Baú: Mauá, por Jorge Caldeira

Extraído da edição 89 da Enclave, a newsletter do Jornal RelevO. A Enclave, cujo arquivo inteiro está aqui, pode ser assinada gratuitamente. O RelevO pode ser assinado aqui.

Essas ideias do capitalismo triunfante contrariavam frontalmente toda a formação pregressa do adolescente, regida pelos valores tradicional do paternalismo. Mas eram atraentes para um menino sempre solitário, dono de seu nariz desde criança. Ler algo como “cada pessoa é, sob todos os pontos de vista, mais apta e capaz de cuidar de si que qualquer outra pessoa” num texto de [Jeremy] Bentham parecia para ele uma descrição da natureza de sua vida. Abraçando essas ideias Irineu [Evangelista de Sousa] se fazia adulto, mas um adulto de difícil enquadramento. Precisava se comportar de acordo com tudo isso. Tentando ser o que lia, passou a cultivar sua barba rala, e usar casacas pretas como um inglês sisudo. Acabou meio perdido na cidade. Naquele momento, seria muito difícil para algum gaúcho que o conhecesse de infância achar nele alguma coisa do menino de família patriarcal que um dia tinha sido. Quase só se interessava por negócios, um assunto indigesto na grande maioria das conversas brasileiras. Se nos tempos de Pereira de Almeida [comerciante e antigo chefe] ele já sofria com o fato de ser um brasileiro enfiado num mundo “português”, agora era definitivamente um tipo raro. Até mesmo os antigos colegas da praça carioca estranhavam quando ele pronunciava seu próprio nome. Dizia “Eirneo”, com um sotaque carregado. Tinha mudado tanto que até passou a fazer contas em inglês.
O que o levava para longe no mundo da infância e dos colegas de adolescência não bastava para torná-lo mais palatável no novo ambiente. Os ingleses eram muito ciosos de suas origens, e não se deixavam levar por imitações. Muitos comerciantes e caixeiros o consideravam apenas uma versão ainda mais esquisita das esquisitices de seu patrão, e com bondade poderiam até perder algum tempo discutindo certos detalhes de sua pronúncia. Mas essas considerações duravam pouco, e podiam ser encerradas tranquilamente com uma velha frase de ocasião: “Very peculiar“. Sem saber muito para onde ir, tinha um único grande amigo, tão deslocado como ele: João Henrique Reynell de Castro. Filho de um médico judeu que teve de trocar de nome e se converter ao cristianismo para chegar ao cargo de físico-mor de dom João VI, Castro tinha sido mandado de Portugal por um dos irmãos de [Richard] Carruthers para trabalhar com ele. Não se adaptara ao cristianismo, nem a Portugal – e também não estava muito satisfeito com o Brasil. Acabou se aproximando de Irineu porque os dois tinham algo em comum, além do deslocamento: sonhavam com fortunas, grandes jogadas – e também com a Inglaterra. Reynell de Castro queria ir embora para lá, cumprir seu destino de aventureiro errante. Acabou em Manchester, mas a amizade ficou. Irineu nunca deixou de lhe escrever, sempre começando as cartas com o epíteto “My dearest friend“, mesmo quando Reynell de Castro criava problemas nos negócios que faziam juntos, realizando os sonhos de fazer fortuna da adolescência.

Jorge Caldeira. Mauá: empresário do império, 1995 (ed. Companhia das Letras, 2011).