Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2019 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
O RelevO de abril está afiado. Depois de minha apresentação em janeiro e minhas críticas duras em fevereiro e março, apontadas pelos leitores – uns gostando, outros não –, creio ser o momento de pensar o jornal com uma lente diversa. O jornal não me comprou, até porque, sabemos bem, dinheiro não é o forte da publicação e o choro a esse respeito tem cadeira cativa a cada número.
O que me move hoje é pensar um tema que – desde que recomecei a ler o jornal todos os meses, e texto a texto – tenho percebido como importante para os leitores. Das últimas edições (e eleições) de 2018 até esse abril de 2019, sempre há alguém falando sobre a postura política e ideológica do jornal, cobrando ou avalizando o modo como o RelevO se comporta.
Assumir um lado do espectro político, seja esquerda ou direita, liberal ou conservador, capitalista ou comunista, é fácil, é simples. Elegem-se temas e textos, que elegem também o público: uma das alas da relação dualista cai fora, a outra abraça a ideia. É assim que se cria mais um instrumento para o júbilo dos amigos e a fúria ou a indiferença dos inimigos. Em um país marcado por uma polaridade tão flagrante, cujo diálogo foi cortado, não entendo que pular para um dos lados do muro e ficar nele seja desejável para um jornal de literatura. Portanto, minhas críticas anteriores falavam mais era da falta de jeito de selecionar os textos e de arremessá-los nas páginas. Que um jornal de arte e literatura não deva querer ser enfeite, isso é muito bom, mas também não pode ser um aglomerado qualquer e se rotular como artístico “porque arte é isso mesmo, essa coisa muito lôka”. Ser louco e ser artista/jornalista que usa a eventual potência da loucura são coisas diferentes.
Retomo agora a primeira afirmação que fiz, lá no primeiro parágrafo: o RelevO de abril está afiado. E não é para selecionar o público, não é para dividir seus leitores entre rivais e amigos, entre aqueles que concordam e aqueles que discordam. É porque o RelevO está sim fazendo política e está sendo ideológico. Como não sê-lo? Mesmo se publicasse receitas de bolo, com o país em frangalhos vexaminosos, seria ideológico, estaria tomando o partido da indiferença e da aceitação. Mas o RelevO não faz isso quando escolhe, por exemplo, publicar uma entrevista sobre histórias em quadrinho que pretendem recontar a História (“A rainha-cadáver do mundo ibérico”), ou um relato pessoal da escritora Natalia Borges Polesso (“Eu escritora, eu lésbica”. O poema da página 11, aliás, é dela?), ou ainda quando satiriza frases-feitas, a autoajuda melosa que em meio ao abandono da educação e da cultura anda tendo, cof, cof, caráter formativo (adorei o José Viral, 17, que teve a grande sacada da vida quando leu no Facebook “Não importa o que você decida, importa o que te faz feliz”), entre tantos outros exemplos e escolhas da edição de abril. Isso é ser afiado sem conversa fiada. É ser afiado quando se consegue espetar o gume em gregos e troianos, na carne que sentir a pontada. Ou alguém aí, filiado a gregos ou troianos, se acha livre de defeitos? Deixar-se cortar pode ser sábia decisão. Deixar a lâmina aguçada do texto abrir uns talhos em nosso mundo simbólico instituído é o que nos faz mudar. Só a fissura no concreto armado das nossas convicções pode nos demover, comover, mover. Só fazemos travessia, ou seja, só saímos de onde estamos se algo nos desequilibrar e nos obrigar a buscar equilíbrio em outros portos, até uma nova travessia. O próprio ato de andar pede de nós desequilíbrio para reequilibrarmo-nos.
De tempos para cá, também percebo a menção do jornal ao caos. Só no editorial de abril, o caos apareceu três vezes. Já falei nas edições anteriores do caos-bagunça, sem a proposição de uma nova ordem, o que é lamentável. Mas há um caos necessário, que revolve a ordem instituída – com a qual, desconfio, não estamos contentes – e pode (deve?) provocar divergência e diversão (falei mais longamente sobre a di-versão na edição de março). A demolição de uma ordem social pode se dar na marra, com a organização de grupos que cheguem quebrando tudo, ou podem se dar – mais lento, mas mais consistente – com a leitura, tendo a palavra uma grande capacidade de tornar as nossas barreiras mais permeáveis, mais porosas, recombinando sua matéria ou mesmo erodindo-a.
A figura do isentão é malvista. O isentão fecha os olhos, ou talvez os abaixe para ver melhor o umbigo. Mas a ideia de estar em cima do muro sempre me foi sedutora, acho a imagem bem rica. De cima do muro pode-se olhar para os dois lados e para as linhas do horizonte, descobrir a comédia humana em ação, assistir à miséria humana em ato. Porque quem está só em um dos lados não vê o outro, vê um muro e atira pedras sem saber direito em quem acerta.
Ficar em cima do muro – entendam, é uma imagem retórica, pois sabemos que descemos dele muitas vezes – é ter ponto de vista privilegiado, mesmo que sejamos alvos fáceis de pauladas e pedradas.
Enfim, lâmina afiada e caos resumem a cadeia significante que propus para a avaliação do RelevO de abril. A lâmina revolve, busca fazer do caos uma outra ordem possível e oculta. Pode machucar, mas desperta todo o mundo que não está anestesiado. E espero que não estejamos.