Ben-Hur Demeneck: Arte do efêmero

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2016 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


O ombudsman recorre ao método de Bertolt Brecht para derrubar a “quarta parede” deste jornal literário diante do público. Para facilitar a demolição dos discursos, o representante dos leitores traz consigo um machado típico dos ancestrais vikings desse cargo escandinavo.

Convidados a se manifestar, os editores saem da sua condição de personagens para explicar como criam seu jogo de cena. MÉTODO: encadeamento de falas do núcleo editorial, obtidas a partir de um questionário comum e de entrevistas exclusivas. ELENCO: Daniel Zanella (DZ): o editor-chefe; Ricardo Pozzo (RP): o editor; Marceli Mengarda (MM): a diagramadora; e Mateus Ribeirete (MR): o revisor do jornal e editor da newsletter Enclave.

 

  1. Jogral autoral 

Primeira cena: o elenco olha para a plateia e responde ao subtexto: quais foram os autores que lhes tiraram a paz diante da literatura? Preparação dos atores: sessão de grito primal. Sequência das falas (que podem ser intercaladas): MR: Jorge Luis Borges, Douglas Adams, Valencio Xavier; DZ: Rubem Braga, Júlio Verne, Paulo César Pinheiro; MM: José Saramago, Fiódor Dostoievski; RP: Raduan Nassar, George Orwell; MM e RP, em uníssono: Guimaraes Rosa.

 

  1. O menestrel 

“Não gosto do ideal de jornalismo cultural como haute culture, seriedade de fraque, literatura de doutorzinho. Não deve existir um totem que não mereça ser derrubado. Ninguém e ‘inzoável’, nada e sagrado – principalmente nos mesmos (…) O que jamais faremos: usar dinheiro público” (DZ). 

“[Nossa] transparência de método e de finanças veio a partir da constatação de que muita gente do meio cultural vive a se lamentar de condições subumanas, mas não abre suas contas. Gosto de saber do tamanho do fracasso dos outros também. Não são poucos os casos de reclamões culturais de vida mansa” (DZ).

 

  1. Teatro épico

“A postura amadora e desapegada do RelevO nos favorece a não ter rabo preso, e isso atrai um público fiel. Somos uma várzea organizada, e essa leveza agrada – principalmente no meio literário, cujo senso de humor é inferior ao de uma endoscopia” (MR).

“Volta e meia entro em crise com esse chamado mundo literário, levado por alguns fatos como o de perceber que a literatura não tem importância alguma no correr cotidiano do mundo – a não ser para os que foram ou serão seduzidos por ela” (RP).

“A coisa menos ‘desperdiciosa’ da minha vida, até agora, foi a literatura e o que ela me trouxe. Concordo muito com o Leminski, quando ele diz que a poesia e um inutensílio. Acho que a literatura, no geral, é isso aí – um inutensílio” (MM).

“O escritor e um ser carente e o fracasso e sua moeda. O que fazemos, nos, do circuito cultural, e perfumar o fracasso. Isso deve incomodar aqueles de vida mais matemática, por assim dizer” (DZ).

 

  1. Fábula líquida 

“O mundo atual é cada vez mais superficial. E não se deve culpar as pessoas por isso, [pois] o sistema biológico não foi feito para essa avalanche de informações e imagens a qual estamos sendo submetidos – o que pode levar as pessoas a terem comportamentos contraditórios ao seu discurso” (RP).

“É legal o quanto recebemos de retorno dos leitores, mesmo (e talvez principalmente) o negativo. E bom saber que alguém se importa [com o nosso trabalho], a ponto de entrar em contato (…). Porém, sinto que o diálogo entre a newsletter e o jornal poderia ser melhor aproveitado” (MR).

“O que interessa para o RelevO e veicular trabalhos bons e relevantes [esteticamente] (…). Até me surpreendi de não ter tido mais feedback horrorizado de capas alegadamente chocantes. A exemplo da edição de dezembro de 2015, que não ficou nem no ISSUU de tanta imagem de vagina [estampada] na capa (…). No fundo, acho que temos pouco a perder. Então, dá para arriscar mesmo” (MM).

 

  1. Papel do jornal

“Ainda acredito no impresso como um organizador do cotidiano. Em meio a uma enxurrada de informações, excitações, vaidades e desejos por atenção, o impresso pode ser este espaço de concentração, de comunicação mais dirigida, de diálogo” (DZ).

“E preciso encorajar e incentivar mais mulheres a escrever (de preferência, sem dizer que são loucas), porque a diferença quantitativa e clara e, talvez, deva-se ao fato de que as mulheres nunca tenham tido muito espaço para isso” (MM).

“[Você acredita que o impresso continuará por muito tempo um eixo, um centralizador da movimentação cultural nesse mundo em que há tanta dispersão virtual?] Sim. Principalmente quando O EDITOR RESOLVER A MERDA DO ISSN! CARALHO, ZANELLA.” (MR).

 

  1. Olhando nos olhos 

O narrador expõe as respostas do núcleo editorial diante de um questionário feito sobre transparência. O recurso havia sido proposto, em 2007, pela Universidade de Maryland através de seu International Center for Media and the Public Agenda (ICMPA).

Cabe aos leitores se posicionar diante do autorretrato pintado pelos editores, que relacionaram de forma unanime o RelevO a três dos cinco procedimentos identificados a “Accountability”: (a) Correção de erros: existe disposição para reconhecer e retificar os erros cometidos; (b) Politica editorial: os leitores conseguem reconhecer quais são os valores que orientam o trabalho dos editores; e (c) Interatividade: os leitores têm canais para expressar seus comentários e críticas.

O quarto tópico – transparência publicitária – recebeu a maior parte dos votos (“o jornal expõe eventuais conflitos de interesses”), enquanto que a questão relativa a propriedade ficou próxima da marcação zero entre os editores (“os leitores sabem quem são os ‘donos’ do jornal”). Nesse momento, o apresentador discursa a plateia sobre a materialidade do mundo: segundo o estudo de Maryland (“Openness & Accountability”), apenas 11 dos 25 canais globais pesquisados publicavam ou transmitiam correções de matérias de maneira clara, e somente sete mantinham ombudsman. Uma realidade cruel e anunciada: “quando o assunto e transparência, até a BBC pode tomar umas aulinhas com o RelevO brasileiro”.

 

  1. Desfecho

Literatura, transparência e humor. Em sua última colaboração como ombudsman, o narrador afirma que é com essas três palavras que resume o jornal RelevO. Para ser mais claro, ele disserta: (a) literatura como cultura – antes mesmo de ser pensada como arte; (b) transparência como a exposição das escolhas editoriais em estética e “gestão”; e (c) humor – ora autoderrisório, ora ferramenta de liberdade de expressão.

O locutor convida ao palco seu substituto, o jornalista Silvio Demétrio. Elogia o “formalismo psicodélico e esquizoanalítico” de Demétrio e lhe entrega em mãos o machado viking dos ancestrais ombudsman. Embora tal cargo e objeto não estejam relacionados na Escandinávia, rendem uma metáfora para quem precisa invocar o poder dos leitores antes de partir ao meio as couraças da imprensa. O novo personagem recebe o amuleto e logo o tropicaliza, ao metralhar um discurso sobre Xangô na obra de Jorge Mautner. Cai o pano.