca, lagosta, peixe-espada.” “O peixe-espada está bom, Garrincha?” “Está excelente, João. Vou mandar grelhar e temperar com uma nova mistura que acabei de inventar. Você vai adorar.” “Vou querer o steak, Garrincha.” “Está bem, João.” Então, entre meia-noite e uma da manhã, o mesmo entregador levava quase sempre o mesmo prato para ele. Deixava o pedido no chão, diante da porta. E, no dia seguinte, a cena toda se repetia.

— Quanto tempo durava a conversa ao telefone?

— Uns quarenta minutos.

— E assim foi durante cinco anos?

— Assim foi durante cinco anos.

— Você nunca viu João pessoalmente?

— Não, nunca vi.

— O entregador chegou a ver ele?

— Só uma sombra, ou a mão que surgia de detrás da porta para, rapidinho, estender o dinheiro. Às vezes, ele já deixava um envelope com o dinheiro no chão.

— Mas isso é piração, Garrincha.

— Isso é João Gilberto, meu senhor.

(via DALL-E)

Portanto, há situações e personagens um tanto absurdas, e a leitura do autor é sempre apurada – como, de fato, a de um detetive noir. O trecho abaixo parece extraído de Raymond Chandler ou do Vício Inerente de Pynchon:

Watson veste uma blusa vermelha bem decotada e traz brincos enormes nas orelhas. Parece uma Mata Hari mais avantajada. Eu a trouxe comigo e sugeri o estilo sexy porque, depois de um minuto ao telefone com Otávio, logo vi que seu inglês não era suficiente para ser compreendido e que ele era o tipo de sujeito que, com homens, fala pouco, mas, diante de uma mulher, não para de falar.

E, caso a presença de Watson não bastasse, eu tinha trazido algo mais, uma arma secreta: o baseado que João Donato me dera e que eu, em razão do inesperado progresso das investigações, ainda não conseguira fumar. Ele seguia guardado no meu maço de cigarros — a salvo, sequinho e muito eficaz.

Independentemente da direção, Mark Fischer parece se deparar com uma conclusão comum: João Gilberto é uma espécie de vampiro, um ser de outra dimensão capaz de alterar a consciência (e a lucidez) daqueles que convivem com ele. Trata-se de um padrão: ninguém – quase ninguém – passa ileso, como alertaria Menescal.

O que traz um elemento extremamente doloroso, mas ainda mais complexo para Ho-ba-la-lá: Fischer se matou pouco antes do lançamento do livro.

Pois é.

Respostas que trazem perguntas, dúvidas que trazem indagações2. Sua morte é um paratexto assustador da obra, o que – numa leitura completamente irresponsável, favor não levar a sério – parece salientar a tese do autor. Assim como Fischer, numa tarefa hercúlea e impossível, queria entender João Gilberto, queria eu entender Mark Fischer. Agradecê-lo e abraçá-lo antes de mais nada.

Ho-ba-la-lá é extraordinário, obra-prima mesmo, porque consegue contar uma história envolvente no melhor formato possível para desenvolvê-la. Mais do que isso, é extraordinário por ser muito, muito pessoal. Nada cativa mais que uma tarefa quixotesca, incapaz de ser justificada para além de uma coceira individual e (via de regra) ilógica. Não é preciso conhecer ou gostar de João Gilberto para ser puxado por esse vórtice.

Com todas as suas particularidades, o livro também é o caso típico de obra que não só não perde por partir de uma mente estrangeira, como provavelmente só poderia ter sido escrito por um estrangeiro. O olhar externo intrinsecamente permite rupturas e permissões inalcançáveis àqueles que vivem dentro do contexto retratado.

Se Mark Fischer encontrou João Gilberto?

Leia Ho-ba-la-lá.

Adam Worth, Napoleão do crime (parte 2)

Extraído da edição 81 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Georgiana, Duquesa de Devonshire (1785-87), por Thomas Gainsborough. “Eu poderia acender meu cachimbo nos olhos dela”, irlandês bêbado desconhecido.

Na parte 1, começamos a narrar as peripécias de Adam Worth pautados pelo livro O Napoleão do Crime (1997), de Ben Macintyre.

Hoje, acompanharemos Henry J. Raymond, a identidade abraçada por Worth após deixar os Estados Unidos e rumar à Europa, em 1869. Se você tem a sensação de já ter ouvido esse nome em algum lugar, é porque Henry Jarvis Raymond (1820-1869) foi um dos fundadores do New York Times. A nova alcunha de Worth, portanto, já partia de uma piada com o recém-falecido – e homem ilustre da época.

Adam Worth e Piano Charley (agora Charles H. Wells), literalmente parceiros em crime, desembarcaram em Liverpool para morar no hotel Washington, onde se interessaram (ambos!) por uma funcionária do bar.

A irlandesa Kitty Flynn, uma ambiciosa jovem de origem pobre, passaria anos envolvida num triângulo amoroso que pareceu funcionar muito bem a um trio eternamente descolado dos padrões éticos ou morais vigentes. Em Liverpool, Worth roubaria as joias de uma loja de penhores após distrair o dono e copiar sua chave em cera. Moleza.

Ansioso, o trio se moveu para Paris no final de 1870, durante a Guerra Franco-Prussiana, onde (e quando) “uma mulher podia ser presa por fumar nos jardins das Tulherias, porém a imoralidade pessoal era quase de rigueur. A superfície era magnífica, mas a corrupção e a libertinagem desregradas”.

Lá, o trio abriu um bar, cuja engenhosidade era tão cinematográfica que merece ser detalhada:

O American Bar era uma operação dupla. O segundo andar do prédio foi transformado numa espécie de clube para norte-americanos em visita à cidade, completo com as últimas edições dos jornais dos Estados Unidos e escaninhos de onde os expatriados podiam apanhar sua correspondência. (…) Nos andares superiores da casa, entretanto, a cena era bem diferente. Ali Worth e Bullard montaram uma operação de jogo em grande escala, bem equipada e totalmente ilegal. Importando crupiês dos Estados Unidos e especialistas em bacará, deram ao covil um lustro cosmopolita, mas foi Kitty quem acabou sendo a principal atração, porque “sua beleza e seus modos cativantes atraíam muitos visitantes norte-americanos” (…).
Havia um botão de alarme discreto, instalado atrás do bar, “que o barman apertava, tocando uma campainha nos salões de jogos acima sempre que a polícia ou qualquer pessoa suspeita entrasse”. Segundos depois de ter soado o alarme, Worth podia apresentar os andares superiores do número 2 da rue Scribe de forma tão calma e respeitável quanto os inferiores.

O ambiente, hoje um dos hotéis mais caros de Paris, funcionou por três anos, durante os quais a dupla mantinha roubos esporádicos (de diamantes, por exemplo) e o trio galgava espaço na nobreza local. Quando começaram a dar bandeira de suas atividades paralelas, os três venderam o bar e zarparam para Londres.

“Henry Raymond”, “Charles Wells” e Kitty Flynn se estabeleceram no Western Lodge, uma bela mansão onde Worth atingiria sua maturidade picareta e se converteria num verdadeiro líder do submundo, sempre marchando conforme a própria batida.

Personagem de traços peculiares – “orgulhava-se de um regime pessoal severo, abstinha-se de bebidas fortes, levantava-se cedo, trabalhava duro na profissão escolhida, fazia donativos às instituições de caridade, talvez até frequentasse a igreja e, ao mesmo tempo, quebrava todas as leis que pudesse encontrar e enriquecia-se com a riquesa dos outros” –, ali se concretizava o Napoleão do crime.

Usando seus associados de maior confiança, ele distribuía serviços criminosos, em geral em bases contratuais e através de outros intermediários, para homens (e mulheres) selecionados do submundo de Londres. Os vigaristas que executavam os trabalhos sabiam apenas que as ordens eram passadas de cima para baixo, que os lucros eram bons, o planejamento impecável e que os alvos – bancos, caixas de estações ferroviárias, residências de indivíduos ricos, correios, armazéns – eram selecionados pela mão de um grande mestre. O que eles nunca ficavam sabendo era o nome do homem no topo, nem mesmo o daqueles no meio da pirâmide de comando que Worth estruturara. (…) Worth estava praticamente imune  (…). Sempre fanático pelo controle, Worth estabeleceu sua própria forma de omertà por força de sua personalidade, de sua rígida atenção aos detalhes, de sua supervisão severa mas sempre anônima de todas as operações e do gasto de uma proporção de seus lucros para garantir, se não a lealdade, pelo menos o silêncio. (…)
Sóbrio, trabalhador e leal, Worth era um criminoso de princípios, os quais impunha a sua quadrilha com disciplina rígida. Com exceção de Piano Charley, os bêbados eram excluídos e a violência terminantemente proibida. “Um homem com cérebro não tem o direito de carregar armas de fogo”, ele insistia.

Nesse contexto, Adam Worth roubou a Duquesa de Devonshire, tela de Thomas Gainsborough que você vê na abertura deste texto, em 1876. A duquesa havia sido perdida por décadas, então foi reencontrada, depois adquirida por William Agnew – o maior preço já pago por uma pintura, à época – e exposta na galeria do comprador na Old Bond Street, para deleite do público. O quadro já era objeto de disputa entre os Rothschild e os Morgan nos Estados Unidos.

Desesperando todos eles, de madrugada, Worth/Raymond subiu pela frente da galeria com auxílio de um capanga e se apoiou no parapeito da janela. Tudo isso enquanto o vigia dormia (bons tempos…).

Com um pé-de-cabra, forçou o batente da janela e entrou. Cortou o retrato da moldura com uma lâmina, enrolou-a cuidadosamente e saltou nos ombros de seu assistente para sumir com a duquesa e causar um alvoroço sem precedentes.

O quadro permaneceria com o Napoleão do crime por 25 anos, durante os quais ele a levaria em suas inúmeras viagens. Nesse período, Worth/Raymond, cada vez mais a figura viva da duplicidade, criaria uma enorme obsessão pela duquesa e se envolveria em uma negociação extremamente peculiar para devolvê-la.

Mas este texto já se estendeu muito: os detalhes, somados ao desfecho de Adam Worth e às suas influências na (Mori)arte, estão todos lá n‘O Napoleão do Crime (1997), que obviamente recomendamos.

Adam Worth, Napoleão do crime (parte I)

Extraído da edição 80 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Leitores das aventuras de Sherlock Holmes já ouviram – ou melhor, leram – essa descrição. Não é por acaso, afinal trataremos da maior inspiração para o arquivilão prof. Moriarty.

O criminoso mais brilhante do século 19 foi um baita cavalheiro, de certa forma. Adam Worth, possivelmente nascido Wirth, provavelmente nascido Werth, certamente nascido na Alemanha (em 1844), migrou cedo com sua família para os Estados Unidos.

Quando a Guerra Civil Americana estourou, em 1865, Worth já era um adolescente promissor na arte da falcatrua: ele se consolidou como um bounty jumper (saltador de recompensa, em tradução livre). Ou seja, sua atuação consistia em alistar-se tanto na União como na Confederação, e então sumir.

Conforme relata Ben Macintyre em O Napoleão do Crime (Cia. das Letras, 2000), fonte das informações e das citações deste texto:

Durante os meses seguintes, Worth estabeleceu um sistema: ele se alistava num regimento qualquer, sob nome falso, recebia a gratificação que estivesse sendo oferecida, em seguida desertava. Assim foi que vagou de um lado do esparramado exército a outro, mudando de nome a cada parada e desenvolvendo um talento para a farsa que, mais tarde, tornar-se-ia uma profissão em tempo integral.

A prática, além de obviamente malvista, era criminosa. Bounty jumpers costumavam utilizar tantas identidades quanto possível, e Worth havia contado com a sorte ao ser erroneamente declarado morto, quando ainda lutava (a princípio, de verdade) pela União, em 1862.

Após a guerra – encerrada em 1865 –, Worth se estabeleceu em Nova York, que acolhia quilingues e sevandijas de todos os tipos (o filme Gangues de Nova York, baseado em livro homônimo de não ficção de 1927, se passa basicamente nesse cenário).

As coisas começaram a decolar para Adam Worth. Primeiro praticando pickpocketing (crimes de carteirista), depois como líder de gangue. Logo foi preso, e mais rapidamente ainda fugiu. Um universo se abriu para o malandro quando Fredericka Mandelbaum o acolheu.

Poderosa matriarca do submundo, “Marm” era uma receptadora/interceptadora extraordinária, servindo como um verdadeiro sistema de conexão entre mercadorias roubadas e eventuais compradores. Perfeitamente encaixado nessa equação, Worth passou a roubar bancos, atividade na qual se destacaria pelo resto da vida.

Nesse ramo, compôs sua obra-prima (até então, vamos com calma!) em 1869, ao lado do parceiro americano Charles Bullard, o Piano Charley, e do irlandês Big Ike Marsh. Juntos, eles assaltaram o Boylston National Bank, em Boston. Para fazê-lo, elaboraram um plano engenhoso:

Fazendo-se passar por William A. Judson e Co., negociantes de tônicos de saúde, os parceiros alugaram o prédio adjacente ao banco e puseram uma divisória na frente da janela na qual estavam expostas “umas duzentas garrafas contendo, segundo os rótulos, quantidades de ‘Tônico Oriental Gray'”. “As garrafas tinham o um propósito duplo (…); o de mostrar o negócio e o de evitar que o público visse o lugar” (…).
Depois de calcular cuidadosamente o ponto onde a parede da loja era contígua ao cofre de aço do banco, os ladrões começaram a cavar. Durante uma semana, trabalhando apenas à noite, Worth, Bullard e Marsh empilharam o entulho nos fundos da loja até que, finalmente, “o cofre ficou exposto”.

Restou cortar o cofre, o que não foi tarefa fácil, tendo sido pacientemente realizada com a realização de inúmeros furos pequenos, os quais formaram um buraco de apenas 45 x 30 centímetros, pelo qual Worth entrou. De lá, começou a retirar o tesouro, que dormia guardado em baús de lata. Pela manhã, os três sumiram em uma carruagem, então pegaram um trem para Nova York.

O roubo – de cerca de 200 mil dólares – foi, sob qualquer critério, estrondoso, chocando a sociedade (e, naturalmente, trazendo dores de cabeça para a dupla protagonista na ação). Marsh logo retornou à Irlanda, onde bebeu seu dinheiro. Então voltou aos EUA e foi preso tentando assaltar outro banco.

Worth e Bullard, cientes dos riscos envolvidos – a agência Pinkerton, precursora do FBI, passou a persegui-los – decidiram rumar à Europa. Antes disso, colheram os frutos do roubo ao Boylston National Bank:

Agindo com rapidez, o par despachou os papéis roubados para um advogado (…) com instruções para esperar alguns meses, depois vender os títulos por uma fração do valor real e remeter os lucros no tempo devido. Na época esse era um método amplamente aceito de se recuperar propriedade roubada, sob as vistas da polícia, que muitas vezes ajudava a negociar o retorno dos títulos, para vantagem tanto dos donos quanto dos ladrões. “Tudo que [os ladrões] precisam fazer é entrar ‘num acordo’, o que significa abrir mão de parte dos lucros, e depois dedicar suas horas de lazer a planejas novas vilanias”, observou o Boston Sunday Times.

No Velho Continente, a vida dupla de Adam Worth começou, ou melhor, desenvolveu-se como nunca. Ali ele morreu novamente: o gentleman Henry J. Raymond – um bon-vivant, um aristocrata – tomou seu lugar. E a história de Worth/Raymond ainda notabilizaria diversos episódios, todos pitorescos.

> PARTE 2 <

Baú: Arthur Conan Doyle

Extraído da edição 44 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Lestrade e eu ficamos em silêncio durante alguns momentos; depois, impulsivamente, batemos palmas, como ao final de um espetáculo. O sangue subiu ao rosto de Holmes, e ele inclinou-se, como o ator dramático que recebe a homenagem da assistência. Era nesses momentos que ele deixava de ser uma máquina pensante e traía seu amor pela admiração e pelo aplauso. A mesma criatura orgulhosa e reservada, que desdenhava da notoriedade popular, ficava emocionada ao receber o elogio espontâneo de um amigo.

Arthur Conan DoyleOs seis bustos de Napoleão1904.

Detetive Conan Doyle

Extraído da edição 8 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Conhecido por criar Sherlock Holmes, Arthur Conan Doyle acumula fatos curiosos para mais de uma vida. (Por sinal, “Doyle” é seu único sobrenome – “Conan” é apenas um nome do meio). Além de ter se envolvido com a popularização do ski e com a crença na existência de fadas, Sir Arthur também influenciou diretamente duas absolvições criminais de seu tempo.

Em uma delas, o advogado George Edalji foi condenado à prisão por supostamente mutilar animais – cavalos, especificamente. Cartas anônimas enviadas à polícia foram atribuídas a Edalji, que, contando com o empurrãozinho de preconceito alheio em relação à sua origem indiana, não teve escapatória quando um pônei foi encontrado em más condições no vilarejo de Great Wyrley, onde morava.

Perseguido desde a infância por cartas anônimas de ódio, não tardou para que Edalji conseguisse um mandato de sete anos de prisão, isso em 1904.

Houve, no entanto, uma campanha de apoio à absolvição de Edalji, e Conan Doyle foi um de seus maiores porta-vozes. O escritor chegou a visitar a cena do crime e estudar todos os depoimentos relacionados ao caso, emulando sua criação mais famosa.

George Edalji, segundo Conan Doyle, não teria condições de maltratar animais à noite e ainda fugir da polícia, dadas as suas claras limitações visuais (um argumento não utilizado por Edalji em sua defesa, tamanha a descrença de que ele seria de fato condenado).

As cartas e as mutilações a animais continuaram mesmo com o advogado já preso, o que contribuiu para a verificação do caso. Em 1907, Edalji foi solto. Essa narrativa inspirou o romance Arthur & George, de Julian Barnes, e uma subsequente série de televisão.