O escritório onde gostaríamos de procrastinar…

…ou até trabalhar. Elegantemente.

Extraído da edição 77 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

A essa altura de 2020, qualquer comentário sobre 2020 é redundante, repetitivo; uma retroalimentação entre cansativo e cansado. A Enclave te poupará (mas, principalmente, se poupará) de qualquer análise.

Mas houve bons momentos em 2020, naturalmente. Entre aqueles agradáveis e singelos na vida do editor, consta a descoberta acidental de um livro sobre o arquiteto Frank Lloyd Wright (Wright, 2006) escrito por seu aprendiz Bruce Books Pfeiffer (1930-2017) e editado pela Taschen.

O livro foi traduzido para o português (de Portugal), então distribuído no Brasil pela Paisagem. Não sei como foi parar no canto escuro de um sebo pouco charmoso do centro de Curitiba, onde eu havia entrado para buscar outra encomenda e, com a adição de 18 reais, saí com duas. (Aparentemente, ainda há opções baratas no mercado.)

De acordo com a folha de rosto, Wright: construir para a democracia foi impresso em Singapura, o que, em outra descoberta acidental, nos liga à última Enclave. Pois bem, se semana passada sonhamos com coquetéis no Atlas Bar, hoje trazemos a matriz da SC Johnson em Racine, Wisconsin (EUA).

Finalizado em 1939, o edifício contém esse escritório que você vê na abertura do nosso texto. Mas a criação de Wright vai muito além do escritório (embora este nos cative mais no atual momento): o edifício, complementado por uma torre de pesquisa em 1950, é tão singular como encantador, interna e externamente.

Segundo Pfeiffer (p. 57), “Na sala de trabalho principal, uma floresta de finas colunas brancas de betão eleva-se para se abrir em cima e formar o tecto, sendo os espaços entre os círculos cheios de clarabóias feitas de tubos de vidro. Nos cantos, onde as paredes normalmente encontram o tecto, estas param um pouco mais abaixo, sendo continuadas por tubos de vidro que se ligam às clarabóias”.

O Arch Daily descreve o Johnson Wax da seguinte forma:
  • “Estar no edifício é um pouco como estar em uma floresta. Um estacionamento mais baixo, com colunas menores, leva ao saguão. Quando alcança-se a Grande Sala, o céu se abre e você está cercado por esbeltas colunas cogumelos e raios de luz. (…) Wright forneceu espaço de trabalho quase utópico, auto-suficiente e um tanto quanto futurista. A atmosfera moderna e racional foi comunicada através de uma linguagem circular consistente, perfis de canto curvos, formas arredondadas em peças de mobiliários e o uso do vidro Pyrex, que se estendem além dos materiais de cobertura para divisórias de paredes e substituem as janelas convencionais.”

Tal como o bar em Singapura, as fotografias são autoexplicativas. Nesse escritório, gostaríamos de usar o YouTube, reclamar da falta ou do excesso de ar-condicionado, decidir onde almoçar, ouvir fofocas sobre o alto escalão corporativo (sem fomentá-las!), isto é, tudo aquilo que se faz num escritório.

Esta página institucional da SC Johnson contém um histórico e mais fotos, algumas bastante preciosas. O Atlas of Space, por sua vez, dispõe imagens inestimáveis aos interessados – em alta resolução. Dele, extraímos as fotografias no miolo deste texto. Outra página do Arch Daily (aqui, em inglês) apresenta mais imagens e mais detalhes da construção.

Tony Garnier

Extraído da edição 48 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

No início do século passado, Lyon, na França, passava por uma grande industrialização. Centro metalúrgico, a cidade, cuja linha férrea com início em St. Étienne havia sido asegunda da história do país, já se adaptara a uma nova realidade de produção. Somam-se a isso a primeira fábrica de automóveis da França – uma Berliet –, testes com os primeiros aviões e a invenção do cinematógrafo. (Lembra do primeiro filme exibido ao público? Aquela fábrica se tornou o Instituto Lumière.)

Lyon, enfim, compunha um contexto agitado, modernizado e propício a especulações. Isso provavelmente borbulhava na cabeça de um arquiteto local, o talentoso Tony Garnier. Nascido em 1869, Garnier estudou na École des Beaux-Arts, em Paris, e retornou a Lyon, onde projetou aquela que seria, para ele, a cidade ideal. Seu projeto, Une cité industrielle, refletia o planejamento de uma utopia.

Une cité industrielle foi publicado em 1917 após vários anos de estudos. Preocupado com a monotonia do trabalhador em seu ofício, Garnier visou ao lazer e à acessibilidade de áreas verdes — cada casa de família, por exemplo, teria um jardim. A cidade foi idealizada para 35.000 habitantes e continha as seções industrial, agricultural, universitária, sanitária, residencial e pública, esta última dividida entre setores administrativo, cultural e esportivo.

A utopia projetada por ele não continha delegacias, tribunais, prisões ou igrejas. Porque capitalismo. Não obstante, existe ali um legado arquitetônico mais rico do que a ignorância arquitetônica do editor permite enxergar – como a existência de edifícios de concreto armado – portanto permanecemos na apreciação estética. Se você entende algo de francês, vale se atentar a este documento aqui. Se não entende, fique pelas imagens e dificilmente se arrependerá.

Antonio Sant’Elia

Extraído da edição 46 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente.

Algumas pessoas, projetos ou fenômenos acumulam reconhecimento não somente pelo que foram, mas também pelo que poderiam ter sido. Como nas despedidas prematuras do Duna de Jodorowsky, do craque Dener e do humorista Douglas Kenney, a arquitetura – e o imaginário do século 20 como um todo – pode enxergar a morte precoce de Antonio Sant’Elia com uma lamentação bastante fundamentada.

Nascido em Como (Born in Eat), Sant’Elia estudou arquitetura em Milão. Lá, conheceu figuras como Carlo Carrà, Umberto Boccioni e Luigi Russolo, concluindo a formação de professor de desenho arquitetônico. Trabalhou como empreiteiro nas obras de um canal e passou a ter contato mais direto com questões urbanísticas, sobre as quais nunca deixou de pensar.

Com demais artistas nacionalistas e falastrões, aderiu ao Futurismo e criou o manifesto de arquitetura do movimento (1914), cujas ideias defendeu até o fim da vida. O que, na verdade, foi pouco depois disso, pois Sant’Elia morreu em 1916, aos 28 anos. Ele servia voluntariamente ao Exército Italiano e lutou contra o Império Austro-Húngaro em meio à Batalha de Isonzo, durante a Primeira Guerra Mundial.

Mas Sant’Elia é um arquiteto de legado atípico: apenas um de seus projetos foi construído Villa Elisi, 1912), o qual nem caracterizaria um one-hit wonder, pois Villa Elisi sequer dispõe de alguma notoriedade. A grande contribuição de Antonio Sant’Elia ressoa nos cenários futuristas que até hoje emulam vários de seus traços. Não à toa, Sant’Elia ficou conhecido como o arquiteto que inspirou Metropolis e Blade Runner, não por acaso entre os filmes visualmente mais influentes da história. (Estamos há zero edição sem falar em Blade Runner).

Suas contribuições mais vívidas provêm de 1913, quando passou a representar a utopia moderna com  que sonhava. Com uma delas iniciamos o texto; com algumas outras o encerramos. Interessados podem conferir todos os desenhos (sobreviventes) de Antonio Sant’Elia na página dedicada à obra deste arquiteto e no WikiCommons. É uma pena que ele não tenha vivido tempo suficiente para contribuir ainda mais com nosso imaginário de futuro.

Palais Idéal du Facteur Cheval

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Enquanto percorria sua rota diária em uma tarde de abril de 1879, o carteiro Ferdinand Cheval tropeçou em uma pedra de aspecto curioso e se encantou por sua beleza. Decidiu levá-la para casa, mesmo sem ter muita ideia do que faria com ela.

A partir do dia seguinte, ele passou a notar no seu caminho as diversas rochas e formas esculpidas pela natureza, decidindo coletar o que lhe chamasse a atenção para construir, no terreno ao lado de sua casa, no sudeste da França, um palácio: o Palais Idéal du Facteur Cheval.

Idealizado primeiro como um templo à natureza, depois como seu local de sepultura, a obra é o resultado de 33 anos – 10 mil dias – de trabalho quase cotidiano e de aperfeiçoamento contínuo. É, segundo o próprio artista, o “Panteão de um herói obscuro”.

Embora alguns desenhos tenham sido idealizados, não há um projeto definido. A expansão da construção acontecia de forma desordenada e orgânica, seguindo a imaginação de seu criador e os diferentes materiais encontrados a cada dia.

O simbolismo e as referências das esculturas e estruturas vêm da Bíblia (da qual Cheval era leitor ávido), das tradições hindu e egípcia e dos numerosos cartões postais e revistas aos quais ele tinha acesso por sua profissão de carteiro.

Entre os elementos mais marcantes estão Os Três Gigantes (simbolizando Arquimedes, Júlio César e o líder militar gaulês Vercingetorix); a Mesquita; o Pecado Original e o Templo Egípcio, inicialmente previsto como o local de seu enterro.

O palácio sempre chamou a atenção do público. Já nos primeiros anos de trabalho, vizinhos visitavam Cheval e achavam graça da ideia maluca de construir de pedregulhos e argamassa. Mas isso apenas o deixou mais motivado e certo de que sua obra era única.

Entre seus admiradores, figuravam os surrealistas André Breton e Max Ernst (que pintou o quadro O Carteiro Cheval em 1932), além de Picasso e, claro, os milhares de turistas que vão todos os anos à cidade de Hauterives para testemunhar esse exemplo único de Arte Bruta e arquitetura Naïve.