Ben-Hur Demeneck: O preço da ousadia

Coluna de ombudsman extraída da edição de janeiro de 2016 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


A capa de dezembro do RelevO fez com que alguns pontos de distribuição boicotassem a edição. A plataforma de digitalização de impressos ISSUU também censurou o conteúdo. Ela impôs um limite de idade para os usuários.

O episódio é exemplar para questionar as fronteiras entre experimentalismo e sensacionalismo, e para perguntar como se forma o “pacto” entre público, distribuidor e meio de comunicação.

Não que a capa de dezembro seja escandalosa. Não que seja destituída de conceito. Não que uma vulva (ou a sugestão dela) não seja algo tão lindo de se admirar como a paisagem do Grande Canyon ou que não seja tão misteriosa como fazer um passeio pelo Vale Sagrado dos Incas, partindo de Ollantaytambo. Nada disso.

A vulva está para a cotidiano como dunas estão para o vento. São paisagem, mas também movimento que compõe a geografia humana. A ilustração de Gustavot Diaz, quando elevada à condição de imagem da capa, dá a cara da edição – premia a ousadia à custa do consenso.

Paga-se o preço de lidar com um tema tabu de modo tão aberto. Quando um ponto de distribuição recusa receber o material, parece que algo se quebrou no pacto editorial entre veículo e aquele conjunto de leitores que iam àquela localidade pegar sua edição do mês e que deixaram de ter acesso a textos altamente vibrantes como “Coitus interruptus”, “Mulher é tudo louca”, “Amor Inconsútil”, “As Fantasias Eletivas (trecho)” e ao ensaio fotográfico feito por Ricardo Pozzo.

Os pontos que recusaram a edição provavelmente foram os mesmos que receberam as edições de junho e agosto deste ano, ambas com alta voltagem erótica. A primeira com fotografia de Isabella Lanave (R.U.A. Foto Coletivo) e a segunda com ilustrações de Maria Lima.

O olho da capa do RelevO de dezembro lembra o LP de Tom Zé, chamado “Todos os Olhos” (Continental, 1973). A capa resultou de uma parceria com Décio Pignatari e Reinaldo Moraes e faz parte da iconografia dos anos de resistência à ditadura. O troféu de quem bolou a capa cifrada e, naqueles anos de tantas indiretas, era afrontar o moralismo (e a hipocrisia).

A imagem em questão resultara de uma sessão fotográfica feita a partir de vários closes de uma bolinha de gude equilibrada num ânus de uma moça. Há versões que contam até que, apesar das sessões, o que acabara entrando na edição final fora um lábio que imitara a mucosa supracitada. Não importa. O troféu era fazer essa camuflagem para que os iniciados a reconhecessem no jogo de palavras com “olhos”.

Em termos estéticos, poderíamos falar que a capa de dezembro peca por tornar explícito algo cuja sutileza tem um poder expressivo superior. Afinal, em arte, faz parte da interação as pessoas “acabarem” a obra. Se o interesse é ser experimental, deixar o leitor alijado desse processo, no limite, pode parecer mais “vontade de aparecer” e “pretensão de chocar”, do que instaurar uma provocação no olhar.

A capa de dezembro provoca e, enquanto experimenta, anda na linha suave próxima ao sensacionalismo. Por outro lado, pode representar uma guinada editorial em busca de fortalecer a cumplicidade com leitores cativos. Para um segmento dos leitores, mais identificados a questionamento frontais, pode ser uma oportunidade de vínculo, de empatia inéditos. Nosso desejo para 2016 é que os pontos de distribuição do “boicote” reconsiderem sua posição. Os leitores não merecem ter que ir mais longe para pegar sua edição de janeiro, fevereiro e março para ler o jornal mais provocador da nova literatura brasileira!

 

O nome da autora

O RelevO trocou o nome de um colaborador. Agravante: identificou um transexual por um nome masculino em edição dedicada à diversidade sexual.

Em primeiro lugar, um jornal não pode errar nome dos seus colaboradores. Trata-se de um erro crasso. Em um jornal literário, a revisão de um nome deve ser tão minuciosa quanto o das regências e das concordâncias. Se for um nome cheio de consoantes, nesse estado marcado pela imigração eslava e por sua alcunha fantástica de “Rússia brasileira”, eu não criticaria quem contasse as letras e rabiscasse uma após a outra na conferência final. É que o patrimônio do autor é seu nome e suas circunstâncias.

Em segundo lugar, não basta “corrigir” o nome de alguém que optou por trocar de nome por sua condição de gênero. Por eu não saber o que sugerir, optei por entrar em contato com um especialista em gênero e política, o professor universitário Almir Nabozny, que é doutor pela UFRGS e professor na UEPG. Após um tempo de conversa, ele esclareceu que um dos problemas mais comuns a transexuais seria o contraste entre o seu corpo feminino e um nome masculino em situações públicas. Exemplo comum seria quando um médico o chamasse de tal maneira numa sala cheia de pacientes, causando um constrangimento desnecessário. Ou de quando se vai a banheiros de estabelecimentos comerciais e a prédios públicos. Luta pela qual Laerte Coutinho tem feito grandes batalhas.

Por outro lado, não se pode perder a visão ampliada do episódio. Um jornal que se preocupa em tratar da diversidade de gênero, em dar voz em que a vive, é uma publicação que está disposta em corrigir seus erros. 

Portanto, merece todo o nosso respeito. O azar é que tal deslize faça tanta diferença. Talvez a lição a se tomar é que em casos em que a representação se torne tão importante quanto o texto em si, convenha pedir assistência a quem esteja mais ligado à temática para supervisionar a página finalizada. Seria um modo de contornar a complexidade do tema para quem não tem familiaridade com assunto (até por isso é que eu, como representante dos leitores, busquei um estudioso).

Como canta o grande trovador de São Miguel Paulista Edvaldo Santana – “errar é consequência do que pode ser mudado”. Portanto, tal erro é antes uma tentativa de fazer certo: abrir espaço a vozes que aparecem pouco, mas que integram a diversidade de nossa sociedade. Em termos de reparar simbolicamente o que houve, a sugestão do professor Nabozny seria convidar a autora para se manifestar ficcionalmente sobre a importância dos nomes masculino e feminino em quem vive a condição transexual. Fosse uma autoficção ou ficção completa, não importaria. Fica a sugestão ao editor e à autora.

 

Autocrítica 

Na última coluna faltou eu enquadrar melhor a minha explicação de citar Aílton Krenak e outros expoentes da literatura dos povos originários. Ficou assim solto, sem a devida contextualização, a ponto de parecer até que Krenak havia escrito na edição prévia. No entanto, tratava-se de uma sugestão de nomes para nos aproximarmos do pensamento e da experiência de autores que, mais que sua visão pessoal, apresentam uma visão de etnia e de nação existentes desde antes de Cabral sonhar em ser marinheiro. Prometo ser mais cuidadoso na próxima coluna.