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Essa é uma pintura de Edward Hopper no Rio de Janeiro, embora Hopper (provavelmente) nunca o tenha visitado, muito menos retratado. Para criá-la, precisei digitar uma frase e clicar em um botão.
Empolgado, fiz Hopper ir a Tóquio e recriar seu ‘Nighthawks’ lá. Por fim, ele precisou reproduzir a obra em uma estação espacial.
Aí a coisa começou a ficar séria. Subitamente, me senti movido por aquela inquietação primal diante da infinidade de escolhas. Havia um universo de possibilidades à minha frente, à minha disposição. Bastava eu brincar.
E se Canaletto pintasse Hong Kong? E se também pintasse o Rio de Janeiro?
E se Francisco de Goya retratasse uma casa de ópio?
A partir daí, misturei diversos temas que já passaram por este enclave (“E, aliás, que seria de mim, que seria de nós, se não fossem três ou quatro ideias fixas?!”, Nelson Rodrigues).
Obriguei Umberto Boccioni a retratar uma partida de futebol; e Pieter Jansz Saenredam, o Maracanã. Fiz os astecas derrotarem os conquistadores espanhóis com um auxílio cyberpunk; depois, fiz Picasso estar lá para imortalizar o momento. Então, vi a gloriosa Tenochtitlán ser invadida pelas criaturas alienígenas de Guerra dos Mundos.
Eu poderia passar horas nisso sem piscar. Caravaggio recriando Blade Runner; Syd Mead desenhando um Honda Civic 2000; Arnold Böcklin retratando o ritual de Eyes Wide Shut; a Xangai futurista de Hieronymus Bosch; Pieter Bruegel pintando a colonização de Marte.
A partir do DreamStudio, como outras ferramentas já fazem (DALL-E 2, a mais famosa delas), eu estava concretizando sonhos, devaneios, fantasias e demais ocupações lúdicas da mente – sem dispor de nenhuma técnica para tal. A inteligência artificial, nesse estado tão desenvolvido quanto acessível (de graça), já é capaz de produzir arte sem o artista. Que troca fabulosa!
Claro, podemos estender uma discussão semântica para o conceito de “artista”: serão os programadores? Seremos nós, meros usuários? Porém, não vamos estender essa discussão (não hoje). Afinal, diante de ferramentas como o DreamStudio, a própria função [artista] se torna dessacralizada – sem abandonar a beleza da criação [arte] em si.
E aí, quem sabe, isso nos trará algum tipo de crise existencial (não será a primeira; não será a única). Quem sabe banalizaremos qualquer elemento belo gerado sem nenhum esforço. Quem sabe isso não será problema, diante da breguice em escala industrial. Vale lembrar que estamos em um planeta cheio de bonecos funko pop – e que eles custam caro.
Enquanto isso não acontece, vale deliciar-se com a novidade de terceirizar a execução da própria imaginação. Em algum momento, é inevitável que a mesma brincadeira não se aplique à música, se é que isso já não existe.
Isto é, em uma mera página do navegador – carregando uma infraestrutura inimaginável há 20 anos –, que eu possa solicitar e gerar um álbum colaborativo entre Tom Jobim e David Bowie com um clique, pedir a música X com o arranjo de Y ou consiga produzir faixas drum & bass do Geraldo Vandré.
O texto é uma mídia mais acessível: o gerador de pós-modernismo, por exemplo, data de 1996 (!). Da mesma forma – mas com um funcionamento mais complexo –, hoje alguns chatbots até conseguem sustentar uma conversa (às vezes, às vezes).
Quem sabe um dia, com ainda mais processamento, dados etc., eu não consiga gerar um longa-metragem (“O Homem que Copiava by Stanley Kubrick”), e até lá a noção de artista, autoria e atribuição já tenha se diluído de tal forma a nos aperfeiçoarmos nos verdadeiros desafios imutáveis da sociedade, como inserir anúncios na Lua e impedir os sem-teto de dormir confortavelmente.
Já vivemos num mundo onde a Magalu quer ser sua melhor amiga e um rapper virtual assina um contrato, depois é demitido por negligência racial (FNMeka: seu TikTok, cujo apelo me foge, já tem 10 milhões de seguidores). A inteligência artificial também já pode corrigir sotaques – atenção às aspas, mesmo sem aspas – para call centers e identificar você, seus amigos, sua família em fotografias pessoais.
Por ora, a Enclave segue apaixonada por qualquer ferramenta que lhe proporcione inserir o ‘Caminhante sobre o mar de névoa’ em Júpiter.