Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2016 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
Um dos experimentalismos do RelevO está em admitir um crítico editorial entre as páginas de um jornal literário. E mesmo tal temeridade parece pouco aos diretores, que convocam o colunista a se vestir de apicultor para apreciar ninhos de marimbondos como se fossem aqueles globos terrestres dos professores de Geografia.
Desta vez, o nosso alvo e o culto ao “jornalismo independente”. Afinal, como e que um valor profissional foi se transformar em recurso de marketing? Antes de abordarmos o problema, exibimos um making of: pela metade de cada mês, o editor envia a este ombudsman um relatório. A iniciativa favorece o diálogo entre os agentes da publicação e evita que um texto escrito remotamente perca de vista o “chão da fábrica” do veículo.
A lista dos temas assinala comentários de leitores, impasses de ordem administrativa, projeções editoriais e, em menor medida, duvidas filosóficas. As sugestões ambientam o ombudsman ao calor das repercussões em vez de o enclausurar em sua solidão de articulista. Em fevereiro, enquanto jurados cariocas concediam mais um “deeeeeez” a Estação Primeira de Mangueira, a caixa postal da ouvidoria recebia as provocações do editor Daniel Zanella. Uma delas saltou para fora da tela:
– O que é ser independente?
Quando se deixa de ser independente? Um veículo que já circulou com verba pública, via leis de incentivo, é um veículo totalmente independente? Tecnicamente, um veículo que depende de assinantes e anunciantes – como e o nosso –, e dependente deles. E se [o jornal] fosse feito só com o meu dinheiro? Ainda assim seria dependente de mim.
Para entender o porquê desse encadeamento de inquietações do editor, basta lembrarmos como seria fácil listar umas três dezenas de redações, coletivos e agencias de jornalismo que buscam colar sobre si o rótulo de “independente” – embora nenhum deles seja o RelevO. Mas o que se esconde detrás de palavra tão cobiçada e tão maltratada pela mídia? A coluna deste mês visita o saboroso pomar da imprecisão e da multiplicidade para saber por que a independência editorial pesa tanto aos ombros.
A interdependência
Professores universitários da UnB, da UFSC e da UEL aceitaram compartilhar conosco o que pensam da independência editorial. Confira os comentários exclusivos para leitores do RelevO, a começar por Gustavo de Castro, docente de Estética na Universidade de Brasília:
“A independência é um mito. Um belo mito a ser cultivado – o que o assemelha a liberdade. Na prática, todo mundo depende de todo mundo. E todo mundo independe de todo mundo. Mesmo os jornais, quando querem ser independentes, ficam na ‘dependência’ do reconhecimento, ou na dependência dos patrocinadores, ou da Lei Rouanet. O que existe mesmo e a interdependência”.
“O uso [indiscriminado] do termo ‘independente’ se complica num contexto em que não existe jornalismo cultural brasileiro. Ele é uma piada. Está mais para um ‘negócio entre amigos’ (para usar um termo do Juremir Machado, professor da PUC-RS) do que para uma cobertura honesta, distanciada e profunda”, conjectura Gustavo de Castro, que e também poeta, jornalista e escritor. Ele publicou, em 2015, a biografia da poeta Orides Fontela – O Enigma Orides (Hedra).
Só os nômades
Silvio Demétrio, professor de Comunicação da UEL e colaborador da Revista Cult, busca o abrigo da filosofia para opinar: “a independência pode ser pensada como que remetendo aos domínios da singularidade, do ímpar. Em certa medida, romper com o senso comum é constituir-se como independente. É uma ação para sempre ad hoc [argumento usado com o objetivo de defender uma teoria]”.
“A independência e instável por ser essencialmente moderna. E um ato de acatarmos que o tempo nos perpassa. Ela age como se fosse um solvente de tudo que é fixo. Só nômades são independentes. Só o são aqueles que encontram satisfação na impureza do risco. Penso, por fim, na relação de esvaziamento que as palavras de ordem do marketing e do espirito de rebanho produzem sobre toda e qualquer ação – e o que ocorre com uma publicação não é diferente ”.
“Como não encarar o enunciado ‘jornalismo independente’ como um oximoro? [Expressão na qual se combinam palavras de sentido oposto]. Padecemos com um retorno ao publicismo – recalque histórico do romantismo revolucionário –, que agora ressurge numa versão despotencializada porque a serviçoo da redundância, da manutenção dos estados de coisas e do sempre igual. [Portanto,] viva a diferença! O múltiplo! Viva o Singular porque sempre outro!”, arremata Silvio Demétrio, que foi também o mentor intelectual do suplemento Gazeta ALT (2008-2009), em Cascavel (PR).
Garantia de autonomia
Para Elias Machado (Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC), este nosso colóquio literário permite perscrutar a cultura dos jornalistas: “a discussão sobre independência serve para destacar a existência de diferentes tipos de jornalismo: partidário, empresarial, público, cidadão, etc. E cada um deles detém princípios e orientações deontológicas bem distintas. O que me parece importante é que, devido as diferenças existentes entre as instituições, a sociedade ‘funciona’ melhor quanto maior for a garantia de autonomia entre suas diferentes instituições”.
“É evidente que as instituições se influenciam. No entanto, não é recomendável que uma se submeta aos interesses da outra. Seria mais ou menos como se um deputado evangélico subordinasse os interesses do Estado – necessariamente plurais – aos interesses da Igreja a que pertence. Do mesmo modo, quanto mais partidário for um impresso, menor será sua capacidade de difusão para um público mais amplo e ideologicamente diferenciado”, compara Elias Machado, jornalista e doutor em Jornalismo pela Universidade Autônoma de Barcelona.
Contra o quê?
Jornalismo não é matemática – ainda não. No entanto, se houvesse alguma equação que o aferisse, a “independência” seria uma de suas “variáveis dependentes”. E que para saber se um veículo e independente, a primeira pergunta que se faz e: contra o que se é independente? Afinal de contas, almejar a autossuficiência subverte as regências e, em vez de justapor, nós nos contrapomos.
Não basta “ser livre” e “ser contrário”: a publicação precisa identificar o colonizador de consciências que ela rejeita. Senão, carece de ela buscar outro grafismo para gravar feito tatuagem em sua pele. Mesmo que não queira, o RelevO pode ser encarado como independente. Ao menos, o periódico resiste em tratar a literatura como aquela soja ou aquela carne de frango que enviamos ao Porto de Paranaguá para trocarmos por produtos da Apple.