Cezar Tridapalli: Troquem minha assinatura para Palhaço Tico-Tico

Coluna de ombudsman extraída da edição de abril de 2019 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Da edição de fevereiro para a de março deste RelevO, observei uma melhora sensível em dois aspectos: o da diagramação e o da qualidade da impressão do jornal. Dos latifúndios de espaço branco, feitos de terra improdutiva e opressiva, por mim referidos na edição passada, agora vejo uma distribuição mais racional, mais lógica. Os espaços em branco estão lá, mas de fato como respiro, um mindfulness no meio da densidade de muitos textos. Textos, espaço publicitário e espaço em branco agora parecem fazer parte da mesma festa, o que já dá, de cara, uma costura à edição. A qualidade de impressão dispensou a lupa que eu sugeri em fevereiro.

Entendo que a função do ombudsman não seja a do cliente chato que acredita ter o direito de ver o produto consumido tomando a todo o custo a forma de seus gostos pessoais. A editoria pode ler, incomodar-se, ignorar, promover ou não mudanças. E, pelo jeito, rir também do que o crítico convidado para lhe encher a paciência percebeu como defeitos, sejam eles objetivos ou subjetivos, passíveis de discussão. Se na edição passada critiquei o vale-tudo de textos e imagens aceitos pelo jornal (disse que se vale tudo a crítica não vale nada), agora fiquei um pouco “meme John Travolta” (olá, Mateus Senna!) com o editorial que assume reiteradamente que ao RelevO interessa rir. Embora rir e se divertir (o editorial também fala em diversão) tenham ligação íntima, não significam a mesma coisa. Di-versão tem função nobre, podemos dizer até subversiva – e a literatura é subversiva – porque está preocupada em cindir a versão monolítica, em quebrar a expectativa apresentando versões diferentes da esperada. Isso é fugir dos clichês. O clichê, a frase feita, o lugar comum, tudo isso apresenta a versão previsível que a diversão deve quebrar, di-vergir, sub-verter (fazer verter uma versão nova, portanto). Nesse sentido, dizer que “somos até um pouco caóticos”, como o editorial de março afirma, é ótima notícia, desde que se entenda o caos como uma outra ordem possível, que justamente diverge da ordem imperante. Isso é sim diversão. Outra coisa é juntar textos aleatórios e salpicá-los a esmo nas páginas, não propondo ordem alguma, como percebi na edição de fevereiro.

Mas “rir de tudo, rir de todos” já carrega outros sentidos. Graças às preposições, é diferente rir de alguém e rir para alguém ou rir com alguém. Rir para alguém e rir com alguém trazem um convite embutido no sorriso, tipo embarque com a gente nessa risada, no nosso desconcerto do mundo. Rir de alguém é escárnio presente nas piores comédias. Repito: se vale tudo, a crítica não vale nada. Da mesma forma, se é para rir de tudo, para que serve a crítica, por exemplo, de um ombudsman? Troquem minha assinatura para “Palhaço Tico-Tico”.

Como disse lá em cima, há críticas objetivas (o objeto RelevO estava mal impresso em fevereiro) e subjetivas (a disposição, sequência e critérios de seleção de textos). É de se prever, portanto, que haja leitores elogiando justamente o que critiquei (“Gostei principalmente das poesias ‘soltas’ ao longo do periódico”, diz Marcus Serra, que também diz que o jornal “cria uma identidade”). Se o Umberto Eco afirma, em Seis passeios pelos bosques da ficção, que o texto literário é uma máquina preguiçosa e é bom que seja assim, já que o leitor não recebe tudo escrito e interpretado – pois é obrigado a preencher lacunas com o seu universo pessoal –, talvez o RelevO aposte nisso, conscientemente ou não: vamos colocar uns retalhos e o leitor que venha com agulha e linha costurando seu modo de entender e dar unidade ao jornal. Há quem possa pensar que um jornal não precise de unidade, mas, ora, por que reunir tudo em um jornal então? Basta uma navegadinha pelo Google para descobrir toneladas de textos ensaísticos, poéticos, narrativos, de autores sem apresentação, já com publicidade e tudo.

Outra aposta do jornal é essa de não apresentar os escritores. Em épocas de despersonalização (eu havia falado da desterritorialização na edição passada, pois não sabemos de onde os leitores e autores falam), entendo a opção do jornal, mas levanto este questionamento. Talvez o jornal queira nos fazer pensar a partir do texto e só do texto, ou seja, do que o texto tem a me dizer, não importando se eu sei que o Pepetela é já escritor consagrado e o seu vizinho de página talvez não seja. Essa ausência de informação pode nos deixar mais livres para escolher os textos que nos tocam mais, desobrigando-nos de um respeito pela autoridade do nome. É decisão legítima, claro, mas então por que a seção “publique” do site pede para que o autor “informe sua cidade e alguma referência pessoal para que eventuais leitores o localizem”?

Quase a totalidade de cartas dos leitores é feita de elogios, muitos apaixonados. Fico feliz, mas como minha função é encontrar brechas, feridinhas para meter o dedo, destaco e amplifico duas cartas que apontam problemas: a primeira vem do Felipe Gomes, que, gentil, fala de um troca de letra em seu poema, publicado em fevereiro, e que gerou mudança de sentido. O original dizia: “No fundo / gosto / do que me faz mau” e acabou “corrigido” e publicado assim: “No fundo / gosto / do que me faz mal”. Certamente essa diferença modificou sensivelmente a continuidade semântica do poema (“Aquilo que machuca / endurece / meu pau”). Sem exagero, pode-se dizer que outro poema nasceu aí, à revelia das intenções do autor. A resposta a esse deslize (que, claro, acontece), culpando a “ortografia padrão reacionária”, é desprovida de sentido, ainda que quisesse fazer rir. A troca em nada tem a ver com ortografia padrão.

Outra carta, de Joaquim Bispo, reclama da falta de resposta do jornal aos autores que submetem trabalhos para avaliação. Autores mandam textos, não recebem retornos nem de que o texto chegou, ainda menos sobre o aceite ou não para publicação. A resposta do jornal, entre outras explicações: “Por questões de saúde, também não temos qualquer condição de acusar recebimento”. Ora, o próprio Gmail já sugere uma resposta padrão do tipo “ok, recebido”. A não ser que sejam milhões de textos enviados, acusar o recebimento de, vamos chutar, duzentos textos levaria menos de dez minutos. É um problema inclusive das grandes editoras, muitas delas recebem originais e nunca mais dizem nada. Outra possibilidade é ter um texto pronto para, no melhor modo “copia e cola”, avisar que o texto foi recebido e se não houver resposta em até, digamos, 60 dias, o texto está automaticamente descartado. Isso evitaria a espera de Telêmaco, que olha para o mar todos os dias aguardando o pai, Ulisses, voltar da guerra.