Cezar Tridapalli: (Des)confiança

Coluna de ombudsman extraída da edição de fevereiro de 2019 do Jornal RelevO, periódico mensal impresso. O RelevO pode ser assinado aqui. Nosso arquivo – com todas as edições – está disponível neste link. Para conferir todas as colunas de nossos ombudsman, clique aqui.


Na metade final da década de 1990 eu começava a vida profissional a que sou ligado até hoje: o trabalho com literatura. Foi nessa época que assinei pela primeira vez um jornal, a Folha de São Paulo, quando eu vivia o auge 1) do combate em favor da leitura e 2) do sentimento escandalizado: como podia haver professor que sequer lia jornal?

Meu critério de avaliação da Folha não era muito especializado: o jornal era tanto melhor quanto mais as reportagens, crônicas, ensaios etc. confirmavam aquilo que eu pensava e expandiam unilateralmente meu universo de argumentos para enfiar na cabeça dos alienados. Afinal, quem não sabe que alienado é todo aquele que pensa diferente?

No meio de tanto texto, semanalmente vinha a coluna do ombudsman (ômbudsman ou ombúdsman?). Era um caroço no meio da polpa, um ruído no tom do jornal, que passava a semana falando mal dos outros e fazendo propaganda de si mesmo. De repente, uma fissura abstrusa fazia brotar um texto falando mal do próprio jornal. Uma coluna na contramão do fluxo. E nunca é fácil andar na contramão. No mundo dos automóveis, estar na contramão significa atenção dobrada para não bater; e tentar sair assim que possível. Já o ombudsman precisa continuar ali. E bater.

O ombudsman é o sujeito chamado para desconfiar do jornal, mas é dele — ombudsman — que todo mundo desconfia. Não seria ele apenas um panegírico com meios reversos, tipo a figura a quem se pede para falar dos próprios defeitos e ela diz que é sincera demais, organizada demais, perfeccionista demais (chata demais ela não diria)? Não seria a pessoa física do ombudsman um compadre do editorchefe, até padrinho dos filhos? Ou, na outra ponta da desconfiança: quem é esse sem-noção que fala mal do meu jornal, que avaliou mal uma das minhas pautas preferidas?

Quando fui convidado para ser o ombudsman do RelevO durante algumas edições de 2019, fiquei pensando, pensando. Coloquei minha autoconfiança na pauta e fiz o ombudsman de mim mesmo. O resultado foi terrível: febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos. E a certeza de que era incapaz.

Ao mesmo tempo, janeiro não é o mês das grandes esperanças e decisões equivocadas? Aceitei.

Como exigência, toalhas brancas, amoras silvestres e espumantes (brut). E que as edições seguintes do RelevO sejam meio ruins, pra eu ter assunto.

Agradeço a (des)confiança.