Extraído da edição 104 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.
O leitor irá certamente deplorar que, pouco depois do meu retorno à civilização, eu tenha tido mais um embate com a insanidade (se é que à melancolia e a uma sensação de opressão intolerável cabe de fato aplicar esse termo cruel). E devo minha plena recuperação a uma revelação que tive enquanto me tratava num sanatório particular especialmente dispendioso. Descobri que existia uma fonte inesgotável de intenso entretenimento em zombar dos psiquiatras: fornecer-lhes ardilosas pistas falsas; jamais deixar que percebessem o quanto conhecemos os truques do seu ofício; criar em seu benefício sonhos elaborados, clássicos no estilo (que faziam com que eles, os extorsionários de sonhos, acordassem aos gritos com seus pesadelos); espicaçá-los com “cenas primais” forjadas; e nunca permitir que tivessem o mais ligeiro vislumbre de nossos verdadeiros conflitos sexuais. Subornando uma enfermeira, adquiri acesso a certos arquivos e encontrei, para meu grande regozijo, fichas que me definiam como “potencialmente homossexual” e “totalmente impotente”. A diversão era tamanha, e seus resultados – no meu caso – tão estimulantes que permaneci internado por mais um mês depois de plenamente recuperado (dormindo admiravelmente e comendo como uma escolar). E depois ainda fiquei mais uma semana só pelo prazer do confronto com um poderoso recém-chegado, uma celebridade deslocada (e, sem dúvida, delirante), conhecido por seu talento de fazer os pacientes crerem que tinham testemunhado sua própria concepção.
Vladimir Nabokov, Lolita, 1955 (Alfaguara, 2011).