Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2019 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
Eu acompanhei o surgimento do RelevO e tenho memórias que, se não são o retrato fiel de um tempo, formaram na minha cabeça uma verdade subjetiva: o jornal nascia independente, irreverente e, digamos, meio inconsequente. Ríamos da novidade, uma risada franca que nada tinha de deboche; ao contrário, era uma risada que condensava o que-legal, que-necessário, que-divertido, que-iconoclasta, que-modernista, que-naïf.
Não sei se é uma tese generalizável ou que acontece com poucos – comigo sim: a tendência a ser complacente com novidades que nos agradam, que preenchem uma falta nossa e da cultura. Mas o tempo passa, algumas estratégias envelhecem, a relação cai no costume e aquilo que encantava corre riscos de virar indiferença ou irritação. O tempo passa e, agora ombudsman, pego de novo o papel, folheio o jornal e não consigo recuperar o frescor, o olhar inaugural se foi, resta na mão um objeto frio. O que então falar desse objeto frio? O jornal esfriou ou fui eu?
A irreverência que já me fez rir muito continua lá (eu estava pronto para dizer que humor bom prescinde de “kkkkkks”, mas a edição de fevereiro foi lá e enfiou kkkkkk, e numa piada das mais manjadas, em que o editor ri de sua classe profissional). Pode ser ainda que o meu humor venha fácil demais, mas acho sim engraçado quando o editorial, ao explicar seus critérios de seleção, diz receber de tudo, até ameaça.
Mas sabe aquela capa de disco que virou meme? O Chico Buarque aparece rindo e, logo depois, fica sério. Aconteceu comigo. Sim, porque eu ri da piada, haha, aceitam de tudo, até ameaça, mas logo estaquei. O jornal está admitindo que os – cof, cof – critérios de publicação são um vale-tudo. Isso joga fora a própria noção de critério e camufla sob a boa piada uma falta de direcionamento. Dizer que vale-tudo é afirmar que uma crítica a isso não vale nada. Mesmo se não valer nada, vou deixá-la aqui em forma de pergunta: o negócio é ir recolhendo texto suficiente para uma edição e dizer depois que isso é ser plural?
O RelevO de fevereiro traduziu poemas do russo e em seguida falou, em entrevista, de demarcação indígena, aí caiu na zoeira com o – tá, bem engraçado – RelevO camping, depois apresentou resenha longuíssima e acadêmica com direito a referências bibliográficas, e jogou no fim umas meditações de John Donne, tudo salpicado por poemas e crônicas e contos caídos sem paraquedas no meio das páginas. Aqui poupo os autores, os textos são bons, mas se eu pegar um nariz bonito aqui, a boca sedutora ali, orelhas elegantes acolá, olhos profundos alhures, e juntar tudo isso, eu não tenho nenhuma garantia de que o resultado será a beleza estarrecedora, ou ao menos harmônica, ao menos coerente, ao menos não frankensteiniana. Alguma costura marcada por seções explícitas ou mesmo por linhas imaginárias poderia fazer com que mapa e território se entendessem.
“Ah, se for escrito ou desenhado tá valendo” não é critério; passa, quando muito, por mais uma piada encobridora, que teria mais efeito se o leitor soubesse que a brincadeira do vale-tudo não passa de uma mise-en-scène e que o jornal sabe o que está fazendo. Que aceite a diversidade, tudo bem, mas selecione os textos e disponha-os ao longo das edições dentro de alguma lógica de aproximação que dê liga. Nem sempre bons jogadores formam bons times, é preciso organizar a esquadra.
Claro, é possível fazer só a piada e deixar a crítica pra lá, tipo “cara, nós somos anárquicos mesmo, somos marginais mesmo, independentes mesmo, profissionais em deixar a coisa amadora, você não entendeu nada, não nos enquadre, não nos institucionalize”. Ainda assim deixo a sugestão: talvez o jornal devesse costurar melhor suas vozes, carimbar seu timbre de um jeito mais personalizado. Ou falar do que quiser é a marca? Ou não ter marca é a marca? Vai que. Só acho que tal amadorismo bem humorado tem seu valor iconoclasta, mas pode também ser uma defesa, um escudo atrás do qual justifica falta de critérios na escolha de conteúdo e, vamos lá, de forma também. Acredito ainda que tudo isso tangencia a questão de uma suposta neutralidade apontada – como problema – por alguns leitores. Não há costura formal, nem temática, nem de posicionamento político. Tenho dificuldades de ver o que mantém as páginas do jornal unidas.
Por falar em dificuldades de ver, arrisco aqui a dar uma de criança ingênua e dizer que o Rei/RelevO está nu em termos formais, de diagramação, de arte-finalização, essas coisas todas.
Acompanhamos a triste saga financeira do periódico, mas as despesas devem aumentar, pois sugiro que a edição de março distribua lupas para os assinantes. Eu, que sou apenas míope, me gabo de enxergar de perto. Tudo tem limite, porém. Se tento ler no papel alguns anúncios ou a lista de cidades e livrarias que recebem o jornal, mal consigo. Se vou para o on-line e amplio a fonte, a definição se perde. Pra quem, como o RelevO, quer valorizar “o papel do papel” no Jornalismo, acaba fazendo gol contra. Espalmar um poema de 6 versos e deixá-lo perdido na página, pendurado ao nome de um autor envergonhado, sem ninguém para apresentá-lo, meio sozinho na festa, acompanhado apenas de um anúncio espremido e ilegível devido ao tamanho da fonte e à qualidade da impressão, tudo ao lado de um latifúndio de espaço em branco, é proposital?
Falo da página 22 da edição de fevereiro. O que me diz um retângulo com três retângulos dentro, sendo o primeiro talvez uma capa de livro, o segundo uma silhueta humana escura e o terceiro talvez mais uma capa de livro? Pobre autor de Prisão dos dias, agora na p. 14, de quem não dá pra ler quase nada a respeito. É alguma estratégia jornalística deixar aqueles espaços enormes em branco (um respiro?) e comprimir anúncios até deixá-los ininteligíveis? É mais uma intenção transgressora? Texto cortando o meio da página no miolo, sem problemas, mas experimente ler isso no on-line e verá que não dá.
É uma possibilidade séria, que de nenhum modo descarto: estaria eu muito colonizado pelas publicações que organizam minimamente suas seções, costurando-as e formando um todo apreensível? Preciso me desconstruir?
“Jornal estranho e interessante”, diz um leitor (aliás, em tempos de desterritorialização e de busca por um lugar de fala, que tal dizer de onde são os tantos leitores que escrevem ao jornal, geralmente para elogiá-lo? Poderia funcionar melhor do que enfiar a maçaroca de lugares que recebem o RelevO, página 4, que, se não são ilegíveis, são no mínimo pouco convidativos para a leitura). Por que não apresentar também os autores? De onde veio a escalação, quem é a poeta, o cronista, a contista, o resenhista, a tradutora etc.?
Quando entramos, por exemplo, numa igreja barroca, ou clássica, ou gótica, não conseguimos – e nem deveríamos tentar – dizer o que é forma, o que é conteúdo. Há uma unidade mesmo na diversidade. No RelevO de fevereiro, o mérito isolado de cada texto foi atrapalhado pela falta de critérios na composição do todo. Autores que não sabemos de onde vêm surgem de repente, mudam de assunto em relação aos que vieram antes, terminam o que têm a dizer e saem rápido porque a procissão de textos sem conexão de qualquer ordem – temática, formal, política – precisa prosseguir.