Osny Tavares: O aqui, agora

Coluna de ombudsman extraída da edição de março de 2014 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Passamos por um período de urgência e aspiramos a revolução. Enquanto isso, nossa literatura segue atavicamente progressista.

 

Nada mais opressivo ao escritor de ficção que a História com agá maiúsculo, que insiste em cobrar o seu quinhão de fidedignidade. Mas não é por isso que ando por aqui neste mês, embora deva falar um pouco sobre História e histórias ao longo dos parágrafos abaixo. Co­mentarei, porém, a relação do jovem escritor com o tempo em que vive e como absorver a consciência de época – popularmente chama­da de zeitgeist – sem parecer datado ou ante­cipado. Fiquei às voltas com o assunto durante as semanas anteriores ao Carnaval, enquanto produzia uma reportagem sobre o impacto do golpe militar sobre a literatura brasileira do período. O material será publicado na edição de março do Cândido, que circulará paralelo a este RelevO. Fica desde já o convite à leitura do coirmão.

É um tempo interessante para ser jovem. Tudo parece aberto à refundação e cada pe­queno setor da vida abriga um comitê repleto de delegados a discutir até as cláusulas pétreas da vida. O que era automático, uma imposição da cultura sobre a qual não se refletia, torna-se um ato político. De mastigar um bife a torcer pela seleção brasileira na Copa, o indivíduo é desafiado pelos significados sociais de seus atos. O que é ótimo, pois parece um caminho necessário à lucidez.

Penso que a literatura, e principalmente do tipo que fazemos aqui, tenha um papel impor­tante em estabelecer um conhecimento mútuo entre os atores. Por dois motivos: primeiro, o imediatismo do periódico mensal dedicado ao texto curto permite uma reflexão quente, mas já com certo arrefecimento de ânimos. Por ve­zes, a contagem de dez segundos é insuficiente para recuperar a ponderação. Em um mês, en­tretanto, é possível contar até 2,6 milhões.

Não defendo, claro, que o jornal se torne refém de uma pauta de acontecimentos ime­diatos e se preocupe em caricaturar o real em pseudoliteratura. Mas é inegável que os fenô­menos que presenciamos atualmente repre­sentarão parte significativa de nossa identi­dade de época. Os protestos de junho de 2013, por exemplo, têm potencial para se tornar nos­so Woodstock — um evento que define a per­sonalidade de uma geração. E perceba que a comparação é possível apenas porque o evento de 1969 foi sistematicamente esmiuçado pelo olhar artístico ao longo das últimas quatro dé­cadas. As produções mais recentes tendem a ser mais maduras, porém os contemporâneos do festival foram responsáveis por tornarem-no icônico, enviando os primeiros sinais de “olhe para isso”.

No Brasil, presenciamos um despertar polí­tico da juventude após vinte anos de calmaria. A transferência de responsabilidade para “os políticos”, entendendo-os como representan­tes de uma classe autônoma, cobrou o seu pre­ço. Mais do que serviços públicos de qualidade, os cartazes nas passeatas clamam por um pro­jeto de vida adulta relativamente satisfatório. A geração nascida a partir dos anos 90 cresceu isenta das grandes utopias da modernidade, porém não encontrou nada para colocar no lugar. Batendo à porta de entrada para a vida adulta, tudo o que consegue vislumbrar como “o possível” é a reprodução de um projeto de felicidade individual que consiste em seguran­ça material e estabilidade, algo instintivamen­te avesso aos impulsos orgânicos da juventu­de. A adesão em massa a “causas” surge como a tentativa de responder de forma altruísta à opressão do bem-estar, cujos efeitos negativos incluem alienação e solidão.

Agora, vamos contra-argumentar.

É próprio da literatura tentar escapar das armadilhas de seu tempo para tentar cons­truir algo permanente. O próprio autor tende a ser identificado como um sujeito meio afasta­do das questões imediatas de sua vida, embora seja intelectualmente forjado por um proces­so coletivo no qual a data é um dos principais elementos definidores. O triunfo do artista ocorre quando, acorrentado ao hoje, consegue projetar o estético ou o existencial de amanhã. Mas a perenidade é uma ilusão. O descarte é bem-vindo para permitir que o novo surja e realizar a ambição humana de viver um pouco mais que uma única vida.

O RelevO flerta com o distante, o que é bom, mas permanece distante do próximo, o que não é tão bom. Ondas curtas não pegam no rá­dio do vizinho.