Amanda Vital: Ombudswoman 11: “The Chocolate Agenda” — o que a grande mídia não quer que você saiba!

Coluna de ombudsman extraída da edição de novembro de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Come chocolates, pequena;

Come chocolates!

Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.

Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.

Come, pequena suja, come!

Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!

Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,

Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.

“Tabacaria”, Álvaro de Campos (sim, este é do Álvaro, maltinha, Álvaro que tem o mesmo focinho do Pessoa, mas nãaaao atribuam ao Pessoa, é Ál-va-ro, tá-se bem?)

Car_s leitor_s, a coluna desse mês vai ser totalmente voltada para denunciar o propagandismo da curadoria do RelevO da edição passada para a venda de seu novo produto, o Chocolate RelevO, lançado no mês passado. Tenho provas o suficiente para mostrar que todos — sim, absolutamente todos — os textos foram selecionados a dedo para incentivar a venda casada, que, aliás, é crime no Brasil. Fazendo um trabalho de trincheiras, busquei o que a grande mídia não mostra, o fio de cabelo em ovo, o conspirac-, quer dizer, os “olhos de ver”, acordados e muito bem acordados. Vamos a isso.

Começo por “Questão de vestibular”, literatura-múltipla-escolha de Marco Aurélio de Souza, pulando a seção de carta dos leitores, que é claro que não deixou de publicar uma quantidade absurda de comentários relacionados à venda do chocolate. O que múltipla escolha nos lembra? Enem, é claro. Vestibular, para ser mais precisa, e para ornar com o título atribuído ao texto. O que levamos para a prova de vestibular? Caneta preta, sim. RG, total. Uma garrafinha d’água? Convém. Mais mais do que isso: levamos chocolate. Há uma psicologia do consumidor (e do consumo — do chocolate, claro) atirada para os leitores logo à primeira vista, preparando o ambiente para o que mais vem por aí. Isso é jogada de mestre, vamos concordar, né? E começamos jovens, vestibulandos, acabadinhos de sair das fraldas. No começo do vício.

Depois entra “O amor”, de Maurício Porto. Ora, novamente a curadoria entra na mente de quem lê. O amor também pode ser f*dido. Com isso, recorremos a todas as benditas desgraças, para nos desgraçarmos ainda mais; entre elas, o álcool. E a menção a whiskies, que vão bem com chocolate, faz com que o leitor fique predisposto a buscar um acompanhamento rápido para um bom conto. Uma caixa de bombons com uma boa garrafa de destilado? Não há melhor. Na fossa, então…

A crônica da Maria Eugênia Moreira segue a mesma coisa: a autora traz à tona a questão dos supermercados da rede Oxxo, estilo Dia, que é onde costumamos fazer compras pequenas; dentre elas? Sim, o chocolate. A nossa mente vai quase de maneira automática no corredor dos doces e batatinhas, sentimos a mão alcançando, entre aquelas barras quebradas de chocolate barato e duvidoso, alguma que esteja minimamente inteira. O cenário trash da crônica descreve e ambienta super bem essa procura. E o estômago ronca, estranhamente ronca.

“Novíssimos paraísos artificiais” é a reportagem especial do RelevO do mês passado, que, é claro, como todo bom vendedor, veste-se da causa ambientalista apenas para fingir que o produto é sério e preocupado com os rumos que o planeta está tomando, deixando a publicidade bem nas entrelinhas. O “Novíssimos paraísos artificiais” é o blue money da imagem boazinha e limpa, anti-monstros-capitalistas, de quem acaba de lançar um chocolate ao mercado e não quer ser confundido com charlatães. Mas sendo.

E sobrou até para a própria Enclave, mãe do céu, uma coluna tão séria, tão perfeitamente bem escrita sempre… Precisava mesmo mencionar alguma parte do trabalho de Fischer na busca de João Gilberto, algum recorte que seja, voltado apenas para aguçar o apetite? E foi logo de um diálogo com Garrincha, garçom do restaurante preferido. Ora, o que se come depois de um bom prato? João Gilberto não pedia sobremesa, mas você pode pedir!

Agora, qual não é a minha surpresa quando viro a página e, tcharam!: além d’O Grito, mais um texto sobre supermercados… Pois é. Dessa vez maior e mais esmiuçado, com deliberações (bem interessantes) sobre a organização dos corredores e do carrinho de compras, chegando ao fim do jornal e fazendo aquela última tentativa de despertar o apetite e levar as mãos à carteira para comprar besteiras. Percebem a sutileza? É uma linearidade do mal essa. Do senhorzinho gordinho de suspensórios e bigodudo que te quer vender o seguro de um carro que você não tem!

Até a crônica tão leve de Rodrigo Madeira tem sua porção de culpa no cartório. Primeiro porque é um texto doce, docinho. Segundo, porque de tão leve, mas tão leve, cria pequenas perninhas de palitos de pirulito e vai caminhando pela cidade qual flâneur. E o leitor também cria suas perninhas e fica achando que está não só leve, mas doce, docinho. Acho que não preciso falar mais nada, né?

Mas sabem que com poesia a coisa fica um pouco mais complicada, que esses poetas são qualquer coisa de enigmáticos, hieroglíficos, ai, são tão pseudo! Mas consigo ver, no poema de Liana Timm, dois elementos: o sexo (que sim, pode exigir um chocolatinho em cima do travesseiro) e o pós-sexo (que sim, pode exigir um chocolatinho embaixo do travesseiro).

O mesmo com a tradução de Bernardo Antônio Beledeli Perin de “The woman who could not live with her faulty heart”, de Margaret Atwood. Ora, bate na minha cara com esse trecho: “Mas a maioria deles diz quero, quero, quero”. Vê se não cheira a propaganda. Tem cheiro de agenda. Tem ar de propaganda do Baton dos anos 80. Tem tom de letrinha miúda.

Por fim, logo o texto antes da página publicitária em si, a página final, que fecha todo esse grande complô, é um poema de Guímel Bilac. Não vou dizer da menção às cervejas, porque não combina, não. É da gana do leitor terminar querendo mais. E é claro que a venda casada se concretiza aí: o poema nos é apresentado como “que intrigante, quero ler mais dessa pessoa”, e pimba! Toma-lhe página publicitária do chocolate. Meu amigo. Se isso não é venda casada 101, eu não sei mais o que é.

E coitada da Ana C., que ficou na contracapa. “Costa com costa” com a propaganda e não tem nada a ver com isso.

Uma curiosidade, já agora no fim, que fui verificar: a palavra “chocolate” foi repetida 17 vezes no RelevO da edição passada. 17 ocorrências. Provavelmente, só nesse texto, também há 17 ocorrências. Mas isso não vem ao caso, ou vem?

Mas olha que essa coisa toda e eu não levava nada a mal que um certo editor mui nobremente me mandasse uma barrinha do chocolate novo. Na verdade, esse texto todo é só para pedir que me mande uma.

*

No mais, car_s leitor_s: comam chocolates, pequen_s, comam chocolates. Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates! Mas se não quiser, não precisa.