Extraído da edição 62 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.
A Enclave de hoje é menos informativa e mais reflexiva. Ou “faz uma provocação”, como diria o tio que ainda considera rock’n’roll um elemento subversivo, ou a moça do processo seletivo do RH, ou o acadêmico submetendo seu trabalho a um congresso local desértico.
Mês passado, concluí no Playstation 4 o jogo Batman: Arkham Knight (2015), quarto e último título da saga Batman: Arkham. Um jogo de mundo aberto, isto é, que te permite circular livremente por toda a área projetada.
Não poderia me importar menos com o protagonista ou com seu universo, tampouco havia jogado qualquer um dos títulos anteriores. Nunca havia lido qualquer história em quadrinhos sobre Batman e só assisti à mesma trilogia (Dark Knight) que boa parte do planeta viu.
O jogo havia me atraído simplesmente porque a cidade (Gotham) parecia atraente – de fato é – e voar sobre ela parecia prazeroso – também é.
Paralelamente, o jogo mais recente com o protagonista Homem-Aranha, Marvel’s Spider Man (2018), permite que o jogador controle o personagem em Nova York – algo distante de ser inédito, mas que obteve maior sucesso nessa encarnação. Ainda não joguei, mas parece divertidíssimo.
Isso me leva ao seguinte ponto: se eu (1) fosse criança ou adolescente e/ou (2) me interessasse genuinamente por esses personagens – considerando que posso controlar o Batman em Gotham e o Homem-Aranha em Nova York –, o que me faria abrir um livro?
Indo além, o escritor contemporâneo que almeja qualquer tipo de reconhecimento além de seus amigos conhece as principais narrativas contemporâneas? Por fim, esse conhecimento é relevante para que ele atinja qualquer que seja seu objetivo?
Cem anos atrás, não havia videogame, não havia televisão e o cinema era bem diferente daquilo que conhecemos. Naturalmente, as mídias em questão evoluíram de forma exponencial nesse período, bem como a produção musical.
Até o teatro, que é literalmente movimentado por pessoas que praticam teatro, consegue utilizar novas possibilidades multimídia a seu favor.
A literatura não. Nem seria justo cobrar o mesmo avanço das mídias recentes, afinal trata-se de uma arte muito mais antiga. Sugiro meramente enxergar esse cenário como premissa.
Explicar o valor da literatura é pregar para convertido. Mas desconfio – e aqui me posiciono sobre a segunda pergunta – que boa parte dos autores com que convivemos, vivendo de escrita ou não, não tem a menor ideia de como as principais narrativas do planeta são consumidas hoje.
Isso inclui os videogames, que movimentam bilhões de dólares por ano e entregam algumas das obras mais interessantes da Terra – a trilogia Mass Effect é tão excepcional quanto qualquer romance ou filme excepcional.
O RelevO já tem quase dez anos, e particularmente me envolvo com isso há pelo menos oito. Nesse tempo, tivemos contato direto e indireto com perfis variados de autores – talentosos e fracos, frustrados e orgulhosos, consagrados e obscuros (e combinações entre esses elementos).
Uma quantidade razoável acredita enfaticamente que cabe ao planeta reconhecer seu brilhantismo, isto é, do autor – o planeta é só um receptáculo de seu imensurável (e despercebido) talento, rotacionando especificamente em razão dele.
E sinto – não é ciência, não é peer-reviewed, é apenas experiência empírica com intuição calibrada – que muitos escritores ainda enxergam a literatura com o olhar de cem anos atrás (e que pouco ou nada aconteceu com as artes desde James Joyce).
Sem noção alguma de como a roda gira, do que é uma roda e do que significa girar. Apenas à espera de uma editora e de leitores.
Porque, na verdade, explicar o valor do videogame como arte narrativa também é chover no molhado. A literatura é por si só um fim e um ponto de partida: aquilo que se destaca nela logo é adaptado a outras mídias.
Não proponho que todo artista seja um gamer, tampouco defendo a mídia porque é moderna. Sugiro que a compreensão do que move as narrativas mais estrondosas do planeta (em termos de investimento e impacto cultural imediato) pode refinar um pouco a cosmovisão.
Alheio a tudo isso, o escritor contemporâneo está mais próximo do tio do rock ou da moça do RH.