Nuno Rau: O fim do fim da história, a morte da morte do autor (ou: o poeta que virou suco.)

Coluna de ombudsman extraída da edição de julho de 2022 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


O pós-modernismo surgiu assim como uma espécie de apocalipse incontornável que se abateu sobre o mundo a reboque do neoliberalismo selvagem, e decorado não raras vezes por colunas e frontões escaneados de templos gregos da Antiguidade convertidos ao rés da banalidade absoluta de historicismos desvairados. Numa espécie de ópera-bufa desvairada e formalista, profissionais da arquitetura saíram decalcando esses frontões e colunas dóricas ou jônicas em fachadas de todo tipo de construção – escolas, bancos, estações, residências, shopping-centers etc. Quando todos pensávamos que não havia mais por onde piorar esse desastre, surgiu a fachada padrão das lojas Havan, acrescidas ainda com a cereja do bolo da degeneração estética terceiro-mundista: réplicas da estátua da liberdade em lugar de destaque de sua implantação (do mesmo modo não adiantou Francis Fukuyama preconizar o fim da História, porque as Torres Gêmeas foram ao chão, a Ucrânia segue em guerra por uma disputa entre duas potências imperialistas, e tudo o mais que aconteceu entre esses dois eventos).

Não se se vocês também sentem que quase tudo que vem na esteira do que se convencionou chamar de pós-modernismo soa como uma espécie de vale-tudo, de diluição, repetição insossa; pra mim tem esse gosto, e não importa muito como a gente chame, se de pós-modernidade, tardo-modernidade, hiper-modernidade, ficando tudo pior quando a gente olha em torno e sente que o século XIX pode não ter acabado ainda, que podemos estar presos numa espécie de looping histórico em que fatos e estéticas se repetem numa espécie de série perversa, sensação que fica pior porque vem no bojo de discursos de elogio ao “novo” (parece até aquele partido que leva esse nome, que de novo nada tem, é a velha política das oligarquias numa embalagem edulcorada).

Na literatura esse fenômeno tem muitas faces, e quase todas passam por um completo desconhecimento da História e da tradição. Pois é, esta última palavra é particularmente problemática, mais ainda se for pensada sob a perspectiva do anjo benjaminiano, já que toda tradição está vinculada a um tempo que não passa de catástrofe, espécie de maldição que – não se enganem – atinge também a nós, que problematizamos tudo, das relações à comida, passando pelas definições de poesia e literatura, e talvez tenhamos nos perdido num labirinto de problematizações de tal modo capilarizado que não possibilita a reunião de tudo numa grande frente de real renovação dos modos de vida. Fosse diferente, é provável que não estivéssemos engolfados numa onda reacionária e no aperfeiçoamento constante do receituário do sistema para captura de nossos melhores esforços por uma financeirização e uma mercantilização selvagens. Onde a reação para esse estado de coisas? O que pode literatura, o que pode a poesia contra toda essa depauperação de nossas esperanças?

De digressão em digressão saí, como de costume, do assunto principal: as muitas faces de uma certa diluição na produção literária, e sua possível explicação pelo desconhecimento do que já foi feito. Nos últimos dias um meme circulou bastante pelas redes sociais, e ele, em sua aparente despretensão, explica muita coisa. A cena é a seguinte: um homem vestindo um uniforme militar está de mãos para o alto, rendido pelo que aparenta ser uma patrulha do exército inimigo, que aponta fuzis para o desafortunado. Então ele grita “Não disparem, sou poeta!”, e alguém da patrulha responde: “Prove!”. A resposta é mais ou menos um retrato de parte da produção que circula nas redes: “Não disparem sou poeta!” A questão se funda no que pode fazer de um poema um poema. O século XX, no processo mais do que necessário de questionamento de regras esvaziadas, foi pródigo em declarações bombásticas que, se tomadas integralmente a sério, levam ao polo oposto, um vale-tudo sem margens. Exemplo disso é a declaração de Mário de Andrade (uma figura que acho ainda precisa de mais estudo para que sua luta pela cultura seja compreendida) sobre a natureza do conto: “Conto é tudo o que o autor chamar de conto”. A liberdade que essa declaração pressupõe permite muita produção interessante, que por critérios clássicos seria recusada, mas toda liberdade pressupõe, do mesmo modo, o bom uso, a não incursão no que chamei de vale-tudo, e isso, penso, está numa entrelinha não dita – mas pensada – por Mário. Voltando ao meme: o que ele mostra é aquilo que tem sido chamado, em muitas postagens pelas redes afora, de “empilhamento”: o verso acaba sem razão aparente, sem nada que explique a versura, e segue na linha seguinte para realizar a mesma façanha do sem-sentido. Ou seja, todo o desenvolvimento de técnicas, das quais o enjambement é apenas um exemplo, parece desconhecido, ou é desconhecido mesmo, e aí toda a aventura de escrita das gerações anteriores fica relegada ao desprezo, a uma zona de sombra, tendo como resultado que cada vez temos menos ferramentas de leitura e interpretação do que é escrito.

Existe, no entanto, um outro polo na produção de hoje, que é a de poetas que conhecem muito sobre versificação, métrica, ritmo, todas as questões técnicas do verso, enfim, mas cuja produção parece não ter se descolado do século XIX. Se colocarmos os poemas de “Claro Enigma”, de Drummond, (ou do “Livro de Sonetos”, de Jorge de Lima, ou de “Siciliana” de Murilo Mendes”, entre outros exemplos), ao lado desta parte da produção contemporânea, esses poemas novos soam a naftalina, são como aquelas construções em que se apõem frontões e colunas gregas, sem agregar significado algum. Nesse momento o tempo se embaralha, e penso em Drummond, Jorge e Murilo como “jovens há mais tempo”, torcendo para jogar nesse time, rezando pra que as musas me protejam da água diluída do empilhamento, e da técnica vazia de poemas pomposos e engalanados que não dizem nada.

Paul Valéry conta a seguinte história, que costuma ser muito repetida por aí: certo dia o pintor Degas comentou com Mallarmé, seu amigo, que tinha boas ideias, mas que não conseguia fazer bons poemas. Mallarmé, teria respondido que poemas não se faziam com ideias, mas com palavras. Penso que se Mallarmé soubesse como sua frase seria deturpada décadas afora, teria apenas silenciado diante de Degas. O que Mallarmé quis dizer, por óbvio, é que para escrever poemas é preciso que ideias, boas ideias, sejam materializadas em palavras, e que, para isso, é preciso dominar um código específico, diferente daquele dominado por Degas, e muito bem, para a pintura. É deste domínio que falo, domínio que foi muito afetado pela má incorporação dos avanços das vanguardas históricas – mas isso é outro papo. Uma coisa deve estar soando estranha a vocês: o último número do RelevO trouxe apenas um poema de autora brasileira, o interessante “Talhar na nódoa um precipício”, de Ana Maria Vasconcelos, e estou aqui me estendendo sobre o que seja e o que não seja poesia….

Houve uma compensação, por certo, que foram os dois conjuntos de traduções publicados – os de Adam Zagajewski, Vasil Stus e Serhyi Zhandan, traduzidos por Piotr Kilanowski, e os de Laura Gilpin, traduzidos por Hélio Parente –, além da estreia do acervo da revista Escamandro, trazendo nessa estreia um texto de Guilherme Gontijo Flores sobre Adília Lopes, acompanhado de alguns poemas (há também o flash em três versos de Helena Kolody na contracapa). Esses três conjuntos, bem como o poema de Ana Maria Vasconcelos, provam que a tese de Mallarmé é muito mais ampla do que a redução de um poema ao jogo de palavras. A mesma coisa pode ser dita a respeito da prosa, e o conto de Paulo Moura também comprova isso, mostrando o desenrolar do desespero de um dos personagens diante da constatação de que quase tudo num relacionamento é fluidez e movimento.

Pensando bem, acho que este ombudsman queria se queixar de só haver um poema de poeta brasileir_ contemporâne_ na edição de junho, por mais que se divirta com os textos de humor – “Profissões mais top do agora” e “Relevo Turismo” –, e curta a nostalgia das colunas Enclave e Brazilliance. Talvez um pouco mais de poesia e ficção, que ficou restrita aos contos de Paulo Moura e de Nathália Fernandes, se afinasse com a potência de RelevO, que, penso, é mais do que fundada nessa divulgação.