Morgana Rech: Transferências e o paciente-jornal

Coluna de ombudsman extraída da edição de fevereiro de 2020 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Talvez por ser a primeira ombudsman psicanalista, já vou começar sem entender direito por que é que o RelevO precisa tanto dessa figura para abrir o jornal. Vou criticar o RelevO para ajudar o RelevO. Vou dizer que o editor convida alguém que proteja os seus leitores para garantir uma faixa de neutralidade em suas relações editoriais. Se eu fosse analista do jornal, investigaria junto com ele os motivos, os verdadeiros motivos pelos quais ele acha que precisa dessa defesa. Defender os leitores para, no fundo, defender o jornal. Eu faria o possível para sair do lugar de escudo. Eu diria para o RelevO se virar sozinho, pela primeira vez na vida.

Fico imaginando: o consultório sendo frequentado por editores de jornais e revistas literárias. Apresentando suas queixas sobre a função de seus veículos no espaço editorial. O irrelevante ou o megalomaníaco papel que eles acreditam que exercem no conjunto das publicações. A voz do RelevO, muito provavelmente, seria aquela mais agradável de escutar. A que colabora com o processo, que está a fim da análise. E aí eu ficaria sabendo desse negócio de ombudsman, a história deles todos. Pensaríamos sobre isso, a minha atenção flutuante daria um salto. Eu ouviria histórias de ombudsman que machucaram o jornal e ele nem ligou. Tentaríamos ver por outro lado, fazer outras leituras dessas páginas.

Eu lhe diria então que, bem, não dá para deixar de apanhar sem perder a identidade, não é mesmo? O RelevO sairia dessa sessão meio puto comigo. Pediria para trocar o horário da semana que vem. Esqueceria o dinheiro. Sairia se vendendo por aí, em vez de vir. Faria uma edição melhor, iria mais longe. E depois nos daríamos conta de que os melhores sacos de pancada são aqueles que acabam por fascinar o agressor até que a pancada se transforme em homenagem. O jornal me homenagearia e eu homenagearia o jornal, porque é assim que a banda toca na relação transferencial que acabo de inventar entre mim, ombudsman, e meu paciente-jornal a quem, no fundo, me dirijo.

Sempre li dos ombudsmans — e confirmaríamos isso ao longo das sessões, RelevO e eu — que eles aprendem muito com essa função. Que, no fim, o jornal é que lhes dá a verdadeira lição. Eu me agarraria a esse fato para tentar virar o jogo a favor do analisando. Uma análise serve também para descobrir as forças que ainda não tinha aparecido em lugar nenhum. Difícil: ser ombudsman, receber as críticas e elogios dos leitores, ao mesmo tempo chacoalhando os mecanismos de defesas do jornal. Elogiar o jornal, sobretudo, merecido que é.

Para o fim desta análise, das duas uma: ou me expulsam logo (tipo mês que vem), ou me deixam fazer umas interpretações sobre isso que o RelevO vem provocando em seus leitores e vice-versa, para que possam também discordar de mim. Vamos fazer da relação leitor-ombudsman-jornal um verdadeiro seminário literário-clínico, porque também quero mudar, e espero que para melhor.