Carla Dias: O fazer cultural e a apreciação de suas crias

Coluna de ombudsman extraída da edição de abril de 2015 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Espero que nesta edição estejam todos bem. Direitos garantidos, deveres em dia, percepção afiada e afinada com os fatos. O mundo anda meio complicado, mas vamos descomplicar o que for possível, que leveza nunca é demais e ainda colabora para que observemos a vida com mais cuidado e respeito.

Lendo o editorial da edição de março do RelevO, identifiquei-me com a posição de se fazer o que se faz bem, como este jornal, sem comprometer conteúdo. Tarefa árdua, porém gratificante.

Quem lida com o fazer cultural sabe: captação de recursos é trabalho hercúleo. E se o criador do projeto prezar pela sua originalidade, muito do que o torna singular pode se perder durante o processo de adequação à necessidade do mercado. Necessidade que nós mesmos criamos, ou seja, temos o poder de mudar o rumo dessa prosa, melhorar até mesmo o que nos parece impossível de ser melhorado.

Tem sido cada vez mais frequente que adaptações feitas para que projetos culturais se encaixem no perfil de seus patrocinadores acabem em devastadoras transformações, descaracterizando o que seria a essência do projeto. Para que aquele projeto que você ama sobreviva, é preciso amá-lo na prática. Compre os livros e os discos, vá aos shows e espetáculos teatrais, assine os jornais. Ame os projetos culturais que lhe apetecem. Somente assim é possível se manter a diversidade cultural e a originalidade do que resulta deles, seja um livro, um disco, um espetáculo teatral ou um jornal literário, entre outras tantas opções.

Antes de falar sobre a edição passada, quero dizer que há quem reivindique reportagens sobre literatura no periódico. Seria ótimo se elas fossem integradas ao jornal, mas não ao custo de termos menos páginas com obras literárias. Ler sobre literatura é importante, mas não tanto quanto ler literatura. Acho válido se forem incluídas páginas extras no RelevO para tal fim, mantendo o espaço atual para os escritores terem suas obras publicadas e os leitores aproveitarem a leitura.

Outra questão é a falta de material fotográfico. Particularmente, adoro pegar emprestadas obras de amigos fotógrafos e artistas plásticos para ilustrar os meus textos. Considerando não somente o meu gosto, mas o que de positivo isso pode trazer ao impresso, temos visto notáveis obras de artistas diversos ilustrando o jornal. Incluir material fotográfico me parece natural e, definitivamente, interessante.

Voltando à edição passada do RelevO, tenho de admitir que ela me surpreendeu muito e positivamente. Cristiano Castilho me ganhou com seu “Bogotá, dia 2”. O tom de diário de viagem, a crônica relatando a descoberta de lugares e pessoas, é sempre muito atraente, quando bem construída. “Amanhã farei um passeio de bicicleta com uma mexicana e uma ucraniana que moram na Alemanha.”

Em contrapartida à pluralidade do texto de Castilho, Aline Valek direciona suas palavras a um único lugar. Em “Minha Ex”, a autora acerta ao falar sobre Brasília – onde viveu e de onde partiu – como se a cidade fosse sua ex, dando às memórias geográficas o mesmo tom das memórias afetivas. “Uma timeline plana, uma vida de uma nota só.” A conversa que a autora trava com a cidade torna agradável a leitura sobre voltar a um lugar que se julgava conhecer, para então descobrir que não o conhecia tão bem assim. O tipo de armadilha na qual costumamos cair, frequentemente, quando se trata dos nossos relacionamentos pessoais.

“Entre as Coisas” é um apreciável texto de Juliana Cunha sobre espaços necessários entre assuntos, pessoas e coisas importantes a se fazer. O respiro, o lugar onde devemos gastar o tempo ao nosso gosto.

Daniel Zanella, agora terei de assistir ao “Koyaanisqatsi”. Seu texto me convenceu, e ainda me deixou pensando sobre “… chuva discreta, que começa a escorrer nos vidros” e a música de Philip Glass.

A poesia também teve destaque. Porém, antes da poesia em si, há aquela boa mistura de prosa e poesia. “Destinatário”, de Flora Rocha, tem cadência e essência. Remeteu-me à lindeza dessa combinação que permite a nossa imaginação preencher as lacunas da realidade. “Anoiteceu inverno. A ventania uivava e as cortinas dançavam temor. Tomou um gole e inventou de enfrentar o vento.”

Edu Hoffman poderia inspirar quadros: “desembrulho cada palavra/feito bala/na agulha”. Davi Kinski demonstra intimidade com as palavras. Seu poema é para se ler e reler, que ali há uma variedade de matizes. Definitivamente, lerei outros poemas de sua autoria, que fiquei poeticamente curiosa. “Eu me dissolvo antes do fim/Eu pulo do trampolim/Para a cidade/For Sale.”

Aprecio o fazer poético de Cel Bentin. Gosto de como ele brinca com as palavras, criando espaço para que a imaginação do leitor se embrenhe nas sutilezas de sua poesia. “Inquieto Chiaroscuro [ou Palavra-obaluaê]” eu não conhecia. Fiquei feliz em conhecer. “De bloco em punho, garçons em cartografia/ projetam pedidos além da conta das mesas.” Como não se esbaldar em imaginação depois de ler tais palavras?