Zeh Gustavo: DA ANESTÉSICA INDIFERENÇA DE UMA LONGA AGONIA

Coluna de ombudsman extraída da edição de junho de 2024 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


O trânsito infecundo das horas e anos, as tragédias em série da (in)consequência do Antropoceno, a troglodice da extrema direita ultraliberal não ajudaram para uma mudança abrupta de visada, em que pese seguirmos fazendo nossas coisas e comprando nossos próprios livros (os que insistimos em escrever) com um descontão de 30%. Pois então: sabe aquela candura de poeta de sarau, olhos brilhosos, gestos expansivos? A coisa do “Porque a puesia (complete com o que quiser de bonitinho aí)…”? Pois é, nunca me convenceu! Sempre achei que, dentro ou fora daquela, desta bolha estávamos – e estamos – é muito fodidos.

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Não há muito o que comentar. Na boa: maio/2024 foi a pior edição do RelevO que já li. E não culpo o Conselho Editorial pelo meu drama pois curadoria trata-se de mera cambonagem: quem incorpora a literatura na nossa tendinha impressa é quem a escreve. Confere, produção?! Ou tava todo mundo mesmo de sacanagem e sobrou pra mim o bagaço da laranja?

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Ou devo eu tergiversar acerca do respeito que Cícero afirmou terem os juízes – os juízes! – pela voz dos poetas (!)? Rimbaud: após tanta humilhação, restaria alguma dignidade? Noutro vértice: Vitor Miranda de fato deixou – ou deixaria – de ser um canalha? Ou foi visto estacionando no Leblon com o Caetano? Henrique Pitt: tal de maturidade literária é de cumê? Ou é biricutico? Me conta: fica bom com o quê? No mais: siameses separados, mula-mulher sem cabeça que deu pro padre, cartas nunca enviadas a Deus (faltou o CEP?), o cosmobol da Serra Talhada, uma ode ao tomate na fruteira (!) e outra à apoptose (!!!), em dois poemas empolados…
Sono. Muito sono.

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A pior edição. Mas, e daí?

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Eis que a literatura se encontra enfiada em uma longa agonia, que se acelera. Porque a literatura não importa. Romances-vivências, contos com participação dos leitores no Kindle (engajem ou morram, seus fidumaputa!), poemas do tipo olha-o-que-andei-lendo-pro-meu-doutorado ou faço-valer-minha-identidade-oprimida o comprovam. Não importa a literatura se você praticou inclusão. Não importa a literatura se você não praticou inclusão. A literatura – como texto de ultrapassamento da linguagem, rasura-testemunho de uma época, jogo de luzes no breu dos debates comuns, fossa da linguagem em fissura –, a literatura, como tal, não mais importa.

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É essencialmente estético. E o estético é político. E define nossa existência perante o outro, no mundo. A vida precisa ser bela. E o belo, nesse caso, não é um ornamento, mas um princípio – alguma tentativa, forma ansiada do ser que verse sobre o único e plural, o singular e vário. Ao mesmíssimo (contra)tempo. Ainda que entre notificações do celular.

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Exceção única (o fumo que se fume: que nunca mais se use Campos de Carvalho de muleta!): a cobertura (isto aqui permanece um jornal!) que o Enclave deu ao filme Dias perfeitos. Com este vaticínio: “a beleza se encontra em dois opostos complementares: (1) a repetição consciente e (2) a quebra inesperada (…). Abraçar o primeiro ajuda a saborear o segundo.”

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A indiferença geral machuca, claro. Mas dói mais a indiferença manifesta em apatia e obra insossa, alheia tanto à consciência de se empreender uma repetição quanto à premência do se buscar o inesperado. Até quem normalmente já seria medíocre pode mais.

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Na textura dos silêncios, a gente apanha da reflexão, que é ulterior ao sentimento. Nasce, assim, o insight. Ao termo em inglês, a preferência da firma é por estalo. (Haverá tentativas de indefinição semântica desse termo, em breve ou nunca, neste periódico.) Depois disso, dá um trabalho danado, ainda.