Coluna de ombudsman extraída da edição de fevereiro de 2014 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.
Nós, os autores leitores, deixamos de ser solitários. Mas ainda recusamos o diálogo e a tentativa de retratar o outro.
A literatura não nos salvará por ser a própria perdição da qual fugimos. Como gênero artístico acuado, quase reduzido a um comportamento de nicho, as letras tentam reagir com ilusões de autoimportância. E nada mais chato que o discurso de elevação espiritual, dando a entender que o leitor dedicado encontrará nos livros uma espécie de código-chave para entender a humanidade, ou melhor, “para começar a entender”, dirá o autor/professor/ palestrante. Em literatura nada pode ser cabal, definitivo, objetivado. Sempre é preciso pairar sob uma zona de incerteza em que uma afirmação é também o seu oposto, o que permite ao enunciador discorrer longamente sem jamais se pôr em risco, como se pedalasse uma bicicleta com rodinhas.
A característica principal de qualquer militância é o desejo de se chegar a um fim específico e necessariamente correto. Na política, onde o fenômeno é mais facilmente visualizável, trabalha-se com dois horizontes de expectativa: o possível e o ideal. A realização do primeiro supostamente encurtaria a distância até o segundo. Mas como a militância precisa se manter viva e com o mesmo vigor, assim que o possível é realizado o ideal é reposicionado mais à frente em igual proporção. O vácuo impede a morte do desejo e a consequente desmobilização da militância.
A militância literária, benza-deus, prescinde de um fim social específico. Até onde sei, pelo menos, ninguém ainda criou um escopo ao estilo do comunismo utópico e saiu por aí a defender que todo cidadão deve ler xis livros ao ano ou, em algum momento da vida, desenvolver uma tese sobre algum estilo ou gênero. É mais um chamado ao aprimoramento pessoal. Leia porque é bom. Serás mais sensível e sofisticado. Saberás interpretar e desfrutar melhor a arte. Poderás relativizar a importância das coisas cotidianas. Embora encapada num altruísmo monástico, pouco se diferencia de um comercial de produto para emagrecimento, exceto pelo garoto-propaganda, na literatura geralmente alguém entediante, sem carisma e incapaz de seduzir sua plateia.
Apesar de tudo a literatura vive um momento de relevância, em especial entre os jovens. Não só entre eles, mas aqui ocorre um fenômeno novo e interessante. Os livros são pauta frequente de conversa, sem distinção de gênero (Guarde essa sentença. Ela será útil mais adiante). É também um fenômeno que irrompe barreiras sociais. Mesmo os jovens de classes mais baixas estão se mostrando antenados e curiosos. Ao contrário de tudo o que se diz sobre o preço do livro, a literatura ainda é uma experiência barata. E numa comunidade homogênea como a dos jovens na periferia, que se aproximam por gostos e preferências culturais, o indicar/emprestar/passar de mão em mão torna o custo marginal quase irrisório. Tudo isso é uma grande ilação minha, baseada em alguma (pouca, na verdade) observação. Em nada ajuda o fato de as pesquisas de leitura no Brasil pouco revelarem, autoanuladas por problemas graves de método e amplitude.
Teria a discreta melhora na educação pública brasileira influenciado a formação de leitores? (Essa melhora, sim, se pode provar. Basta dar uma olhadinha no Ideb). Talvez. Mas penso ser a internet hoje o principal motivador da leitura. Em todo o século 20 as mídias se alternaram como a principal fonte de informação e comunicação. Tivemos, pela ordem: o apogeu dos jornais, a era do rádio, a era do cinema, a invenção da televisão, a música como protesto e canto do cisne da civilização, o cinema de volta – via blockbusters juvenis, a consolidação da televisão, e por fim a internet.
Como já foi amplamente analisado, a ascensão de uma mídia predominantemente escrita sobre culturas ágrafas como a televisão e o rádio reposicionou o texto escrito no alto da lista de valores para o bem comunicar. Embora a internet seja o espaço multimídia por excelência, a maioria de seu conteúdo é escrito, e assim deverá continuar. É a forma de comunicar mais rápida, dinâmica, universal, prescinde de técnica e de tecnologia. Os usuários/produtores se digladiam por atenção. E cedo descobriram que a correção textual é um primeiro passo fundamental para o sucesso na rede.
Nos primórdios da web 2.0, linguistas de todo canto se escandalizavam com a distorção da norma culta que ocorria no meio virtual. Além da salada ortográfica, havia os casos extremos em que Si cOxtumm@va iXcreVr a$im. Tão natural quanto surgiu, esse “estilo” desapareceu. A abundância de informação exigiu das mensagens um esforço de correção para que sejam entendidas de bate-pronto, senão o descarte seria imediato.
O que tem a literatura a ver com tudo isso? Certa vez lembro uma colega da faculdade de jornalismo contrariada por haver na grade curricular a disciplina de cinema. Achava desnecessário estudar teoria e prática cinematográfica, ela cujo sonho era ser repórter de tevê. Faltava-lhe entender que a linguagem de tevê se alimenta, inova e renova a partir de sua arte-mãe, o cinema. Arrisco – mas não muito – a dizer que a arte-mãe da internet é a literatura. Na postagem diária, a busca por uma individualidade formal da escrita, como o exemplo do parágrafo anterior, foi substituída pelo esforço em reproduzir os códigos comuns que tornam a comunicação possível, e ainda sugerir o novo, o não-criado. Se revelam as carências do ensino da língua no ciclo de educação básica, também demonstram uma vontade de se aperfeiçoar nela.
Neste público jovem com tendência à formação de comunidades e engajamento, a literatura juvenil de massa tem feito sucesso inédito desde, pelo menos, a primeira metade do século 20. Harry Potter, com sua estratégia de serialização, foi o abre-alas. Outras séries copiaram tanto o formato quanto a premissa e conseguiram relativo sucesso no vácuo do bruxinho. Estas abriram caminho para autores nacionais como Eduardo Spohr e André Vianco, hoje bastante populares entre adolescentes. Esses autores, e essas obras, são formadoras de pequenas redes, capazes de agregar novos leitores para si apelando à sensação de pertencimento e necessidade de up-to-date. Ler se torna uma experiência coletiva e social. O mercado editorial ganha contorno de show -business, com estreias, datas de lançamento longamente esperadas, turnês de divulgação. O jovem leitor não é mais o excluído no porão; é o conectado à urbe.
No ensaio do mês passado, publicado neste mesmo espaço, já havia citado a necessidade de os criadores literários introspectarem a necessidade de liderança. Provocar, instigar, relativizar certezas. Mas para isso é necessário não somente fazer a mensagem chegar, mas criar condições para que ela ricocheteie entre os leitores, que crie uma movimentação autônoma semelhante à dos exemplos acima, mas sem o caráter reafirmador e contemporizador da literatura de massa.
A leitura da edição de janeiro do RelevO revela uma miríade de narradores solitários. A figura do personagem interlocutor é praticamente inexistente, e mesmo o Outro observável – estilo Holden Caulfield x a sociedade – é um ente raro. Exceção notável é a crônica Balcões, de ReNato Bittencourt. Aqui, o jornal pende para um “em-si-mesmamento” hermético ao diálogo. O eu-lírico do jornal gasta quase todo o papel tentando se compreender, impedindo o leitor de também tentar compreendê-lo, ou compreender a si mesmo.
Alguns poderão afirmar ser uma tendência natural dessa forma de arte e citar uma infinidade de autores consagrados com propostas similares. Antes que o façam, concordarei previamente com o argumento, poupando-lhes o trabalho. Mas quando o único leitor a encontrar um ponto de identificação no texto é seu próprio autor, temos um inescapável problema de autoreferência. Apesar de literário, somos um jornal. Se relegarmos o diálogo com o leitor, ele reciprocamente recusará a sua leitura.
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Na edição de janeiro, Daniel Osiecki comenta uma crônica de Renato Vieira Ostrowski, publicada em uma coletânea que o primeiro analisa e, coincidentemente, republicada na mesma edição do jornal. Uma informação que somente o leitor atento é capaz de captar, pois o próprio periódico em nenhum momento o informa sobre ela. Cabe ao editor promover um diálogo interno entre os autores, apontando complementações, proximidades e debates sempre que eles existiram. Pode (e deve) inclusive intervir com pequenos textos que atentam para uma leitura comparada. É a mesma procura de unidade que defendo no trecho acima.
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Na edição de dezembro, o mesmo Daniel Osiecki escreveu um pequeno ensaio sobre a produção editorial no Paraná. Sua posição provocou certo burburinho no Facebook e iniciou um pequeno e saudável debate na mídia social. Um jornal mensal não consegue acompanhar a velocidade desses acontecimentos, mas é importante não deixá-los soltos na webesfera. Um convite a escrever réplicas e tréplicas, consolidando opiniões que acabam ficando soltas na rede, ajudaria a manter a discussão num bom nível de embate de ideias.
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Autores desta seara, agridam-se com mais virulência.
Nota do editor:
É propósito do periódico promover maior diálogo entre seus conteúdos internos e trazer para o papel as discussões suscitadas em outras plataformas, fundamentais para o crescimento e consolidação de nosso trabalho. Buscaremos com mais rigor este tipo de conexão, evidentemente precária nos casos acima citados.