Amanda Vital: Ombudswoman 2: é preciso ter estilo

Coluna de ombudsman extraída da edição de fevereiro de 2023 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


es·ti·lo (latim stilus, -i, instrumento com haste pontiaguda, instrumento para escrever nas tábuas enceradas)

“estilo”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2021

Car_s leitor_s, tem uma coisa que me pega aos pouquinhos — cada vez um pouco mais — lendo a seção de cartas do Jornal. É um argumento-questionamento que vem aparecendo intermitentemente já há algum tempo, e não me lembro se os ombudsmen/women anteriores falaram sobre isso. Se sim, venho endossar o coro. Falo desse argumento que une tanto o possível leitor que não quer assinar o Jornal (e precisa dar uma justificativa qualquer) até o autor que foi rejeitado e quer cancelar a assinatura (e não quer ver o editor nem pintado de ouro): “ah, é que o RelevO não faz muito meu estilo”. Eu não queria deixar isso passar na minha curta estadia por aqui — e ainda vou falar de rejeição de textos e sobre jornal impresso, numa outra altura, que também queria poder dar um pitaco ou dois. Mas já agora, pergunto: o que é, na realidade de um jornal literário generalista, ter um estilo? Como ele é alcançado? O que é preciso fazer para receber um rótulo de estilo? Ter esse rótulo é necessariamente saudável e bom?

Minha reflexão vale o que vale. Mas penso que a partir do momento em que um veículo de literatura define sua curadoria, e aqui simplifico bastante por ter muitas outras subjetividades embaixo disso, em 1. o material ter um traço de qualidade marcante; e 2. todos são bem-vindos, renomados ou não, cabe uma pluralidade de estilos dentro dessas duas premissas. Do soneto ao verso livre, da prosa contemporânea experimental ao fragmento de romance tradicional com ares mais clássicos, do tradutor literal ao inventivo, do ensaio acadêmico catedrático ao literário mais híbrido.

E fujamos das formas, também, e digamos do conteúdo — do esporrado que sai daquele conto erótico do escritor frequentador de sarau temporão em taberninhas (aquele que geralmente pega o microfone pra ler um Bukowski, uma Hilda Hilst ou um beat norte-americano), do poeta escrito a partir de slam de uma feminista de rua intervencionista (muitos dizem “panfletário” para tentar diminuir essa possibilidade de existência da poesia, porque “ai, meu Deus, feministas não-acadêmicas querendo espaço aqui no templo sagrado da poesia, falando de liberdade sexual, de igualdade de direitos e de pelos nas axilas, assim, como se não fosse nada de mais, isso é um absurdo”), das diferentes formas de beber de fontes — e todas as fontes são potáveis e próprias para consumo.

No veículo generalista, a literatura é viva e vai sendo universal em seu melhor, abrangente mas sem cirandinha, porque aquela premissa 1 é, no fundo, seu próprio estilo editorial. E é um passo mais à frente após décadas de suplementos literários feitos apenas por convite, restritos a elites literárias, privilegiando amigos, políticos e familiares. E que, vamos ser sinceros, esses é que publicavam sempre mais do mesmo: a seleção de textos não circulava muito, reclusa a algumas dezenas de autores.

Por isso, o conceito de “jornal generalista” me aparece em mente: porque vejo esses jornais e revistas, físicos ou digitais, como veículos amplamente democráticos e abertos a todos os públicos, que não querem ser especializados num determinado recorte (ex: publicar só autores modernistas, só autores concretistas, só autores contemporâneos, só sonetos de amor, etc), sim, mas isso tudo faz sentido em termos de estilo mesmo assim. Porque existe o fator curadoria que não deixa tudo virar farofa da Gkay, com a seleção de bons textos que as pessoas podem gostar de descobrir (e é saudável e bom descobrir coisas novas), porque são e estão fazendo o presente na literatura. Porque a curadoria editorial é e está fazendo o presente da crítica literária no país. Essa crítica que “anda tão sumida, cadê ela?”, e segue assim, nos bastidores. Esse estilo que rabisca as tábuas enceradas e vai grafando fragmentos da história da literatura.

A Camila Passatuto, excelente poeta, aparece na última edição com um ensaio — que não quero dizer “sobre a obra de”, mas que “parte da obra de” Lucas Verzola, para a dissertação, entre as diversas provocações da obra, do “consumir-produzir literatura”, da produção entre empecilhos do contemporâneo. E deu muito certo. A transição entre estilos é o necessário para canalizar um ímpeto que seria para um canal já atravessado com alguma frequência, na escrita e na reflexão, em um outro exercício que pega emprestado o traquejo do trajeto anterior. Lúcido, esclarecedor e com uma abertura bonita que a Camila tem sobre a literatura em ação.

O delicioso “brincadeirinhas”, de Camila Lourenço, é a justa medida entre a denúncia da disparidade de visão da sociedade sobre meninas e meninos da mesma idade e o alívio de uma brincadeirinha consensual das primeiras experiências — chegamos a um ponto em que se é consensual, é um alívio —, que também anda lado a lado com isso. O “eu acho que senti o arrepio primeiro”, a experiência amorosa do início da juventude descrita sem maldade, sem exagero e sem condenação (sem, no fundo, a “mão invisível” do conservadorismo enraizado), da perspectiva da menina, do domínio. Que mais meninas (acredito que o texto também possa ser lido por jovens, sem problema algum) tenham mais exemplos como esse texto, com literatura “a sério” e não só os mesmos livros de autoajuda e montagens rápidas de Instagram para alcançarmos um controle cada vez maior sobre o nosso corpo, as nossas vontades, os nossos sentimentos.

Outra decisão crítica super acertada foi a poesia da Carolina Bataier, que parece ter sido escolhida a dedo para dar mais um sacode gostoso em quem não conseguiria, por exemplo, lendo “O que fazer com um poema guardado”, enxergar ritmo (que há), originalidade (também) e trabalho (igualmente). Quantos vão passar por esse poema sem perceber o sarcasmo, a denúncia, sem se questionar “por que será que o encadeamento dessas sequências, dessas imagens entre um e outro verso, foi feito dessa forma?”. Ah, porque é quase poema-recorte atrelado à oralidade, “é tudo feito ao calhas”, como diriam em terras lusitanas. Mas Carolina pegou nas situações mais inusitadas para se depositar-ler-publicar-botar para fora um poema. Apanha-o como um boneco de papel, manipula as palavras a sua maneira. Ali, o poema disserta (ui, o perigo do poema descritivo destruidor da nobreza poética!), propõe, tira sarro. Manda na autoria, manda em tudo. E tudo, absolutamente tudo é válido, menos deixá-lo na gaveta. A metapoesia feita sem precisar de palavras mirabolantes.

Ainda em poesia, Davi Koteck — que tem uma produção excelente em poesia e em edição, com a ótima revista Rusga (se ainda não está em circulação, que isto aqui seja um incentivo para retomá-la) — flerta com o realismo mágico e o nonsense, construindo camadas para construir um ciclo que volta ao início (“Não tenho mais vontade de ser feliz”/“na minha cabeça parece que eu não mando”) nessa vivência do contemporâneo que é ora apática, ora com faíscas de qualquer coisa nova, fora do comum, que nos puxe um bocadinho mais para o estado de euforia.

Para a contracapa, foi selecionado o centenário português Eugénio de Andrade, com “Canção” (que, salvo engano, acredito que parte dele tenha virado mesmo uma canção de uma banda portuguesa), de seu livro Primeiros poemas, encerrando a edição com essa reminiscência curtinha tão bonita, uma gota dum orvalho feito de metades proporcionais entre a metáfora-imagem e o cotidiano-oralidade.

O que quero com tudo isso? Além do costumeiro costumer service, apenas provocar com algumas centelhas de birra contra o tradicionalismo excessivo e a favor do caminho bonito que a literatura tem alcançado de ora equilibrar o novo e o velho, ora mandar tudo à merda para fazer estilos do zero. Mas o que eu quero, mesmo, é desejar uma boa continuidade de começo de ano para todo mundo. E por falar em estilo, sejamos um bocadinho mais rebeldes. Mas se não quiser, não precisa.