amanda vital: Ombudswoman 4: porque ficar nos bastidores faz parte

Coluna de ombudsman extraída da edição de abril de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Sim, car_s leitor_s, é difícil. Já virou clichê afirmar que o nosso tão querido e mui belicoso meio literário tem muitas panelinhas, muitos gatekeepings, muita curadoria de caráter duvidoso, muita crítica literária “do bem” pra puxar sardinha de amig_s, muita rodinha fechada, muito clubismo e coletivo falsamente aberto, mas que não aceita toda a gente que eles dizem aceitar, muita não-democratização da literatura, muito paternalismo, muita picaretagem, muita exaltação do medíocre e do mediano, muito oportunismo — em seus diversos artifícios, não apenas o que todo mundo culpa, esse “surfar na onda da representatividade”, sendo que há camadas muito mais graves e, vamos ser sinceros?, mais concretamente plausíveis e verdadeiras — facilmente comprável. E é frustrante. Eu sei, eu sei. A dificuldade na divulgação é real, a tristeza pela recusa é totalmente compreensível, a falta de oportunidade que algumas pessoas encontram para apresentar seu trabalho por não terem um networking bacanérrimo é concreta. E a gente precisa falar sobre isso e sobre seus muitos pontos de fuga também.

Eu comecei a rascunhar esta coluna pensando em ficar apenas em uma mesma ideia: a de que nem sempre os holofotes são possíveis e está tudo certo em ver outras pessoas brilharem sem necessariamente você também estar lá. Que o meio literário tem que ter vozes, sim, mas também ouvidos. Leitor_s. Pessoas para prestigiar, vaiar, aplaudir, jogar tomates; ler, enfim, mas ler de verdade, não só falar que leu. Que a literatura não precisa ser feita só de uma praça com um monte de gente berrando versos em megafones e ninguém ouvindo ninguém. Que _s escritor_s não precisam aparecer o tempo todo, e que uma recusa não significa a verdade universal de que você escreve mal, mas que os espaços que temos a nosso alcance não são capazes de abranger tudo ao mesmo tempo agora. Que há suportes e suportes, e o suporte que publica X não vai publicar Y tão cedo (ao menos não com esse corpo editorial, não com essa curadoria — e é preciso percebê-la direitinho para não se frustrar com uma recusa depois). Que, se calhar, seu texto só não foi publicado porque não foi enviado no formato certo, no tempo certo, com a “concorrência” (?) certa, com o refinamento certo, com o cuidado certo com o texto. E que nem sempre o espaço onde cabe um, cabe o outro. E é verdade.

Mas terminei o rascunho com algo na cabeça: esse recado precisava ser, sobretudo, uma mensagem de afeto para aquel_s que se vão realmente abaixo com a rejeição. Que ficam genuinamente tristes, com aquela sensação pesada de derrota. Que não sentem inveja d_ coleguinha que está sendo premiad_ (como muita gente fica, e ess_s têm um caminho de desapego de egocentrismo um bocado longo para trilhar, mas que temos que estar aqui por el_s também), que não queriam estar em lugares onde outras pessoas estão. Que não saem por aí inventando plágios que não existem. Que nem passa pela cabeça patentear um estilo de escrita que nem é patenteável, porque é costurado por muitos outros discursos, muitas outras literaturas e que a gente, que lê, até as visualiza em seus textos (quem plagiou quem, então, mesmo?). Pessoas que só querem apresentar seu trabalho, mais nada. Que não se sentem gênios (não estou falando de donos da bola que saem sapateando embirradinhos porque suas obras-primas foram rejeitadas), só escrevem. Que sofrem por não ocuparem cargos importantes na literatura e sentem que por isso não são ninguém por aqui. Que qualquer mão estendida “por caridade” já é uma oportunidade brutalíssima e não enxergam maldade nisso. Esse é um abraço para vocês. Para _s que engavetam livros inteiros (e ótimos, às vezes) por falta de comunicação, de retorno, de leitor_s, de oportunidade. Esse é um abraço forte com um incentivo para continuarem tentando. Para descobrirem espaços onde se encaixem melhor do que aqueles onde dão com a cara na porta toda vez, por alguma leitura equivocada de que poderiam estar lá, mas que produzem coisas que acabam não se encaixando por puro choque de curadoria de estilo, mesmo, e mais nada. Para que tenham iniciativas bem-sucedidas para alavancarem as suas próprias oportunidades de serem escutados, as que não foram estendidas durante tanto tempo por motivos banais, por boicotagem, sei lá por quê. Para perceberem o que foi rejeitado por boicotagem ou porque a linha editorial era outra. Para continuarem escrevendo e continuarem lendo muito. Escrevendo um pouco de tudo. E lendo muito de tudo.

E um pedido: que leiam tudo com carinho. Sem ranço de suportes porque não te publicaram. Leiam o RelevO com carinho: mês passado, teve um texto muito bom sobre a picaretagem da pseudociência e o perigo anticiência que tem sido a astrologia atualmente (que bom que finalmente estão falando sobre isso em literatura, tem gente que tá danando a saúde física e mental pra caramba por causa disso), do Bolívar Escobar, a quem parabenizo a escrita bastante acessível, dada a certa complexidade que o tema pede; um conto ótimo da Mônica Silva, “O eucalipto”, fazendo todo um ciclo da glória, da beleza e da utilidade de um eucalipto, passando pela tragédia de uma derrubada oportunista, até o papel querendo ser árvore novamente (esse resumo não alcança o que a escrita da Mônica atingiu, um conto muito bem escrito, com trabalho e com ternura); alguns poemas do Tesla, livro excelente do Alexandre Guarnieri pela Patuá (com uma poesia genial e inventiva que ele tem feito, misturando a forma do poema e a mancha gráfica ao conteúdo, desafiando o papel, discutindo com outros autores e outras literaturas, sempre com centelhas de futurismo, de Revolução Industrial; é um livraço, de fato, e a colagem que acompanha a seleção é uma das que estão presentes no livro também); a RelevO Drinks, minicrônicas que renderam muita risada gostosa, essa tiração de sarro de bebidinhas gourmetizadas que a gente adora (a tiração de sarro, não as bebidinhas); um ótimo trecho do livro de Jonathan Crary, nos lembrando da necessidade de reflexão sobre como o ultracapitalismo e o perigo do excesso da reprodutibilidade de tudo (não só arte) afeta nossa qualidade de vida e nossa percepção calma e atenta sobre o mundo; dialogando — ainda que indiretamente (e não-intencionalmente) — com o poema de Finuala Downling (creio que seja do arquivo Escamandro), que tece um looping e aponta o que, de verdade, permanece, no fim de tudo: a arte, o sensível, a Polonaise; o poema de Valentina Chakr faz um efeito cascata com looping também do final para o começo, com um paralelismo entre lhamas e a pressão estética que sofremos no cotidiano — quando na vida leríamos um poema fazendo um comparativo como esse?; o Yuri Araújo teve um texto bacana sobre os vários tipos de amores e desamores, bem leve e despretensioso, leitura bem gostosa para o final de um suplemento literário. Queria que o trecho do poema de Carmen Bruna, da contracapa, fosse com um recorte um bocadinho maior — vejo potência e beleza ali, mas o recorte não alcançou. Acho que em poesia, no geral, ficou um gostinho de “quero mais”.

E ao$ piore$ picareta$ da literatura (lembram quando falei dos casos graves?), aqueles de quem quase ninguém fala por medo, os ricaços que compram amigos no meio literário, que compram validação literária (e às vezes até aval de crítica), fazem mecenato com suas heranças e rendas duvidosas para eventos e antologias, e são aplaudidos efusivamente por “generosidade aos pobrezinhos” só por quererem comprar um lugar no céu, e continuam a escrever de modo mediano para medíocre, com uma literatura totalmente defasada da realidade e sem trabalho algum, mas que é aplaudida efusivamente por quem quer um tequinho de vocês: tô de olho nos senhores. Vocês é que deveriam estar na mira, não a moçada do que chamam “panfletário”, não os autores engajados, não os poetas de poesia descritiva hibridizada com prosa… enfim.

Sejamos céticos e sejamos afetuosos. Sempre. E quem não quiser um, tem o outro.