Baú: Marco Aurélio

Extraído da edição 100 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

7. Jamais estima algo como vantajoso a ti, se vier a te obrigar algum dia a violar tua fé, a abrir mão do respeito que tens por ti, a odiar alguém, levantar suspeita, lançar maldições, ser hipócrita, desejar algo que exige paredes e tapeçarias. Com efeito, aquele que preferiu a sua própria inteligência, a sua divindade tutelar e o culto religioso em razão desta dignidade, não atuará em nenhuma tragédia, não se porá a lamentar e dispensará o isolamento e a presença maciça das pessoas; e, sobretudo, não viverá nem se apegando à vida, nem fugindo dela. Não o preocupa que sua alma permaneça por um intervalo maior ou menor de tempo tendo um corpo por invólucro; se, com efeito, for necessário desde já que ele o abandone, estará pronto para isso e partirá sem qualquer embaraço, como o faria em relação a outras atividades que pudesse executar reservada e decentemente. Por toda a vida, seu único cuidado é manter seu pensamento ocupado com o que é próprio a um ser vivo racional e social.

8. No pensamento daquele que foi contido pela moderação e purificado, não podes descobrir nada de purulento, imundo nem que prossegue supurando internamente. Nem o destino o pega com sua vida incompleta, como se diz de um ator trágico que se afasta antes de encerrar a peça e completar seu papel. Ademais, nele não verás servilismo, nem afetação, nem demasiado apego, nem demasiado desapego, nem sujeição a um ajuste de contas nem dissimulação.

9. Honra a faculdade de pensar e conceber opinião. Tudo se encontra nela, pois não há na tua faculdade condutora um pensamento que não esteja de acordo com a natureza e a constituição de um animal racional. Ela nos prescreve a não precipitação, a boa administração das relações com os seres humanos e a obediência dos deuses.

10. Então, descartando tudo o mais, retém apenas esses poucos princípios, lembrando, ao mesmo tempo, que cada um se limita a viver o presente, que tem duração muito curta; quanto ao restante, é incerto ou impenetrável. Efêmera, portanto, é a vida de cada um e pequeno é o cantinho em que vive; efêmero, inclusive, é o mais duradouro dos renomes oferecidos pela posteridade, e até isso segundo uma sucessão de pessoas medíocres que não tardarão a morrer, que nem sequer conhecem a si mesmas, muito menos aquelas que morreram há muito tempo.

Marco Aurélio (121-180 d.C.), Meditações, Livro III (Edipro, trad. Edson Bini, 2019).