Baú: Miguel de Cervantes

Extraído da edição 113 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

E [Sancho] mostrou a caçarola cheia de gansos e galinhas e, pegando uma, começou a comer com muita distinção e apetite, e depois disse:

— Pendure a contas nas habilidades de Basílio, pois vales tanto quanto tens e tens tanto quanto vales! Só há duas linhagens no mundo, como dizia a minha avó: a que tem e a que não tem, e ela se agarrava com a que tinha. E, nos dias de hoje, meu senhor dom Quixote, se respeita mais o haver que o saber: um burro coberto de ouro parece melhor que um cavalo encilhado com albarda. Assim sendo, repito que fico com Camacho. Nas caçarolas dele são fartos os ensopados de gansos e galinhas, lebres e coelhos; nas de Basílio, se é que vou botar a mão em alguma, ou mesmo o pé, só deve haver sopa de pedra.

— Acabaste tua arenga, Sancho? — disse dom Quixote.

— Acabei, sim — respondeu Sancho —, porque vejo que vossa mercê se amola com ela, pois, se isso não atrapalhasse, teria pano para três dias de mangas.

— Queira Deus, Sancho — replicou dom Quixote —, que eu não morra sem te ver mudo.

— No passo que vamos — respondeu Sancho —, antes que vossa mercê morra, eu estarei comendo grama pela raiz, e aí pode ser que eu fique mudo, que não diga uma palavra até o fim do mundo, ou pelo menos até o dia do juízo.

— Mesmo que isso aconteça assim, Sancho — respondeu dom Quixote —, nunca teu silêncio chegará aonde chegou o que falaste, falas e falarás em tua vida. Além disso, é muito mais que provável que chegue primeiro o dia de minha morte que o da tua; então não penso jamais te ver mudo, nem quando estejas bebendo ou dormindo, que é o que mais me admira.

— Por Deus, senhor — respondeu Sancho —, não dá para se fiar na Caveirosa, digo, na morte, que tanto come bodes como cordeiros; e, como ouvi nosso padre dizer, pisa com o mesmo pé nos palácios dos reis como nas cabanas humildes dos pobres. Essa senhora tem mais poder que melindres, não tem nojo de nada: come de tudo e tudo faz, e de todo tipo de pessoas, idades e posições enche seus alforjes. Não é ceifador que durma as sestas, porque a toda hora ceifa, e tanto apara a grama seca como a verde; e parece que não mastiga, mas que engole tudo que aparece pela frente, pois tem fome canina, que nunca se satisfaz; e, embora não tenha barriga, dá a entender que está hidrópica e tem sede para beber sozinha a vida de todos, como quem bebe um copo de água fria.

Basta, Sancho — disse dom Quixote nesse ponto. — Fica aí, em terra firme, pois na verdade o que disseste sobre a morte com tuas palavras grosseiras é o que poderia dizer de um bom pregador. Olha, Sancho, se tivesses bom senso como tens boa índole, poderias arranjar um emprego de pregador e ir-te por esse mundo dando lindos sermões.

— Prega bem quem vive bem — respondeu Sancho —, e outras teologias não sei.

— Nem precisa — disse dom Quixote. — Mas não consigo entender como, sendo o princípio da sabedoria o temor a Deus, tu, que tens mais medo de um lagarto que d’Ele, sabes tanto.

— Julgue vossa mercê suas cavalarias, senhor — respondeu Sancho —, mas não se meta a julgar os temores e valentias alheias, que sou pagão tão temente a Deus como qualquer cristão. E me deixe despachar logo essa canja, que o resto são palavras ociosas, de que irão nos pedir contas na outra vida.

Miguel de Cervantes, Dom Quixote, vol. 2, 1615 (trad. Ernani Ssó, Penguin/Companhia, 2012).