Nuno Rau: Quando o assunto é poesia & literatura não siga nenhuma regra. nem esta [bonus track: saudade dos aviões da panair?]

Coluna de ombudsman extraída da edição de outubro de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


[…] e no entanto, o poema é um objeto que se afirma pela sua precisão, e tal precisão pressupõe regras. A rebeldia inerente a toda criação por certo se sente instada a contestar isso que soa como cárcere, limitação, bloqueio à livre expressão. Percebo agora que as linhas acima merecem uma explicação do que as teria motivado: a mensagem do escritor Igor Castanheira dos Santos, que, motivado pelo desejo de ajudar o jornal, oferece uma série de sugestões que, a despeito de não explicitarem sua motivação, imagino terem por objetivo melhorarem o periódico (o que implica, por óbvio – o que a leitura das sugestões confirma –, a percepção de fragilidades na proposta editorial do RelevO. A intenção é inegavelmente meritória, e o escritor, para que não pensemos que tirou da cartola como uma ninhada de coelhos tal conjunto de providências necessárias, elenca sua formação acadêmica, Ciências Econômicas e Marketing, o que, de saída, suscitaria outro debate, sobre a propriedade de tais formações em relação a uma política e uma prática editoriais no campo da literatura. Antes que se pense que este ombudsman advertiria o bem-intencionado escritor sobre a necessidade de formação específica em literatura ou edição para justificar seu direito a sugestões, esclareço que não, rigorosamente não. A literatura e sua edição se alimentam da diversidade de perspectivas, e qualquer “reserva de mercado” aqui seria um dano, uma limitação perigosa. As ciências da literatura, que nas universidades produzem dissertações e teses mais do que necessárias, ampliam o debate, aprofundam questões, dissecam seu objeto e expõem aspectos antes não observados, alimentam a crítica com novas possíveis abordagens, não precisam provar sua condição de existência; no entanto, se afirmasse que o exercício da criação (e considero aqui também a edição como um exercício de criação) tem como seu caminho incontornável o método científico e o trânsito pela produção acadêmica, essa afirmação seria um distanciamento da realidade. Se assim fosse, verificaríamos que a melhor produção literária viria, incontornavelmente, do mesmo lugar que teses e dissertações, o que está longe de ser uma realidade. Esclarecido este pequeno ponto, preciso, antes de prosseguir, confessar minha má vontade com o que chamam de “marketing”. A má vontade começa com a palavra em si, uma importação provavelmente desnecessária, como approach, asset, budget, coach, lead, trend e toda uma parafernália de palavras em inglês que só comprovam nossa rendição a um (não tão) novo colonizador (alguém atento poderá dizer: mas você aceitou a função de ombudsman, meu caro, veja bem: ombudsman…. É verdade, não tenho resposta para essa objeção, tenho e aceito minhas contradições). Não sei se vocês também sentem vontade de rir quando, numa reunião, alguém abre a boca e, quase sempre com um indisfarçável ar empolado, emite uma frase como “meu budget não prevê essas despesas”. Sempre me ocorrem pensamentos em torno da indigência cultural e da aceitação acrítica do que quer que venha, desnecessariamente, na língua do colonizador. O outro lado dessa má vontade tem a ver com a utilização majoritária do que chamam de marketing: ele tem por objetivo convencer as pessoas a adquirirem, quase sempre, o que não precisam com um dinheiro que não possuem. Seu intuito é fazer com que o Deus Mercado mantenha suas patas sobre a sociedade, e assim sigam existindo exploradores e explorados, os que possuem muito e os que nada possuem. Não, ninguém precisa me dizer que não vamos conseguir fazer a revolução. A contrarrevolução, na realidade, é a tendência mais forte, e a tal ponto que colonizou as consciências até no uso das palavras. É uma longa discussão que não caberia na cota máxima de cerca de 1500 palavras que me cabe no Jornal, e nem pretenderia esgotar.

Feitas as confissões necessárias, volto para o terreno da literatura e da edição, e da necessidade ou não de regras. O título deste mês envolve, na realidade, uma certa provocação, na medida em que o desdigo na primeira frase. A realidade é que falta um termo na equação que o título afirma: quando o assunto é poesia & literatura não siga nenhuma regra, se essa regra representar um consenso socialmente estabelecido. Não se faz arte com base em consensos socialmente estabelecidos. Um exemplo: quando os livros de Rubem Fonseca passaram a ser amplamente reconhecidos como potentes exemplares de uma certa literatura de matriz urbana, passaram a emergir centenas de emuladores e emuladoras da sua escrita, e, o que é pior ainda, a emulação se dava pela superfície, pela aparência, e nenhuma dessas pessoas seguiu o processo de depuração e crítica que o autor de A coleira do cão percorreu até chegar a uma estética precisa. Minha má vontade, nessas horas, também se manifesta, e a tal ponto que passei anos sem conseguir reler Rubem Fonseca, porque sempre me vinham à memória lembranças de seus imitadores. O mesmo com Leminski, um poeta cuja forma é replicada quase ao infinito. Pior destino tem Charles Bukowski, que tem sub-réplicas não só de sua escrita, mas também do drama que encenou em vida envolvendo álcool, sexo e literatura, só que extraído, precisamente, o drama: são apenas garotos de classe média, entediados com suas vidas limitantes e sem imaginação para desenvolver algo próprio (sem falar da misoginia geralmente associada a essa emulação).

Munido das melhores intenções – disso não tenho a menor dúvida –, Igor apresenta suas propostas que, a rigor, não são boas ou ruins em si mesmas, porque dependem de contexto, mas teve, a meu ver, a má sorte de começar com “invistam em textos mais curtos”. Preciso confessar outra má vontade: a apropriação de termos do campo dos negócios para conversas que nada têm a ver com isso me incomoda demais. Quando leio algo como “invistam em textos curtos”, fico pensando nos editores despejando expressivas quantias na aquisição de ações do tipo “textos curtos”, sem saber que a saturação dos mercados, no campo da literatura (e da arte em geral) pode provocar sua queda irreversível, cuja recuperação às vezes dura o tempo de uma geração. Fico imaginando alguém como João Ubaldo Ribeiro lendo uma frase assim, tendo ao fundo, em sua estante, Viva o povo brasileiro. Ou Jorge de Lima, redivivo, escutando que o poema curto é o grande lance, que ninguém lê mais do que 140 caracteres (e aqui nesse texto já vamos pela casa dos 6.300). Quantos caracteres tem Invenção de Orfeu? Pensando bem, talvez haja uma semelhança entre o mercado de ações e a literatura: quando uma grande quantidade de pessoas está indo numa direção, é sempre saudável mensurar a possibilidade de mudar de rumo, porque manadas não raro marcham sem uma percepção dos riscos, justamente porque seus membros acreditam que a maioria sempre está certa, além de ser mais confortável e menos trabalhoso seguir receitas. Enquanto ainda há quem pense que ninguém mais lê além de 140 caracteres, às vezes tudo que quero é ler um romance como Doutor Fausto, ou reler a Divina Comédia (ou Invenção de Orfeu, para não esquecer de Jorge). Quando uma parcela da produção em prosa “investe” em frases curtas, tudo que desejo é me perder na sintaxe de Saramago, em suas labirínticas sentenças que não encontram ponto final. Quando uma massa nada desprezível de textos apontam a experiência urbana na literatura e na poesia, há em mim uma sede de reencontrar Grande sertão: veredas, ou algum(a) novo(a) autor(a) que se debruce sobre a realidade e a linguagem dos rincões desse país continental. Rosa não era isento de regras, muito ao contrário, sua escrita seguia regras rígidas: mas eram suas regras, sua visada crítica sobre o real. Assim também Graciliano, e Clarice, e Hilda, e Rubem, e toda pessoa que quiser fazer arte, que quiser fazer com que as palavras dancem sob a aparente fixidez da tinta sobre o papel (ou dos pixels nas telas).

Na verdade, tudo faz crer que há sempre um mundo estranho lá fora, e esse mundo reclama representação e diálogo. Penso nisso ao ler as propostas de Bolívar Escobar, as exumações textuais de Gloria Evangelina Anzaldúa (que potência!), a síntese e a elisão em Ana Clara Viana, a apropriação dos lugares comuns da fala em contraste com o absurdo da realidade em Zeh Gustavo, a densíssima atmosfera rarefeita dos poemas de Verônica Ramalho (sim, só um oxímoro poderia sintetizar o impacto dessa pequena série). Penso também que os poemas de Natasha Sardzoska, a despeito do mérito da tradução, me trazem a ideia de que saber várias línguas não é garantia de produzir bons poemas e bons livros, porque, como impressão geral, achei os poemas banais, crivados de lugares comuns, à exceção de Testamento. Penso também em como é bom poder estar equivocado em meus juízos provisórios, e em como, não raras vezes, essa provisoriedade vai se instaurando em permanência. Penso em gostar da edição de setembro equilibrar poemas e prosa, e humor, e cultura (as colunas Enclave e Brazilliance mantendo o brilho). Penso, enfim, que os editores tateiam buscando seus caminhos, assim como escritores, e ombusdmans, acertam, erram, mas a beleza está na procura e na não aceitação de regras socialmente impostas.

Bonus track: não posso negar que me divirto de algum modo com a querela literária encenada nas cartas. O tom antigo na elaboração dessa pendenga literária encena um não sei quê de crítica ao próprio argumento da peça, e isso é o que mais me agrada, e diverte. A despeito disso, tenho emoções contraditórias a esse respeito: ao mesmo tempo que sinto um certo fastio em face de qualquer querela no campo literário, em geral produzidas por egos ululantes e bem maiores do que o espaço que os contém, sinto falta das querelas reais, de contendas estéticas em que o problema de nosso presente seja posto em xeque. O oposto da querela é a passada de pano, a ação em grupo de pressão embebida em farisaísmo, e aí o fastio se reveste de náusea. A querela ora em questão, a despeito das diatribes hilárias, não foi exatamente a um ponto, e talvez seja esse meu maior incômodo.

Som incidental: Jonathan Swift comparece na última página do RelevO como o mais jovem e ácido escritor do momento.