Osny Tavares: Literatura grátis aqui!

Coluna de ombudsman extraída da edição de maio de 2014 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


No primeiro texto enviado ao RelevO, quando da estreia do espaço de ombudsman, comentei longamente sobre a necessidade de os artistas incorporarem a altivez do palco e se abrirem à provocação. Quando falo em artistas incluo os literários, também conhecidos como escritores. Estava então em meio a um longo ensaio pessoal, que relacionava a arte e a tecnologia com a experiência deste jornal, e usei um pequeno trauma de infância para ilustrar o que imagino ser um ponto de ruptura no fazer artístico. Era uma pequena analogia, claro, porque este processo ainda não se resolveu em mim. Ainda assim a ilustração parece ter cumprido o objetivo, pois nas semanas seguintes conversei com alguns leitores-escritores, do RelevO e similares, que demonstraram passar pela mesma – e necessária – aflição. Quero agora voltar ao assunto.

Em meu ainda curto e largamente incompleto desenvolvimento artístico-intelectual, tive a sorte e o prazer de ser influenciado por algumas pessoas-chave. Ironicamente, quem mais me desenvolveu literariamente foi um artista sem ligação direta com esta forma de arte. Músico ligado ao samba e aos movimentos culturais populares, ensinou-me pelo exemplo algo muito verdadeiro sobre o ímpeto da criação: fazer arte é se vestir de baiana e rodar no meio do Largo da Ordem, algo que ele fez de forma literal.

Comparando a música à literatura, há aqui uma diferença e uma aproximação. Por se tratar de uma arte performática, a música exige do artista o esforço em criar uma fruição “quente”, no qual o ato da criação ou execução de uma obra é parte incondicional dela. Diferente da literatura, produzida em oficina, clandestinamente, até que surja um produto final sedimentado pela impressão e que será usufruído pelo leitor em outro momento, de forma distante e independente do artista. Um ofício predominantemente solitário, tedioso até.

É um processo que deixa marcas evidentes na personalidade dos autores, que não raro desenvolvem uma tendência à introspecção e à timidez, quase sequelas da interação fria da linguagem escrita. Em períodos anteriores da história cultural, a poesia sempre serviu como contraponto, com declamações, concursos e apresentações públicas que aproximavam a literatura do teatro. Um ato que acabou se reduzindo à medida que a própria poesia perdia interesse entre o leitorado. Se este renovado interesse pelos versos, principalmente entre os jovens, não for apenas mais um balão de ensaio, seria interessante e importante que esse tipo de evento voltasse a ocorrer com frequência.

Porém, produção e divulgação não se guiam pelas mesmas balizas, e aqui a porca estica o rabo, pois, ao contrário do dito popular, já o mantém naturalmente torcido. Num campo marcado pelo excesso de produtos, propostas, autores e aspirantes, conseguir um espaço de relativo destaque requer certo jogo de ombros, que implica não somente insistência, mas, sobretudo, uma boa dose de abnegação e contemporização. Traduzindo para o português corrente: cara-de-pau. Largos e arranhados são os ombros do escritor. O gaúcho Fabrício Carpinejar pode ser um exemplo positivo. Mais ouvido que lido, é um cara que soube usar a chamada “cauda longa” a seu favor. Tirando um ou outro excesso, há o que se aprender com ele.

Com a planificação do acesso aos meios de comunicação, o autor se transformou em um promotor de si mesmo. Isso é ainda mais evidente entre iniciantes, que precisam chamar a atenção para si e sua proposta artística. Mas as características de personalidade que elenquei acima parecem criar uma cultura de passividade, em que o autor apenas se arrisca a colocar a cauda para fora d’água e espera ser pescado. É um comportamento ainda mais arraigado em Curitiba, onde escritores faziam edições artesanais e distribuíam entre os amigos. Pode ser válido dentro de uma proposta limitante, e num tempo anterior ao nosso. Mas jamais se consolidar com tradição.

Um editor, diante de um site ou jornal de literatura, deve se sentir como o Cristiano Ronaldo diante do Tinder. Tudo deve ter mais ou menos a mesma cara – a maioria aprazível; a extrema minoria, apaixonante. O RelevO é um periódico que se destaca por não ser escravo do próprio projeto editorial e gráfico. Ainda assim, seus colaboradores eventuais pouco oferecem de inovação estética. O pessoal do design é o melhor que a ausência de dinheiro pode comprar, capitaneado pela eficiente Iara Amaral. E não digo isso apenas por saber que ela nutre uma recíproca admiração por mim, mas porque há aqui um zelo pela elegância e legibilidade não muito comum em similares. Tenho certeza que esse pessoal adoraria afinar o contato com os autores e pensar um produto conjunto entre texto e imagem, estreitando o diálogo entre os dois discursos.

Também há recalibragem possível para o texto. Desenvolver minha opinião sobre isso vai requerer uma nova coluna, provavelmente a próxima. Se não tomar cuidado, posso estar estimulando o mesmo modernismo fora-de-época quase dadá, meio afetado, meio jeca, que ronda nossa gleba.