Morgana Rech: Screen

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2020 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Um mês depois de levantar o acampamento no consultório, seguir à risca as normas de isolamento social, várias sessões on-line, RelevO e eu estamos entrando numa espécie de alta, mesmo que esse termo seja muito discutível na psicanálise.

Nosso problema não é financeiro, principalmente agora que o paciente-jornal tem até investido mais em nossa relação, me oferecendo obras maravilhosas em .jpg por e-mail, “capturando” o meu momento clínico para além dele. É maravilhoso como o narcisismo se engrandece na análise – não no sentido inflamado, que esconde um machucado terrível e maltratado por baixo –, mas esse narcisismo que, lá pelas tantas, pode ver o analista de igual para igual como pessoa, que entende o inexprimível do terapeuta, dá algo que ele precisa, mesmo sem que lhe tenha dito o que era.

Bem, nosso problema também não é falta de tempo, muito embora o RelevO esteja trabalhando dobrado para dar conta de manter as edições vivas e respirando nessa fase quarentênica, o que é muito compreensível. Tampouco podemos dizer que nosso problema é de lonjuras, porque agora estamos todos bem perto, vivendo nesse universo pandêmico simultaneamente com e sem fronteiras.

Talvez nem tenhamos um problema, na verdade. Freud mesmo dizia que existem análises termináveis e análises intermináveis. O RelevO é tão criativo e elabora tão bem seus conflitos, edição após edição, que ele quase anda mais rápido do que eu consigo compreender. Quem caminha perto assim da arte costuma se deslocar mais entre o desejo e a necessidade, inclusive o de ouvir e ser ouvido. Artistas têm mais cacife para fazer várias análises curtas ao longo da vida; estão sempre se reconhecendo em cada obra.

Freud, por exemplo, um dos artistas menos compreendidos do século passado[1], foi seu próprio analista durante muitos anos.

Remendou sua própria análise na sua própria criação e na sua própria vida, e assim criou o método que está em transformação até hoje, principalmente agora, transferidos que estamos para o screen. Vejo o RelevO pelo screen e mal posso acreditar que a pulsão de vida se infiltra tão bem num jornal de literatura, em plena pandemia mundial, e que torna sua criatividade soberana justo num momento em que quase nada circula neste mundo com tão pouco movimento.

 

[1] Digo isso com base nos meus estudos sobre a relação de Freud com a arte, mas ele nunca se denominou artista e raramente é visto assim pela comunidade científica.